quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Os vírus da pós-democracia do pós-capitalismo


A epidemia viral instalou-se, fazendo explodir com uma facilidade e uma velocidade inusual formas de vida, realidades sociais, equilíbrios geopolíticos, dogmas económicos.

Manuel Augusto Araújo | AbrilAbril | opinião

Inesperadamente um vírus irrompeu infectando globalmente o mundo, evidenciando e agravando toda uma situação que já existia e estava consolidada, fazendo emergir violentamente a parte do icebergue onde navegavam submersos os aspectos mais obscuros e abomináveis de uma sociedade onde tudo é descartável, das pessoas aos objectos, desde que o lucro esteja garantido. No sistema económico dominante o paradigma do crescimento sofreu uma travagem brusca e brutal mas a compulsão pelo lucro, que se manifesta de muitas maneiras, não abrandou. O capitalismo, mesmo ligado ao ventilador continua a vampirizar as nossas vidas.

No combate à pandemia planetária várias evidências, para o bem e para o mal, perfilaram-se, numa demonstração da falência do capitalismo neoliberal. Os países que melhor a enfrentaram e os que mais rapidamente estão a recuperar as suas economias são os que têm sistemas de saúde públicos mais robustos e que não se sujeitam à selvajaria da desregulação todo-o-terreno dos interesses privados, mantendo nas mãos do Estado as ferramentas fundamentais de controlo do desenvolvimento económico, mesmo aceitando algumas regras do mercado. No extremo oposto, Estados Unidos da América (EUA) e Brasil na linha da frente, a devastação prossegue sem fim à vista, o que não demove as forças dominantes, como se a pandemia fosse uma avaria na máquina de exploração em curso que provoca algumas panes no sistema predador.


A guerra das vacinas

Tipicamente, o capital procura extrair lucros rápidos e imediatos com a crise humanitária instalada com a expansão do coronavírus. A guerra instalada com a corrida a uma vacina eficaz é bem reveladora da miséria moral e dos meios mobilizados por essa gente sem qualquer gota de dignidade. As grandes empresas farmacêuticas têm no seu horizonte a mineração de lucros fabulosos com a catástrofe. A grande promiscuidade do Estado norte-americano do (des)governo Trump com os plutocratas é bem demonstrada nas farsas das miseráveis campanhas que promove enquanto os EUA sobem ao pódio da devastação pandémica. São o exemplo exemplar (passe o pleonasmo) do persistente vírus que ataca o imperialismo unipolar. Vale tudo para obstaculizar o surgimento de vacinas a serem colocadas à disposição da comunidade mundial enquanto medicamento genérico, como as que estão a ser produzidas pela China e pela Rússia, tão ou mais eficazes que as que eles andam a produzir nos seus laboratórios, bem apoiados nas investigações de institutos universitários, que utilizam em seu benefício. Vale mesmo tudo recorrendo à sua máquina de propalação centrada na comunicação social corporativa e mercenária que bate fortemente a pele dos tambores, inventando toda uma série de calúnias sem contraprova, de que a última, perante o risco eminente de uma vacina genérica ser colocada universalmente por esses países, é a da pirataria científica.

Em tempo da vertigem noticiosa as notícias falsas multiplicam-se, potenciadas, relançadas e retomadas pelos centros do poder em que a Casa Branca ocupa lugar central. Sabem, até bem demais, que já poucos se lembram que a China sequenciou em tempo recorde o genoma do coronavírus e que o colocou à disposição da comunidade científica mundial para, no menor tempo possível, ser encontrado um antídoto. O dinheiro, o muito dinheiro que podem arrecadar, é o que conta por cima dos milhões de mortos vitimados pela pandemia. Essa é a lógica inoxidável e desumana das grandes corporações.

Sabem explorar a falta de memória com slogans e tweets para espalhar a desinformação e o medo1 tendo bem aprendido a lição de Maquiavel, que fez do medo uma categoria política para que o Príncipe2 mantenha intacto o seu poder soberano. Na pós-modernidade é o Estado que difunde dos pequenos aos grandes terrores, a implosão das Torres Gémeas em 11 de Setembro é o seu alfa, para justificar opções políticas apresentadas como defesa dos seus valores civilizacionais e dos seus cidadãos.

A solidariedade que esta convulsão planetária deveria provocar é atirada às urtigas com, entre outras, a luminosa excepção de um pequeno país como Cuba. Têm mesmo o grande descaro, coisa que não escasseia por aquelas paragens, de a desvalorizar ou denegrir. Solidariedade corroída até ao osso na União Europeia provando, para quem ainda tivesse uma réstia de dúvidas, que a coesão que dizem procurar instituir dentro desse espaço é a farsa da canibalização dos países economicamente mais fortes, cujos governantes, homens de mão dos monopólios, são gente sem ideologia nem ética, em relação aos mais débeis que foram os que mais sentiram os efeitos da Covid-19. É o direito dos mais fortes imporem a sua lei num espaço económico e político em que a única liberdade intocável é a liberdade irrestrita de circulação de capitais, nuclear e indissociável da integração europeia.

Uma convulsão planetária

A pandemia provocou uma convulsão planetária com consequências ainda imprevisíveis. A engrenagem capitalista neoliberal entrou em deriva. A recessão é geral e iniludível numa economia em que as dívidas, públicas e privadas, que já tinham atingido um valor desmesurado na sequência das crises sistémicas e dos picos das crises do 11 de Setembro e da financeira e de crédito de 2008, se acumulam sem fim à vista. Cínica e hipocritamente os partidos de direita e os países governados por partidos de direita, a Inglaterra é talvez o caso mais típico, descobrem as virtudes da intervenção do Estado nos serviços nacionais de saúde e nas privatizações, ainda que temporárias, das empresas a quem concedem largos apoios e, num arremedo de Estado Social que era carta fora do baralho, nos bem mais magros apoios aos trabalhadores, às famílias. O celebrado TINA (There Is No Alternative) do implacável capital é colocado em suspensão pelos seus próceres, que se multiplicam como se não houvesse amanhã em sondagens, estimativas, previsões, prognoses, para interrogar o futuro que será sempre pior porque essas moscas continuam dentro das garrafas onde se armazenam os valores da civilização ocidental, em que o único não questionável é a pilhagem sobre a qual construiram o seu sucesso, e delas não conseguem sair continuando a olhar para o mundo inabitável que as rodeia.

O distanciamento social, o confinamento obrigatório que preventivamente visou e visa a expansão da pandemia, tanto quanto interrompeu o crescimento económico sem medida nem fim, também trouxe para primeiro plano as desumanas desigualdades sociais. São as classes mais desfavorecidas as mais atingidas pelo contágio e as que mais sofrem económica e psicologicamente com o confinamento pelas condições em que vivem. Além da diferença de recursos financeiros, em que uns navegam no limiar da sobrevivência e outros só são marginalmente atingidos em alguns bens supérfluos, também a pressão psicológica é extremamente diferente numa família de quatro pessoas em isolamento num T1 num edifício urbano e uma com a mesma dimensão a vivê-lo numa moradia com jardim e piscina plantada à beira-mar. Neste quadro negro, a bandeira esfarrapada da liberdade, igualdade e fraternidade das democracias ocidentais, cada vez mais próximas do modelo norte-americano em que dois partidos se alternam no poder em conformidade com os interesses das oligarquias, são as miragens dessas sociedades cada vez mais desumanizadas em que os mais privilegiados dos desprivilegiados vivem ilusões confinados nos facebooks vigiados pelo algoritmo que tem a moral do pensamento dominante.

Outros sinais são extremamente inquietantes. A travagem da economia alargou as manchas de pobreza com a generalizada recessão que foi e está a ser largamente aproveitada pelos empreendedores, com a falácia de estarem a defender a empregabilidade possível nesse interregno, para aumentar o número de desempregados criando um exército de mão-de-obra de que se irá aproveitar quando a anormalidade da normalidade anteriormente vigente for, de algum modo, reposta. Os direitos dos trabalhadores, suspensos durante este período excepcional poderão ser, na sua sequência, duramente atingidos. A vulgarização do teletrabalho que é, em período de confinamento, a segurança possível do posto de trabalho isolado, individualizado, aceite pela grande maioria dos trabalhadores dadas a particularidades do estado de excepção, começa a configurar formas de exploração de tipo novo da força do trabalho e de fragilizar a sua capacidade reivindicativa, limitando a liberdade de reunião e protesto pela dispersão a que os trabalhadores são sujeitos, pelo que há que responder ao carácter predador do capital com novas formas organizativas.

Os Estados-nação das democracias liberais, que nos últimos decénios têm cedido e perdido a sua soberania para instituições supra-nacionais ao serviço de uma nova ordem política e económica imperialista, foram obrigados a fechar as suas fronteiras, recuperando parcialmente essa soberania para impor estados de excepção que suspendem por decreto as liberdades democráticas, com o pretexto válido de imunizarem as sociedades da crise sanitária mas que tem, na outra face dessa moeda, as políticas securitárias, vitaminando todo o arsenal das forças de direita com xenofobias e racismos na primeira linha.

Mais de metade da população mundial está a ser sujeita a vigilância digital em várias formas de quarentena que fecharam fábricas, escolas, espaços públicos culturais, comerciais, desportivos, religiosos, isolaram as pessoas detidas nas suas casas, cortaram todos os laços vivos das comunidades dirigindo-os e aprisionando-os para os laços virtuais das teias das redes sociais onde se expõem, facilitando o trabalho do olho panóptico das secretas que, desde há muito anos, com a cumplicidade das grandes empresas digitais, têm apurado o trabalho quotidiano de patrulha física e digital que agora, cínica e hipocritamente, o mundo ocidental apresenta como uma novidade, induzida pela pandemia, que teria produzido o efeito de aceitação voluntária da retracção do espaço público e da invasão da sua privacidade, de que são um excelente exemplo as apps de rastreio de contactos.

Nada indica que as novas medidas digitais, consideradas imprescindíveis para controlar e dominar a difusão da Covid-19, deixem de estar activas tornando-se invisíveis passado o estado de emergência e o fim da prisão domiciliária, por mais garantias que sejam dadas pela protecção de dados individuais. Não se pode esquecer que essa também é uma nova fonte de rendimentos altamente lucrativa para os empórios digitais.

Uma situação que transporta dentro de si um muitíssimo mais perigoso vírus que é o da despolitização pelo terror do contágio que, se de facto é politicamente neutro, já não o é nas formas como é combatido.

A epidemia viral instalou-se, fazendo explodir com uma facilidade e uma velocidade inusual formas de vida, realidades sociais, equilíbrios geopolíticos, dogmas económicos. Houve até quem, como Slavoj Zizek, considerasse que o coronavírus tinha dado «um golpe tipo Kill Bill no neoliberalismo», num texto que tem tanto de certeiro, alertando que «a actual propagação da epidemia do coronavírus desencadeou vastas outras epidemias de vírus ideológicos que estavam latentes nas nossas sociedades: notícias falsas, teorias da conspiração paranóicas, explosões de racismo, etc.», como desembarca numa desabusada especulação propalando que «talvez um outro vírus ideológico, muito mais benéfico, se espalhará e com sorte nos infectará: o vírus de pensar uma sociedade alternativa, uma sociedade para lá do Estado-nação, uma sociedade que se reinvente a si própria moldada em formas de solidariedade e cooperação global» para concluir, com base numa série de considerandos acertados sobre a barbárie do capitalismo neoliberal, tão certeiros como os golpes de kung-fu de Bruce Lee, para usar as metáforas cinematográficas tão do agrado do filósofo esloveno, que a humanidade estará a caminhar para «alguma forma de comunismo reinventado». Uma tese esdrúxula, idealista e paralisante que acaba por inquinar algumas esquerdas: as que desistiram de lutar por uma mudança social radical limitando-se a lutar por mudanças sociais que seriam talvez a forma possível de um «comunismo reinventado» sem comunismo e as da vulgata marxista-leninista que tem a certeza teleológica que um dia o comunismo se realizará, pelo que poderá ficar à espera sentada. Ambas rasuram os princípios do marxismo-leninismo, tantas vezes reafirmados por Lénine, de que o capitalismo só será derrotado pela luta quotidiana das forças sociais e políticas para reunirem as condições objectivas e subjectivas para o derrotar.

O coronavírus não é o motor de nenhuma revolução, por muito que tenha desnudado as falências do capitalismo neoliberal, causando fracturas expostas na sua estrutura. Está longe de o destruir enquanto sistema de produção global, ainda que a sua anterior hegemonia tenha em muitos pontos fissurado, e fissurado perduravelmente, abrindo uma via para um pós-capitalismo para dar nova vida ao capitalismo, calibrando-o em função das novas evidências, de que a maior é que quanto mais robustos são os serviços públicos melhor se enfrenta as crises, sobretudo as desta dimensão, em que se estilhaça o mito da excelência da gestão privada, a sua superioridade em relação à gestão pública, para continuarem a usar como sempre o fizeram o Estado enquanto pronto-socorro das suas falhas. Na sua linha de mira também estão os direitos sociais e dos trabalhadores, o enfraquecimento e marginalização das estruturas, sindicatos e partidos políticos, que os defendem. No possível pós-capitalismo de uma pós-democracia, em que alguns ou mesmo muitos dos novos tipos de vigilância, consentidos para as massas populares se protegerem da pandemia, se irão tornar norma, começam a adquirir forma os conluios entre políticos vendidos ao capitalismo e plutocratas das áreas digitais e da finança, a que Naomi Klein chama de Screen New Deal. O objectivo é sempre o mesmo, apropriarem-se de vastas fatias de novos negócios proporcionados pela pandemia para os agregarem aos que já dominam. Há que decididamente enfrentar com velhas e novas ferramentas este estado de sítio que a esquerda, a que nunca aceitará que a nova realidade capitalista, por mais consistente e hegemónica que se apresente, seja considerada definitiva, saberá forjar, como sempre o fez ao longo de séculos de luta expondo o carácter contingente da realidade histórica do capitalismo.

Notas:
2.Ver Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Guimarães Editores, reedição 2007. Há disponível uma reedição de 2016.

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