segunda-feira, 29 de março de 2021

O fator 'x' para Marcelo contrariar Costa

Um Governo que gasta menos do que orçamenta pode encaixar mais despesa

O Marcelo político ganhou ao Marcelo jurista. Além de não ter gostado de ver Costa pressioná-lo em público, o Presidente que há meses pede mais apoios sociais recusou travá-los só porque vêm da oposição. Se o Governo deixou milhões da despesa orçamentada por executar, o PR desafia as Finanças a encaixarem este aumento. Quanto à lei travão, Marcelo joga com ela desde que liderou o PSD - o TC deixou passar uma coligação negativa contra as portagens no Oeste

Marcelo Rebelo de Sousa andava há meses a pedir atenção à necessidade de reforçar os apoios sociais a famílias e empresas durante a pandemia e só encontra duas razões para o próprio Governo não ter ido mais longe nesses apoios. Por um lado, o peso das Finanças, sob a tutela do delfim de Mário Centeno, que gere as contas com rédea curta e o olhar atento do seu ex-chefe, a partir do Banco de Portugal; por outro, o facto de António Costa não ter querido ceder a uma 'coligação negativa' saída do Parlamento por perceber que, politicamente, isso seria um ganho para as oposições.

"Isto é política pura e insere-se num clima de luta eleitoral em que cada um quer dizer: eu é que dei mais apoios", eis como este caso é avaliado pelo Presidente. Ao que o Expresso apurou, Marcelo não encontra razoabilidade para o Executivo reagir de forma tão dramática a um reforço dos apoios sociais, sobretudo quando as contas públicas têm dado inesperados sinais de saúde.

Esse terá sido, aliás, um fator decisivo para Marcelo Rebelo de Sousa promulgar os três diplomas que reforçam apoios a famílias e empresas e que o primeiro-ministro, como o Expresso noticiou e o próprio António Costa confirmou publicamente, está apostado em travar. Fonte próxima do Presidente, diz que é preciso ver se "um Governo que entre o que tinha previsto gastar no Orçamento de Estado para 2020 e depois no Orçamento Suplementar, deixou por executar quase sete mil milhões, agora não consegue encaixar este acréscimo de despesa" (na verdade, foram exatamente 1081 milhões de euros que foram orçamentados como despesa e acabaram por não ser gastos, segundo contas do jornal Público deste sábado).

Não por acaso, na justificação por escrito da promulgação das três leis que publicou no seu site oficial, Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou que os montantes envolvidos neste acréscimo de despesa nem estão "definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar". E assim o Presidente tenta defender-se do espartilho da chamada lei-travão, que impede que seja o Parlamento a forçar aumentos de despesa ou cortes de receita.

Os três diplomas "deixam em aberto a incidência efetiva na execução do OE", argumenta o PR. E embora o constitucionalista Vital Moreira, ex-juiz do Tribunal Constitucional e para quem não restam dúvidas de que a lei-travão está a ser beliscada, classifique a argumentação de Marcelo de "ficção constitucional", o Presidente relativiza. Se o primeiro-ministro cumprir a ameaça de mandar as leis para o TC, logo se vê. A resposta pode durar meses e, politicamente, o Presidente da República acreditar que fica do lado certo.

"A adoção das medidas sociais aprovadas corresponde, em diversas matérias, na substância e na urgência, a necessidades da situação vivida", sublinhou o Presidente, assumindo que em tempos de emergência não se pode olhar só para as questões jurídicas e fechar os olhos às questões sociais ou políticas. A perceção de que os apoios em jogo são, mais do que justos, urgentes e necessários, teve um peso decisivo na opção presidencial.

Isto, sabe o Expresso, apesar de o PR também se ter sentido desafiado ao ver António Costa montar uma ação de pressão pública para o forçar a travar as leis, avisando que ou ele as vetada ou enviava para o Tribunal Constitucional ou seria o próprio Governo a fazê-lo.

A forma como o PM geriu isto foi pouco hábil", comenta fonte próxima de Marcelo Rebelo de Sousa, "porque ao fazer quase um ultimato em público não deixou espaço para que o Presidente fizesse outra coisa". Mas, em boa verdade, a decisão de Marcelo dificilmente seria outra. "Esta é daquelas matérias em que o político se sobrepõe ao jurista", explicam ao Expresso. Depois de andar a pedir um reforço de apoios para pais, trabalhadores e sócios de empresas, o Presidente da República ficaria em xeque se vetasse as leis.

A FLEXIBILIDADE DA LEI-TRAVÃO

A delicadeza de ter que justificar como contornar a lei-travão, somada à perceção de poder estar a abrir um precedente para futuras coligações negativas que tornem a vida do Governo um inferno, mereceram alguma reflexão ao Presidente, mas Marcelo Rebelo de Sousa cedo percebeu que não podia travar os diplomas.

A reflexão terá sido, sobretudo, sobre a forma de dar a volta ao texto. E não terá sido por acaso que o Presidente referiu na justificação das promulgações que da parte do Governo tem havido "flexibilidade" na execução dos OE, ao ponto de até atrasar a publicação das leis de execução orçamental.

Fontes da Presidência garantem, aliás, que, como disse Marques Mendes na SICN, já durante a pandemia houve quatro coligações negativas no Parlamento com impacto orçamental à revelia do Governo. E ninguém fez do caso um drama como agora.

Mas Marcelo também sabe que não é líquido que o TC dê razão à tese do Governo segundo a qual os três diplomas em causa merecem um chumbo constitucional por violarem a lei travão. Quando liderava o PSD, em finais dos anos 90, o atual Presidente viu o seu grupo parlamentar, à época liderado por Luís Marques Mendes, fazer uma coligação negativa com o CDS e o PCP para forçar o Governo minoritário de António Guterres a isentar de portagens algumas vias do Oeste.

O Governo tinha acabado de aplicar portagens e o acordo entre as oposições implicaria uma perda de receita previsível para o Estado. E na altura, o então Presidente Jorge Sampaio consultou o Tribunal Constitucional e os juízes dividiram-se. Mas a coligação negativa acabou por ganhar. Por um voto.

Mais problemático poderá ser o impacto político daqui até ao final da legislatura do precedente aberto pelo Chefe de Estado ao avalizar uma coligação negativa contra a vontade do Governo. Marcelo Rebelo de Sousa, que não se tem cansado de alertar que não quer crises políticas nem pântanos, voltou a carregar nessa tecla na mensagem que publicou no seu site oficial, defendendo o cumprimento da legislatura e avisando que este caso não pode ser uma prática corrente.

Pelo contrário, o Presidente deixou claro que, a repetirem-se iniciativas similares das oposições, ele próprio poderá decidir em sentido oposto, nomeadamente "no caso de a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do Orçamento de Estado".

O recado vai direto para as oposições - não contem com ele para repetir muitas vezes coligações negativas que possam pôr em xeque a estabilidade da legislatura. Mas o recado maior foi para o Governo, que Marcelo lembrou ser minoritário e, por isso, obrigado a saber negociar. Sobretudo em questões de óbvia razoabilidade ou urgência social.

Ficou escrito pelo próprio na justificação das promulgações polémicas. Há que "manter a preocupação de evitar agravar querelas políticas, em momentos e matérias sensíveis, o que é ainda mais evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e todos os demais partidos com assento parlamentar, situações essas que aconselham, de parte a parte, a concertação de posições e não o afrontamento, sobretudo numa crise tão grave, a exigir espírito de diálogo e não espírito de dissensão ou discórdia, e muito menos um clima de crise política, a todos os títulos indesejável."

A bola está, agora, do lado do Governo, a quem cabe decidir o envio, ou não, das leis ao Tribunal Constitucional. A coabitação, recheada de juras públicas de Costa e Marcelo de que a "cooperação" é para manter, segue dentro de momentos.

Ângela Silva | Expresso

Sem comentários:

Mais lidas da semana