sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Portugal | A falsa ilusão de segurança do Governo

Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

A decisão do PS de navegar à vista após a vitória nas últimas eleições, rejeitando acordos escritos à Esquerda para os quais (pelo menos) o Bloco de Esquerda sempre se mostrou disponível, criou condições para que uma crise política pudesse estar sempre ao virar da esquina.

Não tomou em conta a pandemia. Não podia. Ninguém a podia prever. Com ela, ficou impossibilitado de sonhar com crises políticas que lhe trouxessem maiorias relativas reforçadas ou humidamente absolutas. O Governo tem mesmo de negociar e assumidamente com quem não pretendeu ter acordos escritos. Assim tem feito. Até agora, altura em que resiste.

A pandemia pode dar ao Governo uma falsa ilusão. Dominado pela ideia de que tudo o que o país não precisa é de uma crise política, permite confiar que a oposição jamais será capaz de arcar com esse ónus. Interiormente, António Costa pode convencer-se de que o povo português jamais perdoaria à oposição que deixasse arrastar o país para uma crise política em tempo de pandemia ao não viabilizar o Orçamento do Estado para 2021. Uma falsa ilusão de segurança. O que os portugueses certamente não perdoariam ao Governo é que permitisse abrir uma crise política por razões tão evidentemente irresponsáveis como continuar a alimentar o Novo Banco sem uma investigação séria, financiando os seus prejuízos com dinheiros públicos, caucionando positivamente uma gestão danosa repleta de opacidade. A manobra circense de serem os bancos a financiar o Fundo de Resolução mostra bem como ninguém parece preocupado, uma vez mais, com o dinheiro dos contribuintes.

O que ninguém poderia perdoar ao Governo é que fosse capaz de abrir uma crise política por, numa altura em que a pandemia põe em causa o emprego de tanta gente, ser um facilitador de uma vaga de despedimentos fáceis e baratos com apoios do Estado, sem subsídios de desemprego que respondam verdadeiramente às situações de pobreza. É imperioso acabar com a ficção de que migalhas de aumento do salário mínimo podem fazer a diferença na contenção do défice. Essa foi a narrativa do empobrecimento e da precariedade. Nem ninguém compreenderá uma crise política aberta pelo Governo pelo facto de este não se comprometer, de uma vez por todas, a cumprir o acordo para o aumento do número de profissionais no SNS que tão bem, mas tão esforçadamente, nos tem defendido em tempos tão penosos.

A irresponsabilidade e a soberba podem andar de mãos juntas, mas o Governo tem poucos dias para deixar cair este estado de espírito, semelhante ao por vezes instalado nas equipas ditas grandes. Aquela ideia feita de que, mais cedo ou mais tarde, a bola vai acabar por entrar na baliza. Ao contrário dos recintos desportivos, há todo um país a assistir e que não merece, sobretudo neste momento para todos tão exigente, ser colocado na posição de ter de esperar por um nervoso final decidido a penalties políticos.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

*Músico e jurista​​​​

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