Pepe Escobar [*]
Poucos pontos quentes
geopolíticos em todo o planeta podem rivalizar com o Cáucaso: aquela intratável
Torre de Babel tribal, uma encruzilhada controversa de impérios do Levante e
nómadas das estepes eurasiáticas ao longo da História. E fica ainda mais confusa
quando se acrescenta o nevoeiro da guerra.
Para tentar lançar alguma luz sobre o actual confronto directo
Arménia-Azerbaijão, vamos assinalar os factos básicos com alguns antecedentes
de fundo essenciais.
No fim do mês passado Ilham Alyev, o "homem forte" do Azerbaijão, no
poder desde 2002, lançou uma guerra de facto sobre o território de
Nagorno-Karabakh mantido pela Arménia.
No momento do colapso da URSS, Nagorno-Karabakh tinha uma população mista de
xiitas azeris e cristãos arménios. Mas mesmo antes do colapso o Exército
Azerbaijano e independentistas arménios já estavam em guerra (1988-1994), a
qual resultou num sombrio balanço de 30 mil mortos e cerca de um milhão de
feridos.
A República de Nagorno-Karabakh declarou independência em 1991: mas esta não
foi reconhecida pela "comunidade internacional". Finalmente houve um
cessar-fogo em 1994 – com Nagorno-Karabakh entrando numa área cinzenta, numa
terra de ninguém de "conflito congelado".
O problema é que em 1993 as Nações Unidas aprovaram nada menos que quatro
resoluções – 822, 853, 874 e 884 – estabelecendo que a Arménia deveria
retirar-se do que era considerado ser aproximadamente 20% do território
azerbaijano. Isto está no cerne da lógica de Bacu para combater o que ela
qualifica como um exército de ocupação estrangeiro.
Contudo, a interpretação de Ierevan é que estas quatro resoluções são nulas e
sem efeito porque Nagorno-Karabakh abriga uma população de maioria arménia que
se quer separar do Azerbaijão.
Historicamente, Artsakh é uma das três antigas províncias da Arménia – cujas
raízes remontam pelo menos ao século V a.C. e finalmente estabelecida em
Artsakh – ou Nagorno-Karabakh – foi anexado ao Azerbaijão por Estaline em 1923.
Isso preparou o cenário para que um futuro barril de pólvora inevitavelmente
explodisse.
É importante recordar que não havia estado-nação "azerbaijano" até o
início da década de 1920. Historicamente, o Azerbaijão é um território no norte
do Irão. Os azeris estão muito bem integrados dentro da República Islâmica.
Assim, a República do Azerbaijão realmente tomou ou seu nome dos seus vizinhos
iranianos. Na história antiga, o território da nova república do século XX era
conhecido como Atropatena e Aturpakatan antes do advento do Islão.
O argumento principal de Bacu é que a Arménia está a bloquear uma nação azerbaijana contínua. Uma olhadela no mapa mostra que o sudoeste do Azerbaijão está de facto dividido até à fronteira iraniana.
E isso mergulha-nos necessariamente num antecedente profundo. Para esclarecer o assunto, não poderia haver um guia mais confiável do que um especialista de topo do Cáucaso que partilhou a sua análise comigo por email, mas que insiste em "nenhuma atribuição". Vamos chamá-lo Sr. C.
O Sr. C nota que "durante décadas a equação permaneceu a mesma e as suas variáveis também permaneceram mais ou menos as mesmas. Isto aconteceu apesar do facto de que a Arménia é uma democracia instável em transição e o Azerbaijão teve muito mais continuidade no topo" [do governo].
Deveríamos estar conscientes de que "o Azerbaijão perdeu território logo no início da restauração da sua soberania (statehood), quando era basicamente um estado falhado dirigido por amadores nacionalistas de poltrona [antes de Heydar Aliyev, pai de Ilham, chegar ao poder]. E a Arménia também era uma confusão, mas menos quando se leva em consideração que tinha um forte apoio russo e o Azerbaijão não tinha ninguém. Na altura, a Turquia ainda era um Estado laico com um exército que parecia ocidental e levava a sério a sua adesão à NATO. Desde então, o Azerbaijão construiu a sua economia e aumentou a sua população. Por isso, continuou a fortalecer-se. Mas as suas forças armadas continuavam a ter um fraco desempenho".
Isso começou a mudar lentamente em 2020: "Basicamente, nos últimos meses tem-se assistido a aumentos incrementais na intensidade das violações quase diárias do cessar-fogo (as violações quase diárias não são nada de novo: já se verificam há anos). Assim, isto explodiu em Julho e houve uma guerra com tiros durante alguns dias. Depois todos se acalmaram novamente".
Durante todo este tempo, algo importante estava a desenvolver-se em segundo plano: O primeiro-ministro arménio Nikol Pashinyan, que chegou ao poder em Maio de 2018, e Aliyev começaram a falar: "O lado azerbaijanês pensou que isto indicava que a Arménia estava pronta para um compromisso (tudo isto começou quando a Arménia teve uma espécie de revolução, com o novo Primeiro-Ministro a chegar ao poder com um mandato popular para limpar a casa internamente). Por qualquer razão, isto acabou por não acontecer".
O que de facto aconteceu foi a guerra com o tiroteio de Julho.
Não esquecer o pipelineistão
O primeiro-ministro arménio Pashinyan poderia ser descrito como um globalista liberal. A maior parte da sua equipa política é a favor da NATO. Pashinyan foi de armas em punho contra o ex-presidente arménio (1998-2008) Robert Kocharian, que antes disso era, crucialmente, o presidente de facto de Nagorno-Karabakh.
Kocharian, que passou anos na Rússia e está próximo do Presidente Putin, foi acusado de uma nebulosa tentativa de "derrubar a ordem constitucional". Pashinyan tentou lançá-lo na prisão. Mas ainda mais crucial é o facto de que Pashnyan recusou seguir um plano elaborado pelo ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, para finalmente solucionar a confusão Artsakh/Nagorno-Karabakh.
No actual nevoeiro de guerra, as coisas estão ainda mais confusas. O Sr. C enfatiza dois pontos: "Primeiro, a Arménia pediu protecção ao CSTO [Tratado de Segurança Colectiva] e levou uma bofetada, dura e
O ângulo do pipelineistão é na
verdade crucial: durante anos acompanhei no Asia Times esta miríade de novelas
entrelaçadas do petróleo e do gás, especialmente o [oleoduto] BTC
(Bacu-Tblisi-Ceyhan), concebido por Zbigniew Brzezinski para contornar o Irão.
Fui mesmo "preso" por um 4x4 da BP quando estava a rastrear o
pipeline numa estrada paralela que saía do enorme terminal Sangachal: isso
provou que a British Petroleum era na prática o patrão real, não o governo
azerbaijano.
Em suma, agora atingimos o ponto onde, segundo o Sr. C,
"a preparação para o combate da Arménia torna-se mais agressiva". As
razões do lado arménio parecem ser sobretudo internas: terrível manejo do
Covid-19 (em contraste com o Azerbaijão) e o lamentável estado da economia.
Assim, diz o Sr. C., chegámos a um concurso tóxico de circunstâncias: A
Arménia desviou-se dos seus problemas por ser dura com o Azerbaijão, ao passo
que o Azerbaijão já tinha aguentado o suficiente.
É sempre sobre a Turquia
De qualquer modo, quando se olha o drama Arménia-Azerbaijão, o principal factor
de desestabilização é agora a Turquia.
O Sr. C observa como, "durante todo o Verão, a qualidade dos exercícios
militares turco-azerbaijanos aumentou (tanto antes dos acontecimentos de Julho
como posteriormente). Os militares azerbaijanos melhoraram muito. Além disso,
desde o quarto trimestre de 2019, o Presidente do Azerbaijão tem estado a
livrar-se dos elementos (percebidos como) pró-russos em posições de
poder". Ver, por exemplo, aqui .
Não há meio de o confirmar nem com Moscovo nem com Ancara, mas o Sr. C avança o
que o Presidente Erdogan poderá ter dito aos russos: "Entraremos
directamente na Arménia se a) o Azerbaijão começar a perder, b) a
Rússia entrar ou aceitar que o CSTO seja invocado ou alguma coisa desse género,
ou c) a Arménia prejudicar os pipelines. Tudo isto são linhas vermelhas
razoáveis para os turcos, especialmente quando se tem em conta que eles não
gostam muito dos arménios e que consideram os azerbaijaneses como irmãos".
É crucial recordar que
O United Armenian Information Center, bem como o Kurdish Afrin Post, declararam
que Ancara abriu dois centros de recrutamento – em escolas de Afrin – de
mercenários. Aparentemente, isto foi um movimento bastante popular porque
Ancara cortou os salários dos mercenários sírios despachados para a Líbia.
Há um ângulo extra que é profundamente preocupante não só para a Rússia como
também para a Ásia Central. Segundo o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros
de Nagorno-Karabakh, Embaixador Extraordinário Arman Melikyan, mercenários
utilizando identificações azeris emitidas em Bacu podem conseguir infiltrar-se
no Daguestão e na Chechénia e, através do mar Cáspio, chegar a Atyrau no
Cazaquistão, de onde podem facilmente chegar ao Uzbequistão e ao Quirguistão.
Este é o derradeiro pesadelo da Organização de Cooperação de Shangai (SCO) –
partilhada pela Rússia, China e o "istões" da Ásia Central: uma terra
jihadi – e mar (Cáspio) – ponte do Cáucaso até à Ásia Central e mesmo o
Xinjiang.
Qual é o objectivo desta guerra?
Então, o que vem a seguir? Um impasse quase intransponível, tal como o Sr. C
esboça:
1. "As conversações de paz não vão a lado nenhum porque a Arménia
recusa-se a ceder (a retirar-se da ocupação de Nagorno-Karabakh mais sete
regiões circundantes por fases ou de uma só vez, com as garantias habituais
para civis, mesmo colonos – note-se que quando entraram no início da década de
1990 eles limparam aquelas terras de literalmente todos os azerbaijaneses, algo
como entre 700.000 e 1 milhão de pessoas)".
2. Aliyev ficou com a impressão de que Pashinyan "estava disposto a um
compromisso e começou a preparar o seu povo e então pareceu ridicularizado
quando isso não aconteceu".
3. "A Turquia deixou claro como cristal que apoiará o Azerbaijão
incondicionalmente e acompanhou estas palavras com feitos".
4. "Em tais circunstâncias, a Rússia foi ultrapassada – no sentido de que
tinham sido capazes de jogar a Arménia contra o Azerbaijão e vice-versa, com
bastante êxito, ajudando a mediar conversações que não chegaram a lado nenhum,
preservando o status quo que efectivamente favoreceu a Arménia".
E isso leva-nos à questão crucial. Qual é o objectivo desta guerra?
Sr. C: "É ou conquistar o máximo possível antes que a "comunidade
internacional" [neste caso, o CSNU] peça / exija um cessar-fogo ou fazê-lo
como um impulso para o reinício de conversações que realmente conduzam ao
progresso. Em qualquer dos cenários, o Azerbaijão acabará com ganhos e a
Arménia com perdas. Quanto e em que circunstâncias (o status e a questão
de Nagorno-Karabakh é diferente do status e da questão dos territórios arménios
ocupados em torno de Nagorno-Karabakh) é desconhecido: ou seja, no campo de
batalha ou na mesa de negociações ou numa combinação de ambos. Entretanto,
verifica-se no mínimo que o Azerbaijão conseguirá manter o que libertou
Assim, o que pode Moscovo fazer sob estas circunstâncias? Não muito,
"excepto ir para dentro do Azerbaijão propriamente dito, o que não farão
(não há fronteira terrestre entre a Rússia e a Arménia; assim, embora a Rússia
tenha uma base militar na Arménia com um ou mais mil soldados, eles não podem
simplesmente fornecer à Arménia armas e tropas à vontade, dada a
geografia)".
Crucialmente, Moscovo privilegia a parceria estratégica com a Arménia – a qual
é membro da União Económica da Eurásia (EAEU) – enquanto controla
meticulosamente cada um dos movimentos da Turquia, membro da NATO: afinal de
contas, eles já estão em lados opostos tanto na Líbia como na Síria.
Assim, para o dizer de modo suave, Moscovo está a caminhar no fio de uma
navalha geopolítica. A Rússia precisa de exercer contenção e investir numa
equilibragem cuidadosamente calibrada entre a Arménia e o Azerbaijão; deve
preservar a parceria estratégica Rússia-Turquia; e deve estar atenta a todas,
possíveis tácticas dos EUA de Divide e Impera.
Dentro da guerra de Erdogan
Então, no final das contas, esta seria mais uma guerra Erdogan?
A análise inescapável do "Siga o dinheiro" nos diria que sim. A
economia turca está numa confusão absoluta, com uma inflação elevada e uma
moeda
O Sr. C acrescenta que ancorar a Turquia no Azerbaijão levaria à "criação
de bases militares turcas de pleno direito e à inclusão do Azerbaijão na órbita
de influência turca (a tese "dois países – uma nação", na qual a
Turquia assume a supremacia) no quadro do neo-otomanismo e da liderança da
Turquia no mundo de língua turca".
Acrescente-se a isto o ângulo da NATO, de extrema importância. O Sr. C vê-o
essencialmente como Erdogan, capacitado por Washington, prestes a dar um
empurrão da NATO para leste enquanto estabelece aquele canal jihadi imensamente
perigoso para a Rússia: "Esta não é uma aventura local de Erdogan.
Compreendo que o Azerbaijão é em grande parte do Islão xiita e que isso irá
complicar as coisas, mas não tornará a sua aventura impossível".
Isto está ligado plenamente a um notório relatório da RAND que pormenoriza explicitamente como
"os Estados Unidos poderiam tentar induzir a Arménia a romper com a
Rússia" e "encorajar a Arménia a integrar plenamente a órbita da
NATO".
É mais do que óbvio que Moscovo está a observar todas estas variáveis com
extrema cautela. Isto reflecte-se, por exemplo, em como a irreprimível
porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Maria Zakharova, no início
desta semana, embalou um aviso diplomático muito sério: "A queda de um
SU-25 arménio por um F-16 turco, tal como afirmado pelo Ministério da Defesa da
Arménia, parece complicar a situação, pois Moscovo, com base no tratado de
Tashkent, é obrigada a oferecer assistência militar à Arménia".
Não é de admirar que tanto Bacu como Ierevan tenham recebido a mensagem e
estejam a negar firmemente que tenha acontecido alguma coisa.
O facto chave continua a ser que enquanto a Arménia propriamente dita não for
atacada pelo Azerbaijão, a Rússia não aplicará o tratado da CSTO e não
intervirá. Erdogan sabe que esta é a sua linha vermelha. Moscovo tem tudo o que
é preciso para o colocar em sérios problemas – como cortar o fornecimento de
gás à Turquia. Moscovo, entretanto, continuará a ajudar Ierevan com
inteligência e hardware – vindo de avião do Irão. Regras da diplomacia – e o
objectivo final é mais um cessar-fogo.
Puxar a Rússia de volta para dentro
O Sr. C avança a forte possibilidade – e tenho ouvido ecos de Bruxelas – de que
"a UE e a Rússia encontrem uma causa comum para limitar os ganhos do
Azerbaijão (em grande parte porque Erdogan não é o tipo favorito de ninguém,
não só por causa disto mas por causa do Mediterrâneo Oriental, Síria,
Líbia)".
Isto coloca em primeiro plano a importância renovada do Conselho de Segurança
da ONU na imposição de um cessar-fogo. O papel de Washington, neste momento, é
bastante intrigante. É claro que Trump tem coisas mais importantes a fazer
neste momento. Além disso, a diáspora arménia nos EUA inclina-se drasticamente
a favor dos democratas.
Assim, para resumir tudo, há o importantíssimo relacionamento
Irão-Arménia. Aqui está uma tentativa vigorosa de o por em
perspectiva.
Como enfatiza o Sr. C, "o Irão favorece a Arménia, o que é
contra-intuitivo à primeira vista. Assim, os iranianos podem ajudar os russos
(canalizando abastecimentos), mas por outro lado têm um bom relacionamento com
a Turquia, especialmente no negócio do contrabando de petróleo e gás. E se o
seu apoio for demasiado claro, Trump tem um casus belli para se
envolver e os europeus podem não gostar de acabar do mesmo lado que os russos e
os iranianos. Isto só parece mau. E os europeus detestam parecerem maus".
Voltamos inevitavelmente ao ponto em que todo o drama pode ser interpretado da
perspectiva de um golpe geopolítico da NATO contra a Rússia – conforme
bastantes análises que circulam na Duma [parlamento russo].
A Ucrânia é um buraco negro absoluto. Há o impasse bielorrusso. O Covid-19. O
circo Navalny. A "ameaça" ao Nord Stream-2.
Fazer a Rússia regressar ao drama Arménia-Azerbaijão significa voltar a atenção
de Moscovo para o Cáucaso para que haja mais liberdade de acção turca noutros
teatros – no Mediterrâneo Oriental contra a Grécia, na Síria, na Líbia. Ancara
– insensatamente – está envolvida em guerras simultâneas em várias frentes e
praticamente sem aliados.
O que isto significa é que ainda mais do que a NATO, monopolizar a atenção da
Rússia no Cáucaso, acima de tudo, pode ser proveitoso para o próprio Erdogan.
Como o Sr. C salienta, "nesta situação, a alavancagem/"carta de
trunfo" de Nagorno-Karabakh nas mãos da Turquia seria útil para
negociações com a Rússia".
Não há dúvida: o sultão neo-otomano não dorme nunca.
03/Outubro/2020
Ver também:
RIA: 430 more Syrian mercenaries deployed in Azerbaijan
Russia calls for withdrawal of terrorists, fighters from Karabakh conflict zone
Será o Artsakh (Carabaque) a tumba de Erdogan ?
Conflict between Armenia and Azerbaijan flares again over
disputed Nagorno-Karabakh region
[*] Jornalista. Muitos do seus livros
encontram-se aqui .
O original encontra-se em www.strategic-culture.org/...
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/
Sem comentários:
Enviar um comentário