segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Portugal | Um juiz vendido é pior do que cem políticos corruptos

Pedro Marques Lopes | Diário de Notícias | opinião

Paulo Rangel, no Público, foi lapidar: "Para a democracia e para a sociedade é bem mais perigoso que se suspeite dos juízes do que dos políticos." Não posso concordar mais.

Comecemos pelo princípio. Os arguidos do processo Lex, nomeadamente juízes e desembargadores, são inocentes até ao trânsito em julgado da sentença. E aqui é especialmente importante referir isto, porque está agora a acontecer a uma classe profissional o que uma parte dessa mesma classe promove em conluio com alguns órgãos de comunicação social: julgamentos na praça pública criadores de um clima que depois serve para condicionar sentenças e acórdãos.

Aliás, essa é uma das doenças graves da nossa justiça. Outras há e são bem conhecidas, destaco desta vez os absurdos megaprocessos.

Estes merecem uma atenção especial porque têm um efeito especialmente devastador no nosso edifício judicial e em todo o sistema. Por hoje, servem sobretudo para que se venda uma ideia de que há uma sempre uma espécie de conspiração global. Condenar os eventuais criminosos por crimes concretos é pormenor.

Monta-se um processo sem fim (Sócrates, Salgado ou Oliveira Costa são bons exemplos), os arguidos são cozidos em lume brando, dá-se todos os argumentos e mais alguns para os vendedores do produto "isto anda tudo a gamar" ganharem clientes e oferece-se de bandeja aos populistas um maná que estes aproveitam para declarar o fim do regime por podridão. Da possibilidade de se condenar ou absolver os arguidos de crimes concretos ninguém no sistema parece muito interessado.

Mas há outra consequência perversa: a de estes megaprocessos servirem para tentar fazer passar leis cada vez mais restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. A conversa de que o processo é demasiado garantista é mesmo só uma conversa que não tem (já teve) adesão à realidade.

Não faltam problemas à justiça portuguesa e a sua reforma é mais do que urgente.

Com a possibilidade de termos casos de magistrados corruptos (com a agravante de serem de tribunais superiores) passamos para um nível muitíssimo mais complicado.

A perceção pública era a de que, apesar de todos os problemas, erros, inconsistências, os juízes estavam a salvo do vírus da corrupção. Os filtros para o acesso às magistraturas serão maiores do que os dos políticos a carreiras políticas, mas imaginar-se que seriam todos seres ungidos não casa com a essência da natureza humana.

Claro que era só mais uma perceção, igual à da corrupção generalizada - ambas falsas.

Um político corrupto pode afetar uma decisão com maior ou menor impacto na comunidade. Dinheiro que o erário paga a mais, uma cunha, um imposto que fica por pagar. Uma sentença adulterada põe em causa um valor com o qual a comunidade não consegue viver por muito tempo: a justiça ou, no mínimo, a sensação de que todos são iguais num tribunal e perante a lei. A dúvida de que alguém absolvido ou condenado ou um crédito reconhecido ou negado pode não o ter sido de uma forma limpa é insuportável.

O político corrupto magoa a democracia, o juiz corrupto põe-na em causa. Uma comunidade sobrevive a políticos corruptos, mas não a juízes corruptos. Uma comunidade e uma democracia aguentam a perceção de corrupção na política, mas não aguentam a perceção de uma justiça corrupta. Mais que não seja porque é a justiça o último reduto daqueles que desconfiam dos políticos e das suas decisões.

Os mecanismos de fiscalização da atividade política têm crescido e fizeram diminuir a corrupção, a justiça continua a funcionar de maneira muito opaca. A comunicação é deficiente, o controle interno é profundamente corporativo, a linguagem hermética.

Gostava de poder acreditar que este caso ia levar as várias corporações da justiça a darem um passo no sentido de se questionarem, de se abrirem ao debate, mas o corporativismo em que vivem não cederá. Também gostaria de pensar que de uma vez por todas se abandone o imbecil brocado do "à política o que é da política e à justiça o que é da justiça", mas acho que vou esperar sentado.

Fica assim o terreno escancarado para os populistas e vendedores do "país a saque". A seguir será a descrença total no sistema. Chegados aí será tarde demais.

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