Thierry
Meyssan*
As
reacções ao assassínio do negro George Flyod por um polícia branco não tem a
ver com a história da escravatura nos Estados Unidos, mas —da mesma maneira que
a sistemática oposição ao Presidente Trump— a um problema profundo da cultura
anglo-saxónica : o fanatismo Puritano. Devemos lembrar-nos da violência interna
que sacudiu este país durante as duas guerras civis que foram as da
Independência e da Secessão para compreender os acontecimentos actuais e
prevenir o seu ressurgimento. Atenção : nos Estados Unidos, a classe política
prega agora um racismo igualitário. Todos iguais, mas separados.
Os
Puritanos anglo-saxões
Adada
altura, cerca de quatro centenas de fieis da Igreja de Inglaterra fugiram do
seu país onde eram considerados como fanáticos. Refugiaram-se em Leiden
(Holanda), onde puderam viver segundo a tradição calvinista, ou mais
precisamente a interpretação puritana do cristianismo. Provavelmente a pedido
do Rei James Iº, eles enviaram dois grupos para as Américas a fim de aí lutar
contra o Império espanhol. O primeiro fundou aquilo que viria a tornar-se os
Estados Unidos, o segundo perdeu-se na América Central.
Em
seguida, os Puritanos tomaram o Poder em Inglaterra com Lord Cromwell.
Decapitaram o Rei papista Carlos Iº, instauraram uma República igualitária (Commonwealth)
e colonizaram a Irlanda massacrando em massa os católicos. Esta experiência
sanguinária foi de curta duração e desacreditou, durante muito tempo, a ideia
de um Interesse Geral (Res Publica) aos olhos do Ingleses.
Os
35 «Pais Peregrinos» (Pilgrim fathers) partiram de Leiden, fizeram escala em
Inglaterra; depois atravessaram o oceano a bordo do Mayflower. Chegaram à
América do Norte em 1620 para aí poderem praticar a sua religião livremente.
Durante a sua viagem, assinaram um Pacto pelo qual juraram estabelecer uma
sociedade modelo (estrita observância da fé e do culto calvinista, vida comunitária
intensa, disciplina social e moral sem falhas). Ao criar a Colónia de Plymouth,
eles tiverem a esperança de construir a «Nova Jerusalém», depois de terem
fugido do «Faraó» (James Iº) e atravessado o «Mar Vermelho» (o Atlântico). Ao
fim de um ano, deram graças a Deus pela sua epopeia, celebração comemorada
todos os anos sob o nome de Thanksgiving (Ação de Graças-ndT) [1].
Eles estabeleceram a sua capital a 60 quilómetros a
Norte, em Boston. A
sua comunidade velava as mulheres, praticava confissões públicas e castigos
corporais.
Estes
acontecimentos não são apenas mitos que todo o Norte-americano deve conhecer,
eles moldam o sistema político dos Estados Unidos. Oito presidentes em 45
(incluindo os Bush) são descendentes directos dos 35 «Pais Peregrinos». Apesar
da chegada de dezenas de milhões de imigrantes e das aparências institucionais,
a sua ideologia permaneceu no Poder durante quatro séculos, até à eleição de
Donald Trump. Um clube muito exclusivo, a Pilgrim’s Sociey, reúne sob a
autoridade do monarca inglês muito altas personalidades britânicas e
norte-americanas. Ele implantou a «relação especial» (Special Relationship)
entre Londres e Washington e forneceu, nomeadamente, inúmero secretários e
conselheiros ao Presidente Obama.
Muitas
cerimónias previstas este ano pelo 400º aniversário do Mayflower foram
canceladas devido à luta contra a epidemia do coronavírus, nomeadamente a
conferência que o antigo Conselheiro de Segurança Nacional britânico devia
pronunciar perante a Pilgrim’s Society. As más línguas garantem que a
epidemia terminará no dia seguinte à eleição presidencial dos EUA, se Donald
Trump a perder, e que as festividades poderão, então, ter lugar.
Desde
sempre, existem duas culturas opostas nos Estados Unidos entre os cristãos: os
Calvinistas ou Puritanos, por um lado, os Católicos, Anglicanos e Luteranos,
por outro. Se certas «denominações», entre as oitocentas Igrejas dos EUA, se
alinham resolutamente de um lado, a maior parte é atravessada por estas duas
correntes porque o puritanismo não tem um “corpus” teológico definido. É mais
uma certa maneira de pensar.
A
Guerra da Independência começou em 1773 com o Boston Tea Party (a
revolta do chá de Boston). O seu primeiro actor tinha por advogado John Adams,
outro descendente directo de um dos 35 «Pais Peregrinos», e segundo Presidente
dos Estados Unidos. Enquanto o apelo à independência foi lançado pelo
jornalista político Thomas Paine a partir de argumentos religiosos, muito
embora ele próprio não acreditasse fosse no que fosse.
De
uma certa maneira, a Guerra da Independência prolongou, nas Américas, a Guerra
Civil Britânica de Lord Cromwell (a «Grande Rebelião»). Esse conflito
ressurgirá uma terceira vez com a Guerra da Secessão que, lembremos, não tem
nenhuma relação com a escravatura (os dois campos praticavam-na no início da
guerra e os dois campos revogaram-na no decurso da guerra para recrutar antigos
escravos para os seus exércitos).
Os
Puritanos perderam em Inglaterra com a República de Cromwell, mas venceram nas
duas vezes seguintes nos Estados Unidos. O historiador Kevin Phillips, que foi
conselheiro eleitoral do republicano Richard Nixon (descendente de um irmão de
um dos 35 «Pais Peregrinos»), estudou longamente este conflito de
séculos [2].
Foi em função desses dados que ele imaginou a estratégia da «Lei e Ordem», face
ao democrata segregacionista George Wallace, aquando da eleição presidencial de
1968; estratégia retomada por Donald Trump para a campanha de 2020.
Tudo
isto para dizer que as aparências enganam. As linhas de clivagem não se
encontram onde o resto do mundo pensa que estão.
-- Os
puritanos sempre defenderam a igualdade absoluta, mas unicamente entre
cristãos. Eles interditaram durante muito tempo o acesso dos Judeus à função
pública e massacraram os Índios que alegavam amar. Durante a Guerra da
Secessão, estenderam o seu igualitarismo aos Negros (ao contrário dos Puritanos
da África Austral que defenderam o apartheid até ao fim), dando origem ao mito
falacioso de uma guerra contra a escravidão. Hoje em dia, defendem a ideia de
que a humanidade está dividida entre raças iguais e, se possível, separadas.
Eles continuam a ser reticentes ao que chamam de casamentos inter-raciais.
-- Os Puritanos colocam a mentira no fundo da sua escala de valores. Essa não pode ser para eles um expediente, mas, sim sempre o pior dos crimes, muito mais grave que roubo e o assassínio. No século XVII, eles puniam com vara o facto de mentir a um pastor, fosse qual fosse a razão. Eles estabeleceram leis punindo ainda hoje a mentira de um funcionário público federal seja qual for a razão.
O
Evangelismo dos EUA
Com
o tempo e particularmente no século 19, uma outra corrente de pensamento surgiu
no seio do cristianismo americano: o evangelismo. São cristãos de todas as
denominações que buscam aproximar-se do cristianismo original do qual não sabem
grande coisa. Portanto, fiam-se assim nos textos sagrados. Tal como os
Puritanos, os Evangélicos são fundamentalistas, ou seja, eles concedem às
Escrituras o papel de uma palavra divina e interpretam-nas recusando qualquer
contextualização dos textos. Mas, são muito mais pragmáticos. Em tudo, têm uma
posição de princípio, mas, quando confrontados por um problema, agem em
consciência e não segundo o regulamento da sua comunidade.
É
muito fácil fazer troça (zombar-br) das convicções grotescas dos Evangélicos
contra a teoria da evolução, mas isso não tem grande importância e eles
abandonam-na logo que necessário. É muito mais significativo, mas infelizmente
mais raro, denunciar a visão puritana de uma humanidade dividida em raças
distintas, iguais, mas separadas. O que, no entanto, tem graves consequências
no quotidiano.
Os
Puritanos permaneceram os donos da política norte-americana até 1997, data em
que o Presidente libertino Bill Clinton proibiu por decreto qualquer expressão
de fé religiosa nas Instituições Federais. Seguiu-se uma mudança da religião da
Administração para o sector privado. Todas as grandes empresas aceitaram grupos
de oração nos locais de trabalho. Esta deslocação foi favorável à emergência
pública dos Evangélicos em detrimento dos Puritanos.
O
retorno do fanatismo puritano
O
conflito entre os Puritanos e o resto da sociedade retoma hoje uma forma
radical e religiosa. Ele opõe duas mentalidades, uma idealista, igualitária
dentro da sua comunidade e fanática, a outra, por vezes ainda mais
extravagante, concordando com as desigualdades, mas realista.
A
Puritana Hillary Clinton hesitou em tornar-se pastora metodista após o seu
fracasso na eleição presidencial [3].
Ela pecou muito (a sua ligação com Vince Foster), foi castigada por Deus (a
ligação do seu marido com Monica Lewinsky), arrependeu-se (no seio da Family do
Pentágono [4])
e foi “salva”. Ela está convicta de ter sido escolhida por Deus e orgulha-se da
sua violência contra os povos não-cristãos. Ela apoia todas as guerras contra
os « inimigos da América » e espera assistir ao retorno de Cristo.
Pelo
contrário, Donald Trump não manifesta nenhum interesse pela teologia, dispõe
apenas de um conhecimento aproximado da Bible e de uma fé básica.
Pecou tanto como os outros, mas vangloria-se do que conseguiu, mais do que de
se arrepender das suas falhas em público. Ele duvida de si mesmo e compensa o seu
sentimento de inferioridade por um egotismo desmesurado. Ele adora rivalizar
com os seus inimigos, mas não deseja arrasá-los. Seja como for, ele encarna a
vontade de restaurar a grandeza do seu país (« Make America Great Again ! »)
( «Tornar a América Grande de Novo»-ndT) mais do que prosseguir guerras
continuamente e por todo o lado, o que faz dele o campeão dos Evangélicos
contra os Puritanos. Ele oferece aos cristãos a oportunidade de se reformarem a
eles próprios mais do que andar a converter o mundo.
Durante
a campanha eleitoral de 2016, eu havia colocado a pergunta “Os Estados Unidos
vão reformar-se, ou dilacerar-se?” [5].
A meu ver, apenas Donald Trump podia permitir que os Estados Unidos
continuassem como Nação, enquanto Hillary Clinton iria provocar uma guerra
civil e provavelmente a dissolução do país, dentro do modelo do fim da URSS. O
que se passa desde a morte de George Flyod mostra que não me havia enganado.
Os
partidários de Hillary Clinton e do Partido Democrata impõem a sua ideologia.
Eles lutam contra a mentira e destroem as estátuas tal como os seus ancestrais
Puritanos queimavam as “bruxas” de Salem. Eles desenvolvem uma leitura absurda
da sua própria sociedade, negando os conflitos sociais e interpretando as
desigualdades sob o mero olhar das pretensas raças humanas distintas. Eles
desarmam as polícias locais e forçam personalidades «brancas» a desculpar-se em
público de desfrutar de um privilégio invisível.
No
chamado caso russo, o arquivo das acusações contra o antigo Conselheiro de
Segurança Nacional, Michael Flynn, e o perdão presidencial do antigo
Conselheiro de Donald Trump, Roger Stone, provocaram protestos enraivecidos dos
Puritanos. Ora, nenhum destes dois homens causou prejuízo a ninguém, mas eles
haviam ousado mentir ao FBI para o manter fora da Casa Branca.
O
Presidente da Câmara (Prefeito-br) de Minneapolis (a cidade de George Flyod)
foi humilhado em público por se recusar a dissolver a polícia municipal
«racista». Enquanto o Conselho municipal de Seattle acaba de reduzir para
metade o orçamento da sua polícia municipal. Isto não incomoda as classes
sociais altas, que vivem em residências particulares bem guardadas, mas priva
de segurança aqueles que não têm como pagar guardas particulares.
A Associated
Press, depois o New Yok Times, o Los Angeles Times e logo de
seguida quase todos os média dos EUA, decidiram escrever Negro (Black) com
maiúscula quando designa a « raça » (sic) [6],
mas não Branco (white) com o mesmo fim. Com efeito, o facto de escrever Branco
com uma maiúscula (White) é um sinal distintivo dos supremacistas
brancos [7].
O
Pentágono considerou renomear as suas bases militares que levam o nome de
personalidades sulistas acusadas de terem sido «racistas»; depois enviou um
“e-mail” a todo o pessoal civil e militar da Arma de Infantaria (US Army)
denunciando, nomeadamente, como de «extrema-direita» a afirmação, segundo ele
falsa, de que existe apenas uma, e única, raça humana. Claro, estas iniciativas
provocaram uma viva reação dos soldados (G.I.s) trumpistas e fracassaram, mas
elas marcam uma escalada muito perigosa [8].
Um
grande número de tomadas d posição que manifestam uma perda de racionalidade
colectiva.
Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva
*Intelectual
francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace.
As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe,
latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous
nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable
imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007).
Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y
desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores,
2008).
Imagens:
1 – Trump. Durante os motins diante da Casa Branca, o Presidente Trump
dirigiu-se à igreja Episcopaliana de Saint-John (S. João) para se apresentar,
de Bíblia na mão, como defensor das convicções religiosas de todos os cristãos
face ao fanatismo Puritano.; 2 - Hillary Clinton durante a campanha eleitoral
de 2016.
Notas:
[1] This
Land Is Their Land: The Wampanoag Indians, Plymouth Colony, and the Troubled
History of Thanksgiving, David J. Silverman, Bloomsbury Publishing (2019).
[2] The
Cousins’ Wars: Religion, Politics and the Triumph of Anglo-America, Kevin
Phillips, Basic Books (1999).
[3]
“Hillary
Wants to Preach”, Emma Green, The Atlantic, August 6, 2017.
[4] The
Family: The Secret Fundamentalism at the Heart of American Power, Jeff Sharlet,
Harper Perennial (2009).
[5]
“Os Estados Unidos vão
reformar-se, ou dilacerar-se?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire,
26 de Outubro de 2016.
[6]
“Racismo e
anti-racismo como mentiras”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 22 de Junho de 2020.
[7] Uppercasing ‘Black’,
Dean Baquet and Phil Corbett, The New York Times, June 30, 2020.
[8]
“O Exército dos EUA
contra Trump”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Julho de 2020.
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