sábado, 29 de agosto de 2020

Portugal | Morte de Sá Carneiro. "O comportamento de Balsemão é inexplicável"


Sá Carneiro, primeiro-ministro
40 anos após a morte de Sá Carneiro, o irmão de uma das vítimas insurge-se contra a manipulação do atentado e a transformação oficial em acidente. Em centenas de páginas, apresenta o envolvimento americano e declara-os "mandantes" da operação fatal

Em Os Mandantes do Atentado de Camarate - O Envolvimento Americano, Alexandre Patrício Gouveia desenvolve uma investigação em que afirma ter existido um atentado que causou a morte de Sá Carneiro e de outros passageiros na avioneta em que seguiam para o Porto, questiona a posição do governo de então que optou imediatamente pela tese do acidente, e aponta os nomes dos norte-americanos envolvidos na operação, bem como os interesses das chefias militares portuguesas na venda ilegal de armas ao Irão.

A queda da avioneta matou, a 4 de dezembro de 1980, Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa,, Snu Abecassis, Manuela Amaro da Costa, António Patrício Gouveia, Jorge Albuquerque e Alfredo de Sousa.

34 anos depois soube-se quem assassinou Olof Palme. 40 anos depois, a morte de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa, entre outros, continua por se descobrir. A que se deve esta inoperância portuguesa?

Muitas vezes os autores morais dos atentados têm suficiente influência nas investigações que teriam de ser feitas pelo Estado e acabam por as inviabilizar. O caso mais evidente é o assassinato do presidente John Kennedy, que nunca produziu uma investigação profunda e coerente e ainda hoje vive de uma tese relativamente aceite e que tendo sido perpetrada por pessoas ligadas à Secretaria de Estado da Defesa americana tiveram influência suficiente para intervir e evitar que se deslindasse.

Sá Carneiro, Pinto Balsemão. Amigos...
É a mesma situação que a de Camarate?

Não sei as razões por que não houve em Portugal uma investigação séria - que foi o que realmente aconteceu. Muito provavelmente os mandantes de atentado de Camarate tiveram capacidade para impedir a investigação, essa é uma hipótese muito possível. A inoperância com que as investigações foram feitas não são nem compreensíveis nem estão de acordo com a eficiência que a Polícia Judiciária sempre demonstrou.

Este seu livro não vem tarde de mais?

Não, porque contém uma parte importante do atentado que está por explicar, sobretudo a que tem a ver com quem o mandou efetuar e porque aconteceu. Sabemos quem foram os autores materiais, como acederam ao avião e como colocaram uma bomba. O que nunca esteve muito claro foi porque se realizou o atentado nem quais eram os objetivos de quem o mandou realizar e quem foi.

Apresenta duas teses: atentado contra Sá Carneiro ou contra Adelino Amaro da Costa. Qual é a correta?

Acho que o atentado foi contra os dois, mas é mais evidente que quem estava a dificultar o tráfico ilegal de armas era Amaro da Costa. Porque estava a tratar desse assunto e fez aprovar uma legislação que transferia para o governo a competência de autorizar ou não qualquer transação relacionada com o comércio e a indústria de armamento. Sá Carneiro não tinha essa preocupação. Amaro da Costa já tinha conseguido aprovar em setembro um decreto-lei em que transferia das chefias militares para o governo qualquer autorização de comércio de materiais explosivos, exportação ou transbordo de armas para o estrangeiro. Até porque ainda existia o Conselho da Revolução, onde estavam várias pessoas ligadas ao tráfico de armas, como o major Canto e Castro, e que tinha capacidade de interferir.

Além dessa primeira tese, temos um depoimento que afirma que a morte de Sá Carneiro teria sido a mando do embaixador americano Frank Carlucci enquanto a de Amaro da Costa por pessoas próximas de Reagan e de militares portugueses. Qual é a verdade?

Isso é dito por Farinha Simões, que assinou um testemunho a afirmar que recebeu ordens de Carlucci, mas mesmo que essa informação seja verdade, a ideia não partiu deste, antes estaria a cumprir uma ordem dos cinco elementos que trabalhavam na campanha do Partido Republicano e que tentavam eleger o candidato Ronald Reagan. Cinco pessoas que identifico no livro: William Casey, Robert McFarlane, Donald Gregg, Richard Allen e Oliver North. A ordem para matar um e outro teve a mesma origem e veio, no meu entender, e com grande grau de probabilidade, de parte desses cinco norte-americanos.

Reagan ignorava o que eles desejavam fazer aos dois políticos portugueses que eram um óbice ao negócio de armas para o Irão?

A ordem partiu de um ou de alguns, até de todos os cinco elementos, mas suponho que o Presidente Reagan nunca teve conhecimento destas atividades clandestinas, nomeadamente a da venda de armas para o Irão através de Portugal. Só quando estourou o escândalo Irangate em 1986 é que confirmou que tinha autorizado a venda de armas para o Irão através de Israel, não se lembrava era da data. Quanto a Camarate, acho que nada soube.

Amaro da Costa
Diz que o atentado de Camarate foi bem sucedido: "deixaram de existir obstáculos para a venda de armas ao Irão por Portugal e os Estados Unidos aumentaram a influência no Golfo Pérsico". É o mais certo?

Cinco dias depois do atentado de Camarate houve logo uma exportação de armas para o Irão e em janeiro uma segunda, portanto deixou de haver o controlo que Amaro da Costa pretendia sobre vendas ilegais de armamento, nomeadamente para o Irão, e que teria proibido. A sua morte invalidou o esforço que estava a fazer nesse campo.

Ou seja, a morte satisfez também as chefias militares portuguesas?

Havia condições para que existissem militares portugueses a colaborar em vendas ilegais, com certeza.

Não tem qualquer dúvida que a morte e Sá Carneiro foi atentado e não um acidente?

Nenhuma. Já ficou provado que foi um atentado desde 1984, a partir da quarta Comissão Parlamentar de Inquérito a Camarate. Não há dúvidas sobre isso.

Até hoje, contudo, oficialmente não está dado como adquirido que tivesse sido um atentado?

Infelizmente, o Estado português tem duas decisões: a Assembleia da República declarou que foi um atentado com o voto unânime dos partidos, no entanto o Ministério Público não quis autorizar o julgamento contra os autores materiais deste crime, porque aparentemente acha que foi um acidente. Ou seja, o Estado português tem duas posições ao nível dos órgãos de soberania.

Considera que o então procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, teve uma atitude displicente ou de cobertura aos mandantes. É essa a sua opinião?

As motivações íntimas só ele sabe quais são, eu só sei qual foi o seu comportamento: do princípio ao fim, nas suas funções, fazer tudo o que estava ao seu alcance para impedir o julgamento e classificar Camarate como um acidente.

Neste livro há um grande acusado: Francisco Pinto Balsemão. E é-o em muitas páginas. Qual é o seu papel neste caso?

O comportamento de Pinto Balsemão é inexplicável atendendo ao facto de que se tratou da morte de um cofundador do PPD (PSD) e de um primo dele, António Patrício Gouveia, além das restantes vítimas. Em vez de fazer tudo o que estava ao seu alcance para apurar a verdade, Pinto Balsemão constituiu antes o maior obstáculo político em Portugal em 1980 e nos anos seguintes. Esse seu comportamento influenciou o governo de que fazia parte logo no dia 4 de dezembro de 1980 e conseguiu que fosse aprovada uma nota oficiosa oito dias depois a dizer que Camarate tinha sido um acidente, isto quando ainda se estava longe de ter os elementos necessários para alguma conclusão. E manteve esta posição enquanto primeiro-ministro, o que não deixou de influenciar a forma como as investigações estavam a ser conduzidas pela Direção-Geral da Aviação Civil e pela Polícia Judiciária, que trabalharam sempre no intuito de provar tal tese [do acidente]. Esse comportamento de Balsemão deu cobertura à atuação dessas duas identidades e influenciou também outros membros do governo no sentido de classificar Camarate como um acidente, como aconteceu com os ministros dos Transportes e da Justiça.

Pinto Balsemão, Ronald Reagan
Porquê?

É difícil explicar este comportamento, mas que existiu existiu e refletiu-se também no jornal de que era e é proprietário, o Expresso, ao qual, segundo um documento que está neste livro, terá dado instruções ao diretor para que o jornal defendesse sempre que fora um acidente. E viu-se isso no jornal pois até 2015 publicou 31 notícias sobre Camarate e 23 faziam a referência desse modo. O que é um contraste total com qualquer outro jornal português, aliás pode dizer-se que o Expresso é o único jornal do mundo que defendeu até hoje que Camarate foi um acidente. Isto não aconteceu por acaso e tudo leva a crer que foi por influência de Balsemão e por razões que só ele saberá.

Afirma que Balsemão ignorou informações relevantes. Quais?

Ele terá tido acesso à primeira investigação logo a 4 de dezembro de 1980, quando o ministro lhe terá transmitido uma descrição do inspetor Inácio Costa que referia que o avião levantou voo e passado algum tempo foi envolvido numa bola de fogo. Este é um sintoma de uma explosão. Mais tarde, no dia 15, também Freitas do Amaral recebeu uma informação da Scotland Yard de que tinha sido presa uma pessoa em Londres, Lee Rodrigues, e que tudo indicava que estivesse ligado ao atentado. Mas Balsemão ignorou-a depois de ter tido conhecimento dela. São dois factos num prazo de dez dias difíceis de entender. Como é que alguém interessado no apuramento da verdade não tivesse passado estas informações para a Polícia Judiciária? Essas e outras situações estão relatadas no livro, mas o que não se compreende é porque defende contra tudo e todos a tese do acidente. Só ele sabe porque atua dessa forma. Além de que, com certeza, a posição que o governo tomou na nota oficiosa teve alguma influência no trabalho da Judiciária ao longo dos anos, nomeadamente quando teve de gerir a vida para Portugal de Lee Rodrigues, pois está hoje assumido que foi ele quem colocou a bomba no avião, apesar de a Judiciária sempre o classificar de simples burlão e não autor material do atentado.

Assumido por quem?

Até pelo próprio Lee Rodrigues, pois numa conversa que teve com Acácio Brito no Brasil assumiu-se como o autor do atentado, mas também disse que nunca ninguém o tinha feito pagar preço e nem sequer fora ouvido.

Numa altura em que o "crime" já estava prescrito?

Exatamente, mas disse também que sabia que nunca nada lhe iria acontecer porque tinha suficiente cobertura da própria Judiciária e que havia garantias de que nunca seria acusado. Ele próprio não só se afirma como autor como diz que estava tranquilo pois nunca seria acusado.

O Cessna explodiu no ar e caiu sobre casas em Camarate
E como tinha essa certeza?

A Polícia Judiciária optou por nunca levar a sério a hipótese de Lee Rodrigues ter sido o autor do atentado e por mais provas que houvesse, e que foram abundantes, ou indícios de que era um perito em armas e explosivos, que esteve naquele dia no hangar do Aeroporto da Portela na zona onde estavam as avionetas, que era piloto e que tinha antecedentes criminais. Era uma pessoa que era recrutada para fazer operações criminosas, com um perfil completo para ser suscetível de fazer o atentado, mas por mais evidências que houvesse, a Judiciária rejeitou-as sempre. Quanto a mim isto aconteceu porque teve uma cobertura política, nomeadamente por parte de Francisco Pinto Balsemão.

Freitas do Amaral diz no prefácio que havia interesse político no desaparecimento das duas figuras além do negócio de armamento. Isso terá contribuído para o "atentado"?

O interesse político para eliminação de Sá Carneiro partiu dos membros do Partido Republicano, cá em Portugal ninguém pensou em o matar.

Por que a sociedade portuguesa e os políticos com destaque nunca se pronunciaram de forma efetiva sobre ter sido um atentado?

Nesse âmbito não podemos generalizar, porque há pessoas e políticos com responsabilidade que vieram a público dizer que Camarate foi um atentado. Há várias pessoas que não tiveram medo de o afirmar e uma delas foi exatamente Freitas do Amaral. Mas houve muitas mais, tal como Marcelo Rebelo de Sousa, que hoje é Presidente da República, e sempre defendeu que Camarate foi um atentado e nunca teve problemas em afirmar esse ponto de vista, até quando foi presidente do PSD. Lembro-me de o ouvir a dizer isso em congressos do partido. E no CDS a mesma coisa. O próprio ex-provedor da Justiça, Menéres Pimentel, disse que se tinha enganado ao acreditar que fora um acidente e defendeu um julgamento. Tirando Pinto Balsemão, não conheço nenhum político que de uma forma clara e continuada ao longo dos anos tenha defendido que Camarate foi um acidente.

Refere que Rebelo de Sousa sempre acompanhou a situação. Enquanto Presidente pode vir a alterar a situação de equívoco?

Já expressou em várias ocasiões a sua opinião sobre Camarate, infelizmente o prazo para haver o julgamento deste atentado já prescreveu, a não ser que se pense em termos de crimes terroristas. O Presidente pode expressar a sua opinião neste momento, mas não pode viabilizar o que teria sido lógico e seria o mínimo a fazer para se ter apurado a verdade: um julgamento contra os autores materiais que foram identificados pelas comissões de inquérito e que já se assumiram como responsáveis desta operação que matou Sá Carneiro e Amaro da Costa, entre outros.

LIVRO: Os Mandantes do Atentado de Camarate - O_Envolvimento Americano resulta de três anos de investigação de Alexandre Patrício Gouveia e é editado pela Ideia-Fixa, com 432 páginas

João Céu e Silva | Diário de Notícias

No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.

Sem comentários:

Mais lidas da semana