Maria João Antunes | AbrilAbril | opinião
No conjunto de medidas anunciadas pelo governo no passado dia 31 de Outubro, a proibição da realização de feiras e mercados de levante é particularmente útil para se compreender os dias que vivemos. Deixemos de parte que o governo, entretanto, face ao descontentamento e à contradição evidente, deu o dito pelo não dito e deixou às autarquias o poder de decidir sobre a realização ou não das feiras. Deixemos também de parte o outro exercício recente de testagem da capacidade de encaixe da população, na gíria o vulgar «atirar o barro à parede», com a proposta de obrigatoriedade de utilização da aplicação StayAway COVID. Atentemos na contradição evidente entre proibir mercados de produtos essenciais ao ar livre e manter abertos centros comerciais, supermercados e hipermercados.
O que esta contradição mostra é que, por um lado, o governo está neste momento, e já há algum tempo, a formular medidas sem o mínimo de fundamentação científica e sem qualquer decoro em violar direitos fundamentais inscritos na lei fundamental do País, a Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, mostra que no combate à Covid-19 o governo estará disposto a quase tudo, desde que isso não colida com os interesses das grandes empresas e monopólios. Só assim se explica a operação em torno das feiras que, a concretizar-se, canalizaria para os grandes centros comerciais, supermercados e hipermercados o pouco negócio que ainda escapa aos grandes distribuidores e que condenaria os feirantes e suas famílias à pobreza.
A tentativa de proibição de feiras por estes dias e o seu efectivo encerramento durante algum tempo a partir de Março deste ano resume plenamente a operação em curso desde essa altura no nosso país e no mundo.
Trata-se de uma operação gigantesca de concentração de capital, que tem como objectivo primeiro aumentar a exploração do trabalho e que se tem servido de todos os instrumentos e estratégias possíveis para ser bem-sucedida. Uma operação do capital bem acompanhada por uma outra operação, essa de terrorismo desinformativo por parte dos meios de comunicação social, também eles nas mãos dos grandes grupos económicos, e que vai abrindo caminho a que os trabalhadores aceitem os novos termos da exploração do seu trabalho. Uma operação que não tem qualquer relação com saúde pública ou fundamentação científica a não ser a utilização da «crise sanitária» como pretexto para os seus verdadeiros intentos. Afirmação que se prova diariamente pela relação entre aquilo que ganhamos com as medidas de «protecção» e o que perdemos.
Neste ponto é importante relembrar as reflexões sobre os picos na mortalidade feitas no início de Outubro e reafirmar que, passado um mês, essas mesmas reflexões mantêm toda a actualidade. Apenas a título de exemplo, veja-se o caso de França, que na semana 43, de 19 a 25 de Outubro, tem um z-score de -2.28, ou seja de mortalidade abaixo do expectável, e que, mesmo assim, decretou confinamento geral até 1 de Dezembro e teletrabalho obrigatório.
E, de volta ao cerne da questão,
quando milhões de trabalhadores em todo o mundo são obrigados a trabalhar a
partir de casa, há dois elementos essenciais que sobressaem de imediato: o não
fornecimento dos instrumentos de trabalho por parte dos patrões e o não
pagamento do acréscimo de despesas que os trabalhadores têm quando estão
colocados
O que se verifica é que os trabalhadores em teletrabalho deixam de ter controlo sobre as horas trabalhadas e passam a controlar-se e a serem controlados pelos objectivos atingidos, pelas tarefas concluídas. Esta alteração, neste momento a ser testada em milhões e milhões de empregos, oblitera o pagamento de trabalho suplementar, o pagamento extra no trabalho nocturno ou no trabalho ao fim-de-semana. Se as condições de trabalho se alteram por algum motivo (mesmo que não seja da responsabilidade do trabalhador) a tendência é utilizar tempo de descanso para concluir a tarefa prevista. Em suma, o teletrabalho esbate a delimitação entre o tempo de trabalho e o tempo livre, e, nessas circunstâncias, o trabalhador é sempre automática e naturalmente pressionado para trabalhar mais horas. Ora, se trabalha mais horas e ganha o mesmo, aumentou a exploração.
Na educação a generalização do ensino à distância corresponde também à total desfiguração do acto educativo. Educar é a arte da relação, da relação face-a-face e não existe educação sem relação professor-aluno e sem relações entre pares. Mas o resultado do ensino à distância que conta para o capital mede-se pela tendência para a redução de custos nos serviços públicos de educação e a transformação da educação em negócio, compartimentada, segmentada, vendida em módulos digitais e interactivos para todos os gostos e todos os preços. Tendencialmente o que acontece quando um professor «dá aulas» pelo Zoom é que essas «aulas» podem ser fornecidas para 10 estudantes da mesma forma que para 100 estudantes. Imaginem o que esta constatação pode fazer na redução de custos com a educação. Menos professores, menos instalações, menos funcionários… Óptimas notícias para os défices orçamentais dos países.
Na saúde o fenómeno repete-se. A teleconsulta, a telesaúde contribuem para reduzir custos, mas também para conduzir utentes para os serviços privados. A degradação dos serviços públicos tem sempre como resultado abrir caminho aos serviços privados. Quando os trabalhadores não têm resposta no SNS vão procurar alternativas. Só no nosso país especificamente, que é a realidade que melhor conhecemos, desde Março contabilizam-se milhões de consultas e cirurgias não realizadas, com o resultado de os hospitais e clínicas privadas aumentarem proporcionalmente os serviços prestados. A resposta do governo à Covid-19 já fez mais pelos interesses privados na saúde do que qualquer outro fenómeno ou medida. Mas a operação continua, não chegam os milhões pagos aos laboratórios para testes, não chegam os novos doentes atirados ao privado por falta de resposta, não chegam as transferências do orçamento de Estado, é preciso mais. Pretende-se combater a distinção ideológica (ver aqui e aqui) entre público e privado até que já só haja privado e um serviço público residual.
Os objectivos da operação em curso do capital não são novos. Outros exemplos existem, mas atentemos numa comunicação da Comissão Europeia, de há dez anos, denominada A Digital Agenda for Europe e que diz na introdução o seguinte:
«Confrontados com o envelhecimento da população e a concorrência mundial, colocam-se-nos três opções: trabalhar mais, trabalhar mais tempo ou trabalhar de um modo mais inteligente. Muito provavelmente teremos de optar pelas três, mas a terceira opção é a única que garante níveis de vida cada vez mais elevados para os europeus». (Comissão Europeia, 2010:3)
Não se pode dizer que a União Europeia e seus organismos não assumiram ao que vinham: disseram-nos há dez anos que teríamos de trabalhar mais, mais tempo e de forma mais «eficiente». Não disseram que face ao envelhecimento da população e à concorrência mundial teríamos de impor novos limites à actuação dos grandes grupos económicos. Não disseram que a riqueza teria de ser melhor distribuída. Não! O que disseram é que os trabalhadores tinham de trabalhar mais para sustentar os seus velhos e para os grandes grupos económicos poderem manter ou, quem sabe até, fazer crescer os seus lucros. É que a Comissão Europeia de há dez anos, assim como a de hoje, e assim como a maioria dos governos no mundo, sejam nacionais ou transnacionais, não são mais do que representantes do capitalismo. São o seu braço armado, armado de leis, armado de sistemas judiciais e prisionais e armado de forças de segurança e exércitos cada vez menos ligados ao povo.
No mesmo documento citado, de 2010, lá estava a telesaúde e a teleconsulta, quando a comissão europeia afirmava que «a implementação das tecnologias de saúde em linha na Europa pode melhorar a qualidade dos cuidados de saúde, reduzir os custos e promover uma vida autónoma, inclusive em locais distantes» (Comissão Europeia, 2010:33).
Para a educação, em estudo encomendado de 20161, lá estava o ensino à distância e as tecnologias digitais cheias de vantagens na redefinição dos sistemas educativos, podendo inclusive, a partir de mais dados e algoritmos elaborados, fornecer «tutores interactivos» e, claro, oferecer «oportunidades de formas flexíveis e de baixo custo para requalificar e actualizar as competências dos trabalhadores ao longo da sua vida» (Berger, T., & Frey, B., 2016:37).
A agenda da União Europeia em termos de digitalização da saúde, educação, administração pública, cultura e lazer e em termos de automação do trabalho, assume uma contradição fundamental que já todos sabemos: é que, de facto, se diferentes postos de trabalho podem ser ocupados por tecnologia e se diferentes serviços podem ser mais eficientes com a utilização suplementar das ferramentas digitais, então os trabalhadores poderiam trabalhar menos e menos horas, ter acesso a melhores serviços prestados de forma menos burocrática e viver melhor, com menos desperdício mas, ainda assim, com abundância. A tecnologia, sinal da evolução e das conquistas humanas, assumiria então um natural papel instrumental na melhoria das condições de vida dos trabalhadores.
Mas não é disso que se trata para o capitalismo. Assim como já não é de saúde que falamos quando discutimos a Covid-19. No início deste ano tivemos reais preocupações e medos sobre a Covid-19. Essas preocupações e medos mantiveram-se sustentadamente durante grande parte do ano. Mas, neste momento, já não podemos pagar o preço das genuínas preocupações e medos com a saúde pública. Os trabalhadores não têm mais tempo para dar ao capital nesta operação de aumento da exploração. E isso mesmo têm mostrado em muitos países do mundo. Quando vemos a população a vir para a rua manifestar-se contra os mais vis abusos de poder na Catalunha, em Barcelona, munidos da máscara cirúrgica ou comunitária, não estamos a falar de pequenos grupos extremistas e negacionistas da doença. E assim é em França e noutros locais. A operação terrorista de desinformação procura polarizar o mundo entre aqueles que se defendem da doença e querem proteger os outros e aqueles que são extremistas, negacionistas e irresponsáveis.
Não se nega que a extrema-direita aí está à espreita, tal qual MacGyver pronto a aparecer para «resolver» qualquer imprevisto. Mas há mais na história do que Trumps versus Merkels. Há aqueles que, reconhecendo a existência da doença (é inegável) e a necessidade de proteger as populações, já perceberam que não podem alinhar cegamente com os seus governos porque, enquanto para os primeiros se trata duma questão de saúde e de humanismo, para os seus governos há muito tempo que passou a ser uma questão de ir o mais longe possível no aumento da exploração, deterioração das condições de trabalho, destruição e privatização de serviços públicos. Bolsonaro e Trump têm mais em comum com Merkel e Macron do que com qualquer trabalhador de máscara a manifestar-se contra as restrições impostas em Barcelona e isso é que é fundamental que entendamos. É que, fait divers à parte, os líderes mundiais estão de acordo no fundamental: tudo fazerem para concretizarem esta nova fase do capitalismo e do imperialismo. Uma nova fase na «digitalização da vida» roubando aos trabalhadores a vida colectiva, associativa, cultural, mas também o tempo e as ruas, literalmente.
Nota: 1 - Berger, T., & Frey, B. (2016). Digitalisation, jobs and convergence in Europe: strategies for closing the skill gap (vol 50). Oxford: Oxford Martin School. – Documento preparado para a Comissão Europeia, disponível aqui.
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