segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O Costume…


Gustavo Carneiro*

As recentes declarações do embaixador dos EUA dando ordens sobre o que Portugal pode ou não fazer de negócios com a China obrigaram o próprio MNE Santos Silva a dizer umas palavras “de demarcação”. Palavras que, lidas com atenção, demarcam muito menos do que parece e, sobretudo, indicam mais uma vez que as decisões de política externa portuguesa estão longe de ser tomadas “pelas autoridades portuguesas competentes”. O embaixador pode ser pouco diplomático, mas deverá conhecer bem interlocutores do género de Santos Silva, e ter como garantido que chegada a hora serão fielmente alinhados e submissos.

Em entrevista recente ao Expresso, o embaixador dos EUA em Portugal, George Glass, avisou (ordenou?) que «Portugal tem de escolher agora entre os aliados e os chineses (…) Não pode ter os dois.» Num tom nada diplomático, comportando-se aliás como se de um governador de província se tratasse, Glass lançou várias ameaças: se a Huawei entrar na rede 5G nacional, isso «mudará a forma como interagimos com Portugal em termos de segurança e de Defesa»; a eventual gestão do porto de Sines por uma companhia chinesa comprometerá a distribuição de gás norte-americano naquela infra-estrutura; e as empresas nacionais que, como a Mota Engil, tenham capital chinês, poderão vir a sofrer sanções…

As declarações do diplomata, proferidas de modo particularmente directo e despudorado, suscitaram diversas reacções e outros tantos significativos silêncios. No próprio dia em que a entrevista foi publicada, Augusto Santos Silva garantia que em Portugal as decisões «são tomadas pelas autoridades portuguesas competentes». Vários jornalistas e comentadores apressaram-se a interpretar estas palavras como uma clara demarcação da postura e das internções do embaixador norte-americano e uma inequívoca afirmação de soberania do Governo português. Tivessem sido estas as únicas afirmações do titular da pasta dos Negócios Estrangeiros e poderia até haver motivos para celebrar tanto brio patriótico, pois afinal mais vale tarde do que nunca. Acontece que Santos Silva disse algo mais…

Disse, por exemplo, que as tais decisões que caberiam às autoridades portuguesas são tomadas não só com base nos interesses nacionais, mas também de acordo com o «processo de concertação a nível da União Europeia» e com o «sistema de alianças em que Portugal se integra, que é bem conhecido e está muito estabilizado». Horas mais tarde, em declarações à Lusa (seguramente para embaixador ouvir), rejeitou que as ameaças norte-americanas pudessem ser entendidas como ingerência e renovou os votos de fidelidade aos EUA e à NATO com um altissonante «somos aliados confiáveis e credíveis».

Se as afirmações de George Glass podem chocar, de modo nenhum surpreendem. A pressão e a chantagem são parte integrante do ADN do imperialismo, que a elas recorre com frequência, incluindo sobre os ditos aliados. Mas neste caso nem é necessário, pois como Santos Silva fez questão de garantir, a política externa portuguesa continuará, como até aqui, submissa aos seus ditames. Contrariando a Constituição da República, que a deveria reger.

*O Diário.info

*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2444, 1.10.2020

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