quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

EM BUSCA DAS FRONTEIRAS PERDIDAS...

(APONTAMENTOS DE LÓGICA COM SENTIDO DE VIDA, UMA IMPRESCINDÍVEL ESSÊNCIA DA PRÓPRIA HISTÓRIA QUE NOS HAVIA DE TOCAR)

Martinho Júnior, Luanda

01- Há quarenta e cinco anos a vida fluía um pouco como as marés: com refluxos e fluxos movimentados, por vezes em espumosa intempestividade, mas sempre estrondos e cheiro a pólvora, sorvendo dum lado e do outro das frentes de luta um poderoso turbilhão humano!

De forma vigorosa era a dialética da vida que estalava num inusitado frenesim percutindo os tambores do tempo e ecoando pelos horizontes fora, espalhando-se por todo o território angolano!

Nos dois primeiros terços do ano de 1975 foi um refluxo que quase reduziu as fronteiras a um estreito corredor no paralelo de Luanda, com as defesas da capital implantadas nas serranias dos Dembos, a norte e nos altos a sul do Longa, nas eriçadas vértebras do Quanza Sul…

Para oeste, na profundidade do Dondo, eram pequenos destacamentos que vigiavam o eixo do triângulo da planície do litoral, entre o Cuanza e o Bengo, cujas margens se aproximavam nas áreas de Catete… depois era N’Dalatando, Malange e pouco mais no lugar onde nascia o sol!

As Forças Armadas Populares de Angola haviam chegado a essa situação asfixiante, porém com uma contrapartida inestimável, o trunfo que se havia de jogar na hora certa e com reservado sabor a vitória: a partir sensivelmente de Setembro, Luanda guerrilheira e popularmente ciosa de si própria, ficou limpa de forças invasoras trazidas por aqueles que sendo etno-nacionalistas recrutavam mais no exterior do que no próprio país que diziam querer libertar e fê-lo com um amplo esforço, um decidido esforço endógeno mobilizador e catalisador, tirando partido do fermento que havia sido lançado e cultivado, apesar de tantos reveses, desde o 4 de Fevereiro de 1961!

Os progressistas portugueses que ora compunham o MFA, sabiam que a receita colonial de “africanizar” a guerra, significou não só o equívoco “in extremis” que levou ao colapso colonial mas também, por causa dos laços que criou na então Leopoldville e nas nascentes do Lungué Bungo, para dar asas aos etno-nacionalismos em Cabinda, no norte e no centro-sul!...

Era precisamente esse artifício que o movimento de libertação em África teria de neutralizar e se possível vencer, para depois alinhar o seu empenho dialético na justa luta de libertar toda a África Austral!

Sobre Luanda contudo, aproveitando os transvases da planície do litoral que se alongava entre as lagoas do Bengo e o curso final do Dange, a ameaça estava confinada e, escaramuça a escaramuça, foi possível criar o engodo e a armadilha mortal do funil de Quifangondo…

Naquele tempo, o Grupo de Operações Especiais do Estado Maior Geral das FAPLA, desdobrava-se vertiginosamente de missão em missão e à longa batalha popular pelo domínio de Luanda e seus arredores, sucedeu que se havia que saber defender a capital no seu mais profundo entorno (ainda que prevendo sempre o colapso das linhas) para, depois de assegurá-la no contrarrelógio do 11 de Novembro, haver que ir à busca das fronteiras perdidas, nas obrigações de “um só povo e uma só nação”!...

02- Para os efectivos do GOE, na ânsia de cumprir as missões quase em catadupa, havia sempre que saber preparar os embates, conforme os sucessivos objectivos marcados, a tipologia do terreno dos mais diversos teatros operacionais urbanos ou rurais e a qualidade humana dos seus heterogéneos mas escassos recursos, que deviam ir-se preparando para vencer o inimigo qualquer que fosse o cenário…

No GOE era-se proveniente dos mais díspares lugares da imensa Angola, desde os natos nas cidades do litoral aos provenientes das áreas rurais. com um núcleo de camaradas originários do Bié que foram importantes antes, durante e imediatamente depois da independência, em todos os embates que houve que travar!

Então era muito importante que a preparação fosse feita em versáteis centros de instrução revolucionária instalados ad hoc, primeiro para contribuir para garantir o domínio na e da capital, segundo para que não houvesse violação da tão estreita faixa do paralelo de Luanda, finalmente para que a partir dos baluartes assegurados, fosse assumido o expansivo repto “de Cabinda ao Cunene e do mar ao leste”!

Em Luanda a base clandestina do GOE implantada na Camuxiba, a dois passos do Estado Maior Geral das FAPLA que ocupava o Morro da Luz, era também um centro de instrução revolucionária afim às missões de luta em jeito de guerrilha urbana na capital, quando foi necessário livrá-la da presença dos invasores com o rótulo de Exército de Libertação Nacional de Angola, o ELNA do instrumento etno-nacionalista que era então a FNLA sob a liderança de Holden Roberto…

Nos Dembos, a roça Sagri, pendurada nos contrafortes norte da frondosa montanha que a sul era a matriz do pequeno rio Quiúlo, afluente da margem direita do Zenza, a partir do momento em que as linhas se estabilizaram na aldeia de Quiqueza e na baixa de Cacamba, serviu de base na preparação para a retomada em jeito de assalto de Quibaxe, com um pendular movimento nocturno, a corta-mato, de aproximação…

Para ir à busca das fronteiras perdidas o centro de instrução revolucionária distendeu-se sem tempo para retemperar forças entre as missões, para a ilha da Cazanga, a “ilha dos padres” na baía do Mussulo, a fim de preparar e adaptar o efectivo do GOE à manobra anfíbia de desembarque e assalto, em função das colunas que se teriam de formar para norte e para sul a fim de alcançar as fronteiras distantes…

No parto tão difícil da independência, com tantas e tão desencontradas nuances duma tão turbulenta descolonização, fluía a tensão entre movimento popular de libertação e os etno-nacionalismos enquanto se esbatia a tensão com as mais renitentes resistências coloniais e, se era sensível a aliança com o Movimento das Forças Armadas Portuguesas a fim de garantir o êxito do plano para o completo domínio da capital, era necessário prever e preparar o “the day after” ao 11 de Novembro de 1975 em toda a sua vasta extensão!

Foi assim que Cuba Revolucionária acorreu com Operação de longa distância com o nome duma escrava que se havia batido pela liberdade, com o nome de Carlota…

Foi assim que o movimento de libertação em África foi apoiado e reforçado no terreno das batalhas que se avizinhavam e sucediam ao 11 de Novembro…

Foi assim que os cálculos dos sistemas invasores a coberto dos rótulos etno-nacionalistas, se esgotavam em estrondosas derrotas que demonstravam a inutilidade sangrenta dos seus propósitos por via da égide da perfídia de Kissinger, que sob o síndroma do Vietname, tinha que ser escondido do próprio “eleitorado” estado-unidense da época!...

03- No transe do esforço decisivo da libertação em curso, os refluxos e os fluxos das linhas da frente eram simultaneamente digeridos no plasma da ânsia pela vida: resgatar nossas próprias famílias e rebentos das ameaças que pendiam daquele tempo e daquele espaço carregados de eléctrica incerteza, sabendo que era desse pungente modo que se estavam a resgatar os povos da África Austral, de séculos de convulsão colonial e dum “apartheid” que dava sequência aos genocídios sem piedade que ocorreram desde a Conferência de Berlim até sensivelmente uma década depois do fim da Iª Guerra Mundial!

Por dentro de cada um dos combatentes do movimento de libertação, modelando a sua vontade que havia que tornar indómita, a essência dialética da luta tinha essa alma substantiva entrelaçada nos ingredientes dos mais justos anseios e das seculares aspirações de gerações e gerações de ignotos africanos, que incluíam os escravos e seus descendentes do outro lado do remoto Atlântico!...

Na imagem próxima eram as crianças que nasciam e emanavam os primeiros gestos numa atmosfera em que Angola, ela própria despontava resolutamente para a vida… na imagem histórica, eram os resgates imprescindíveis que arrancavam do torpor as torrentes humanas que ansiavam pela liberdade pela qual se lutava com tanta firmeza, tanta emoção e tanto amor colectivo que nos fazia homens e combatentes!...

Eram esses os direitos humanos que se assumiam intrepidamente no colectivo, quando se lutava pela razão básica da autodeterminação dos povos!

Era essa substância que transmitia o vigor e o amor vital para que houvesse impulso anímico para todo o tipo de missões, só havendo que corresponder à lógica com esse sentido a fim de alcançar esses direitos humanos no colectivo, predispostos à independência e finalmente ao exercício duma mais que legítima soberania!...

Quando o GOE pisou o areal da ilha Cazanga e o escolhido efectivo se instalou em jeito de centro de instrução revolucionária preparando a missão que se seguia no reciclado encadeado de tantas outras, o parto do 11 de Novembro de 1975 já estava consumado, mas a criança nascida em tão duras condições, estava ainda comprimida e era necessário que seu corpo se distendesse a fim de cumprir com seu próprio destino de vitalidade e a sua própria profissão de fé!

04- As condições locais da ilha Cazanga eram relativamente precárias e a logística que se dispunha era ao nível dessa precariedade, naquele paraíso com atmosfera regeneradora a sul de Luanda, entre finais de 1975 e os dois primeiros meses de 1976…

Na balança colectiva entre deveres a cumprir e direitos consumados ou a alcançar, os combatentes concentravam-se entre as águas que escorriam maré a maré, no cumprimento das missões que se vocacionavam para um amplo espectro de lógica com sentido de vida: lutar pela vida (e pela sobrevivência) era lutar pela descompressão duma criança que nascia feita pátria de direitos fundamentais jamais antes alcançados!

Foi um ciclo peculiarmenmte singular: entre o treino militar de desembarque e assalto de pequenos grupos táticos que se queriam fazer de fuzileiros, as almoçaradas de mabanga grelhada recolhida do fundo lodoso das reentrâncias da pequena ilha, com uma pitada de limão, o fruto que sobrava da bravia plantação local que a comunidade católica piedosamente antes havia pacientemente cultivado…

Como não havia lenha ou gaz para assar a mabanga, ou o peixe ocasional que se conseguia pescar, destacavam-se alguns dos componentes do efectivo a fim de colectar fezes de burro secas (a ilha tinha um pequeno bando de burros e cabritos que haviam sido abandonados e fugido para a beira do pântano a sul)… um óptimo combustível que deu muito jeito para as emergências quotidianas!

A mobilização fazia-se desse modo, interiorizando no quadro da nova missão que se seguia as técnicas que havia de aplicar na hora da verdade e comendo sobretudo em função do que a natureza local havia propiciado!...

Foi assim aquele efémero paraíso!

05- Ainda houve uma Lancha Pequena de Desembarque que foi utilizada, daquelas que o MFA havia oferecido a Angola, mas os inexperientes marinheiros da embrionária manobra naval adstrita às FAPLA, não sabiam lidar com as marés da baía do Mussulo e, numa maré baixa, a LDP ficou largas horas encalhada, até que a cheia voltasse…

Desse modo só se utilizavam pequenas embarcações de recreio colectadas entre as abandonadas pela precipitação da fuga de seus proprietários, embarcações encontradas no Clube Naval de Luanda, entre elas um zebro… pois a LDP não devia nem podia mais ali voltar…

Foi assim que se procedeu á ambientação e à aprendizagem, mantendo os cuidados especiais sobretudo com as armas de dotação individual que não podiam enferrujar…

A evolução dos grupos táticos em desembarque, treinava-se em pleno areal da Cazanga, até ao reduto dos cabritos e dos burros sobreviventes… à medida que decorria a nossa presença, o número dos animais ia ficando cada vez mais reduzido, por que a dieta de mabanga e côco era mais que insuficiente…

A saga dos centros de instrução revolucionária ad hoc do Grupo de Operações Especiais da Segurança do Estado Maior Geral das FAPLA não terminaria por aí, mas na memória dos tempos ficou esse meio oleoso sabor de mabanga grelhada, limpa de cinzas e deglutida com uma contrastante pitada de limão, cujo odor era algo que se misturava aos cheiros da maresia, do ar rarefeito dos areais escaldantes como das brisas retemperadoras que levemente sopravam ao abrigo dos coqueiros junto à pequena capela da ilha, onde havíamos assente o pequeno estado maior do GOE e todo o seu efectivo estoicamente combatente…

Para poder melhor me ambientar depois dum dia de brios e de estafas, à noite estendia cobertor e poncho no limite cimentado e duro do pequeno pontão junto à capela e então, olhando as estrelas, embalado pelo marulhar das mansas correntes marítimas que nunca ali podiam parar e pela fresca suavidade das brisas noturnas, entre humidades podia por fim deitar-me, adormecer e… sonhar!

Martinho Júnior -- Luanda, 20 de Dezembro de 2020.

Fotografias piedosamente tomadas pelo camarada Eduardo Cruzeiro que as guardou dezenas de anos e me entregou cópias para que a memória fosse sempre acompanhada de umas poucas imagens sempre com dialéticos sonhos por realizar:

01- Uma pose entre a instrução tática dum pequeno grupo no interior do areal da ilha Cazanga, com o internacionalista português Eduardo Cruzeiro, Alex, no comando;

02- Alex instruindo tiro a partir do solo, no perímetro central da ilha Cazanga;

03- Outra pose entre treinos; alguns tiveram de se adaptar ao calor e à intensa humidade do litoral;

04- No fim do curso, antes de partirmos para integrar as colunas que iriam progredir até às distantes fronteiras do norte, não podia faltar um almoço de confraternização e comum solidariedade; esse é um flagrante da preparação desse almoço, aproveitando a esparsa sombra dos coqueiros junto à capela, ao habitat masculino e embarcadouro da Cazanga do Mussulo;

05- Ágil como o vento, leve como uma sombra, fugidio e avesso a qualquer reportagem de ocasião, entre o efectivo presente no almoço de fim de curso do CIR Cazanga, o primeiro treino de fuzileiros da Angola nascida a 11 de Novembro de 1975, sem dar pela câmara fui finalmente flagrado para a posteridade; na composta mesa e a preceito, as flores eram raquíticas “beijo de mulata”, colhidas piedosamente no salvado jardim da parte feminina do também abandonado espaço católico da ilha Cazanga; à esquerda na foto, vê-se o pequeno pontão do embarcadouro onde tantas vezes, à luz das estrelas e dos difusos reflexos luminosos da esfumada Luanda suspensa no horizonte da época, pernoitei ao relento, dormi e sonhei… Fevereiro ou Março de 1976…

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