Carvalho da Silva | Jornal de Notícias
| opinião
Continuamos, justificadamente, a
ter medo da covid-19, mas há por aí outros vírus perigosos que sorrateiramente
se vão instalando.
A associalização e o confinamento
militante em que vamos sendo acantonados tornam-nos tolerantes perante
violações de direitos individuais e coletivos, e produzem uma sociedade
apática.
A má gestão e a não resolução de
grandes problemas socioeconómicos, como aqueles com que nos deparamos, geram
perigosos subprodutos. No plano político, projetos ultraconservadores e
fascistas. No plano social, um crescente de microconflitos, de falsas disputas
e clivagens: nas relações entre gerações, potenciando disfunções e ruturas; no
trabalho, aproveitando condições diferenciadas dos trabalhadores ou colocando o
setor privado contra o público, para incapacitar a ação coletiva e intensificar
a exploração; nas relações entre maiorias e minorias e entre culturas, para
gerar intolerâncias e ódios.
A esmagadora maioria das pessoas
sente necessidade de segurança e estabilidade, de condições de sociabilidade,
de uma economia a funcionar. Contudo, a expressão "retorno à
normalidade" pode ser uma mera ilusão ou ter interpretações subversivas. O
futuro nunca foi nem será retorno ao passado. Porém, podem surgir recuos e
dolorosos retrocessos civilizacionais, camuflados de alternativa ou de
modernidade no início do seu percurso.
O futuro constrói-se a partir das
condições concretas em que nos encontramos. Pessoas, empresas e instituições
não têm possibilidade de projetar o dia de regresso às condições existentes nas
vésperas da pandemia que, em muitos casos, pura e simplesmente, não existirão
mais. É preciso conter os duros impactos sociais e económicos da pandemia, mas
é um erro grave deixar para depois as políticas estratégicas de recuperação da
economia. Aqueles impactos vão prolongar-se mais do que era expectável. Por
outro lado, a retoma das atividades das empresas e dos serviços tem de ser
progressiva (mesmo com resultados pobres ou negativos) para que exista criação
de valor, se possam realizar reconversões de atividades, reestruturações de
empresas e capacitação dos trabalhadores. Essa retoma é necessária para se
criarem novos projetos e para posicionar melhor a nossa economia nas cadeias de
valor em processos de mudança.
Se ficarmos pelo atentismo no
"retorno à normalidade" podemos ter a certeza de que, rapidamente,
chegaremos a uma situação em que os défices da nossa matriz de desenvolvimento
e as fragilidades do Estado se agravarão, acompanhados pelo aumento exponencial
do desemprego, pelo aprofundamento das injustiças, das desigualdades e da
pobreza. Um cenário pesado para a esmagadora maioria dos portugueses pode ser
um maná para estratégias de enriquecimento assentes em baixos salários, na
apropriação de fundos coletivos e na amputação de direitos laborais, sociais e
democráticos.
Neste tempo de exaltação da
frugalidade e da moderação, lembremos quão frugais são os trabalhadores e o
povo, e que a moderação nem sempre é uma virtude. Por vezes é tão-só a forma
ardilosa de não incomodar as maiorias dominantes. Uma certa moderação e
pretenso cavalheirismo, muito invocados por certas elites, deram cobertura a
gestões danosas, a compadrios e corrupção, que nos custam hoje dezenas de
milhares de milhões de euros.
*Investigador e professor
universitário
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