Com a presente pandemia, ficou evidente que os dirigentes norte-americanos falharam em toda a linha na responsabilidade da segurança sanitária do seu povo.
António Abreu | AbrilAbril | opinião
As administrações norte-americanas passaram, no confronto com a Rússia e a China a partir dos anos oitenta, a atribuir especial ênfase à crítica a invocadas violações dos direitos humanos nesses dois países. Intervenções de origens diversas têm-se concentrado de tal maneira que seria difícil não lhe chamar campanha orquestrada. E não lhe chamem teoria de conspiração porque a verdade está diante dos nossos olhos.
Em matéria de direitos humanos, a Rússia e a China têm consagrado direitos reais mais substantivos que os EUA apregoam. As comparações estatísticas, com indicadores mensuráveis e internacionalmente aceites, são muito claras. Mais claras ainda são com as considerações, bem mais humanas, dos valores que presidem nesses países a tudo que é feito na economia e em todos os sectores de actividade. E ter eu reservas em relação a alguns aspectos das políticas desses dois países não contribui para desfocar estas considerações.
Os EUA e seus «aliados» não se limitam a discutir ideias ou valores. Recorrem a bloqueios, sanções, ingerência nos assuntos internos de outros países e formação de quadros para agirem como factores de desestabilização, e à criação de grupos preparados para actos terroristas.
Saúde para alguns, não para todos
Por estarmos neste longo período de combate contra a Covid-19, o sistema de saúde surge naturalmente como garantia de um dos mais importantes direitos humanos – o acesso a cuidados de saúde.
No início do século XX, o presidente norte-americano Theodore Roosevelt tentou implementar um sistema de saúde assegurado pelo governo para todos os cidadãos, isto é, um sistema público. No entanto, foi derrotado por políticos dos dois principais partidos: Republicano e Democrata. Desde então, instituições privadas são responsáveis pelos convénios médicos. Outros, de «parcerias» público-privadas e hospitais públicos, são financiados pelo estado. Mas só podem aceder a eles quem tem um contrato com uma seguradora para lhe cobrir as despesas de saúde.
Com a presente pandemia, ficou evidente que os dirigentes norte-americanos falharam em toda a linha na responsabilidade da segurança do seu povo, atingindo um desvaire completo com Trump, na sua ideologia e nas atitudes negacionistas, que gerou um desastre de grandes proporções de que é difícil recuperar, devido às muitas deficiências estruturais neste sector.
Com os seus mais de 500 mil mortos, os EUA, com apenas 4% da população mundial, têm até agora 20% das mortes por COVID-19 de todo o mundo.
A débil estrutura de saúde do país constitui há muito uma vergonha para os EUA.
Os EUA são o país mais rico do mundo, mas têm um sistema de saúde péssimo que prejudica a população diariamente e que se repercute numa crise como esta. O sistema de saúde norte-americano verga os pobres, com dívidas acrescidas por medicamentos. Até uma coisa tão simples como uma injecção de insulina custa 275 dólares (cerca de 234 euros), quando o doente não tem seguro médico.
Ora cerca de 46 milhões de americanos (maiores que 18 anos) não têm esse seguro (cerca de 15%), não tendo acesso a assistência médica quando adoecem. Restam de acesso gratuito o Medicaid, que atende alguns tipos de pobres, de aplicação estadual, e o Medicare, a nível federal que dá cobertura aos idosos carentes.
Apesar do descalabro, os dirigentes norte-americanos continuam a defender que o mercado livre resolverá tudo quando tudo o que ele de facto criou foram empresas de saúde altamente lucrativas e um público doente.
É sem duvida, o país do mundo que mais gasta em saúde, com 15% do seu PIB, o que equivale a 6 mil dólares por habitante/ano. Apesar da OMS colocar os EUA abaixo do quadragésimo lugar entre os países do mundo.
Além disso, os consumidores dos planos de saúde com frequência são vítimas de atitudes reprováveis por parte das companhias de seguro. Negar tratamento alegando condições pré-existentes, cobrar taxas extras para alguns procedimentos (uma mamografia, por exemplo). Ou negar o direito de acesso ao plano pela existência de um factor de risco para uma determinada doença.
Todo o ambiente mediático estimula sentimentos não estatais da sociedade americana. «A assistência médica ficaria igual à dos países comunistas e vocês deixavam de poder escolher o vosso médico» faz parte das lengalengas que também conhecemos em Portugal…
Nos Estados Unidos o sistema é um dos mais privatizados do mundo. A saúde não constitui um direito universal e gratuito, como na nossa Constituição. Somente aqueles considerados «incapazes de competir no mercado», como os muito pobres, inabilitados e os idosos que não conseguiram poupar ao longo da vida, e os aposentados são objecto de acções específicas dos programas Medicaid e o Medicare, com referimos atrás. A população inserida no mercado formal de trabalho tem acesso a sistemas de seguro privado contratado pelas empresas.
Por tudo isso, embora ofereça a maior percentagem do PIB em saúde e nela tenha o maior gasto per capita, os EUA executam apenas 44,6% dos seus gastos em saúde directamente pelo sector público, enquanto a média observada por outros países do mundo desenvolvido, como Reino Unido e França, por exemplo, é de 74% dessas despesas. O resultado é a maior taxa de mortalidade infantil (6,37 por mil) entre os países desenvolvidos, enquanto em Portugal é 3,3, é de 5,0 no Reino Unido, 4,6 no Canadá e 3,4 na França. Os EUA apresentam ainda a menor média de expectativa de vida ao nascer: 77,2 anos (em Portugal é 80,9, no Canadá 79,2, na França é 78,5, no Reino Unido é 77,1 anos).
Um sistema judicial que criminaliza as minorias e os pobres
O sistema judicial dos EUA tem a maior taxa de encarceramento do mundo, mais de 700 pessoas por 100.000 habitantes. Isto é várias vezes a taxa de pessoas encarceradas em qualquer outro país.
Os negros e hispânicos, que são cerca de 30% da população masculina americana, representam 60% dos presidiários. Esta discrepância é o indicador principal do racismo sistémico que permeia o sistema de justiça dos EUA, ponto de partida para muito trabalho sociológico.
Antes da legislação «endurecer o crime» aprovada nos níveis federal e estadual nas décadas de 1970 e 1980, as taxas de encarceramento nos EUA não eram muito diferentes das de qualquer outro país – cerca de 100 por 100.000.
Foi a histeria racista em torno do uso epidémico de «crack» em comunidades minoritárias, muitas vezes estimulado pela própria polícia, que desencadeou a «guerra às drogas» e a escalada do número de pessoas, principalmente de minorias, condenadas e enviadas para a prisão. O efeito da «guerra às drogas» nas comunidades minoritárias foi a criminalização de amplos sectores da sua juventude, resultando no seu encarceramento em massa e na sua estigmatização ao longo da vida. Em vez de oferecer às minorias oportunidades de emprego, saúde adequada e educação, elas receberam pena de prisão.
Muitos acusados de um crime são mantidos na prisão por longos períodos antes do julgamento, pois não podem pagar a fiança. Além disso, muitas pessoas recebem sentenças de prisão prolongadas por crimes menores. Há muitos casos de presidiários cumprindo sentenças de décadas ou até prisão perpétua meramente por furto em lojas.
Muitas prisões dos EUA foram privatizadas, incentivando o armazenamento de prisioneiros para o lucro.
Os prisioneiros são colocados em confinamento solitário por longos períodos de tempo mesmo para as menores infracções. Em cada momento, existem aproximadamente 80 mil presidiários submetidos ao confinamento solitário. O trabalho forçado também é muito comum nas prisões americanas, nas quais os presidiários não são tratados melhor do que os escravos. Na verdade, a 13.ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos permite a prática da escravidão nas instituições penais dos Estados Unidos.
Uma vez libertados da prisão, os presidiários terão extrema dificuldade em encontrar emprego, moradia, saúde ou acesso à educação, pois não se qualificam mais para receber assistência. Isso leva a altas taxas de reincidência. O resultado é o desmembramento de comunidades e famílias e uma queda na pobreza e no crime. Por causa da destruição dos laços comunitários e familiares provocada pelo encarceramento em massa, as mães solteiras se tornaram a norma entre as pessoas de cor e milhões de crianças foram colocadas em um orfanato.
O sistema judicial dos EUA perpetua o alto grau de desigualdade racial e étnica na sociedade dos EUA e tem efeitos particularmente devastadores nas comunidades de cor. O encarceramento em massa de pessoas de cor leva à destruição de comunidades e famílias. O afunilamento dos pobres, principalmente das minorias, para as prisões privatizadas com fins lucrativos já foi chamado «Complexo Industrial Prisional» e o grande número de jovens carentes na prisão foi chamado «Canal da Escola para a Prisão». Milhões de vidas foram destruídas pelas iniquidades no sistema judicial dos EUA, que se agravam ao privar aqueles que foram libertados da prisão, de empregos, moradia, saúde e educação necessários para viver uma vida segura e produtiva. Mas os EUA entendem que são os campos de reeducação noutros países – com formação profissional, para uma reinserção profissional que combata o crime e dignifique o valor social nessas saídas profissionais – os violadores de direitos humanos!...
O sistema judicial e penal corrupto dos EUA e a política de encarceramento em massa resultam em graves violações dos direitos humanos que devem ser condenadas por todas as pessoas que amam a justiça.
A falta de representatividade do sistema político
Um outro caso de estudo, entretanto já estudado por muitos investigadores sociais, foi como o sistema político não representa há muito a opinião dos eleitores, não satisfaz protestos e que até espalhou urbi et orbi as cenas do assalto ao Capitólio, expressão do «caos democrático», como lhe chamaram alguns.
O sistema eleitoral para a formação dos órgãos de soberania não é democrático, torna sistemático o afastamento de diferentes candidaturas, apurando apenas dois dos candidatos. Todas as outras pessoas e candidaturas não contribuem para esse apuramento. Os eleitores ou optam pela abstenção ou voto nulo ou aceitam essa bipolarização institucionalizada. E como a bipolarização não permite vislumbrar as diferenças entre republicanos e democratas, a representação de boa parte dos cidadãos gorou-se, e ficou como marginal a todo o processo eleitoral. Trump não correspondeu apenas aos interesses de grandes grupos económicos dos EUA. Criou uma vaga de fundo dos que combatiam o sistema para fazer passar pela sua pessoa e pelo seu carisma a resolução dos problemas. Este é o populismo que também o levou a conceber e estimular o assalto ao Capitólio.
O que se passa com a América é isto. Que mais poderá acontecer? Biden já demonstrou não ter pernas para as necessárias pedaladas.
Na imagem: As despesas de saúde nos EUA são muito elevadas, proibitivas para quem não tem seguro, o que faz aumentar os receios de maior propagação da pandemia / NPR
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