quarta-feira, 21 de abril de 2021

José Sócrates, Rui Rio, André Ventura e o impasse mexicano

Carmo Afonso* | Expresso | opinião

Este trio é a concretização da pior forma de fazer política. Existe esquerda séria, existe direita séria e um longo caminho para andar

Vamos fazer isto por ordem de chegada.

Primeiro o José Sócrates.

Difícil falar sobre ele. É assunto que já farta mas o próprio afirma, no seu último livro, que “Só Agora Começou” e se calhar, nesta parte, diz a verdade. Acabámos de assistir a mais um episódio de uma série cujo guião foi pensado acima das possibilidades do sistema judicial português. Os prazos de prescrição e a complexidade de um processo desta dimensão não são uma boa combinação. Ficou à vista. Os mega processos são montanhas que parem ratos ou que têm abortos espontâneos. Começo por aqui por ser uma evidência. O resto de facto não é. Não existirão muitas pessoas que estejam habilitadas a discutir este processo. Implica o conhecimento de milhares de páginas, o da lei e o da jurisprudência.

Podemos então passar adiante da parte em que se avalia se é o juiz Ivo Rosa ou o Ministério Público quem tem razão e, com segurança, constatar o seguinte:

É incompreensível que a contagem dos prazos prescricionais não seja uniforme para as magistraturas que foram chamadas a intervir no processo;

É também incompreensível que duas magistraturas tenham uma visão totalmente oposta do processo, da relevância dos indícios apurados e da sua qualificação. Tão oposta que levou à não pronúncia dos arguidos por 172 crimes dos 189 que constavam na acusação e à exclusão dessa pronúncia de 22 arguidos de entre os 28 que foram acusados pelo Ministério Público;

É ainda incompreensível que tenham ficado à vista, num momento destes, tantas fraquezas no sistema judicial: conflitos e tensões entre magistraturas, morosidade processual, insuficiência da lei penal para os novos contornos dos crimes económicos, um Acórdão Uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que interpreta a lei num sentido divergente de um Acórdão do Tribunal Constitucional e as consequências que daí podem advir e até uma eventual violação do princípio do juiz natural.

Não aponto a segurança como um valor prioritário no sentido em que habitualmente falamos de segurança mas, na justiça, ela deverá existir. As pessoas devem saber com o que contar e acreditar nela. Quando os portugueses pararam umas horas naquela tarde de sexta-feira, para ouvir a leitura do resumo da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa, não foi para saber se José Sócrates é ou não um homem inocente. A curiosidade dos portugueses era a de saber se o sistema judicial iria funcionar, a justiça iria revelar uma decisão intercalar sobre si mesma.

A este propósito deve ser dito que houve uma outra falha: o conhecimento público de factos, respeitantes ao processo, de forma ilícita, na sequência de repetidas violações do segredo de justiça e o conhecimento de factos que não têm qualquer relevância para o processo mas que contribuíram para o atiçamento da pior forma de sede de justiça. Era também essa sede que existia aqui, uma que não merecia ser saciada.

Mas existia outra que o merecia, que era esperada e que deveria ter sido feita. Não vejo que se possa apontar o dedo ao juiz Ivo Rosa ou até ao Ministério Público, para já. Não sei se alguém estará em condições para o fazer. Falhou o sistema, isso é certo.

Antes da falha do sistema judicial já tinha falhado o político. José Sócrates foi secretário-geral do Partido Socialista, foi primeiro-ministro, e era afinal uma pessoa que não se dedicava à causa pública mas à sua própria causa e no que de mais básico se pode ali procurar: queria ser um homem rico e escolheu a vida política para prosseguir esse fim. Mais, mesmo agora, os portugueses, os seus camaradas de partido e quem nele votou, não mereceram da sua parte uma assunção de culpa e, ainda menos, uma palavra de arrependimento.

José Sócrates, deixou-nos numa situação complicada e continua na sua causa própria que agora consiste em safar a sua pele. Prossegue objectivos individuais, e menores, no coração do espaço público. Sim, ainda é nesse sítio que está José Sócrates. Cada entrevista, cada intervenção, cada aparição em que José Sócrates renova os seus votos de faltar à verdade, são uma pedrada num charco que nos salpica.

Curiosamente quem mais se queixa é quem tira benefício desta postura de José Sócrates e quem, na verdade, aí legitima a sua intervenção pública ou política.

O problema de José Sócrates é um problema para a esquerda e não quero fazer parte do grupo que faz de conta que não é bem assim. E claro que não é só um problema do Partido Socialista.

A seguir entra o Rui Rio, o líder incapaz.

Rui Rio não tem propostas para o país e a sua estratégia, enquanto dirigente do Partido Social Democrata, passa por chegar ao poder. É legítimo mas é pouco. Pior, deixou de ser legítimo quando, para chegar lá, se mostrou disposto a abdicar dos princípios democráticos. Fazer entendimentos com o partido Chega implica abdicar deles, escolher candidatas como Susana Garcia foi um grande reforço pois nesse caso, mais do que fazer um acordo, Rui Rio escolheu apresentar-se como concorrência ao partido Chega. Provavelmente conseguirá o pior dos dois mundos.

Seria impensável há uns meses equacionar que um partido como o PSD escolhesse como candidata a uma autarquia uma pessoa com as posições políticas de Susana Garcia. Já tínhamos assistido ao acordo dos Açores mas agora avançou-se mais no caminho do precipício. Nem se pode dizer que a escolha da candidata tenha acontecido apesar dessas posições. Pelo contrário, são precisamente a razão da escolha. Nenhum outro percurso se conhece de Susana Garcia para lá da sua participação em programas de televisão onde exprimiu opiniões de cariz racista, a defesa da castração química e onde, assisti, chamou a moradores de bairros sociais “gentalha”. Não valerá a pena alongar a descrição. Rui Rio deixou lançar a bomba, depois a direção do partido deu sinais de recuo, a seguir atrasaram a decisão para lá do anunciado e eis que Rui Rio confirma a candidatura. Uma estratégia conhecida: deixar arder um bocado e depois manter o que tinha sido anunciado porque afinal o que havia para arder já ardeu.

Esta estratégia de Rui Rio prejudicou o PSD e tornou-o efectivamente refém de André Ventura caso queira disputar o poder. As sondagens são reveladoras. O principal partido da direita, com Rui Rio, não tem qualquer capacidade de enfrentar sozinho o PS. Está assente. A candidatura de Carlos Moedas à presidência da Câmara Municipal de Lisboa parecia ser uma cartada que poderia evitar a falência de Rui Rio como líder do PSD. Mas o próprio Rui Rio, e certamente alguma desabilidade de Carlos Moedas, trataram de arrumar o assunto; não há direita credível quando um partido escolhe Susana Garcia para o Município da Amadora. Um concelho com aquelas características, uma candidata com as que lhe são conhecidas. Esta escolha foi a última gota.

O problema de Rui Rio é sobretudo um problema para a direita por mais que esta aparente recusá-lo mas já a ultrapassa. As portas estão entreabertas a uma futura coligação com a extrema-direita nas próximas legislativas.

Em terceiro lugar André Ventura.

Enquanto escrevo decorre a manifestação do partido político Chega contra a sua ilegalização. Ir para as ruas é um ato político mas o que se pretende é uma avaliação, num primeiro momento, por parte da Procuradora-Geral da República e, se esta assim o entender, a seguir por parte do Tribunal Constitucional, da legalidade do partido. Todas as organizações e partidos políticos estão sujeitos a este escrutínio e não o deveriam temê-lo.

Importa então saber o que está aqui em causa. Será uma avaliação do impacto da manutenção deste partido ou do impacto da sua extinção? Deverão ser a Procuradoria Geral da República e o Tribunal Constitucional a analisar se o que está em causa é a própria democracia caso se extinga e Chega ou caso se mantenha o partido? E deverão ter presente o facto de se tratar de uma força política que aparenta estar em grande crescimento?

Para o bem, e para o mal, a resposta é não. O que se pede é que seja avaliada a legalidade do partido político Chega e, mais concretamente, se as tais linhas vermelhas que têm sido cruzadas se traduzem ou não na violação efectiva da lei e de forma a determinar a sua extinção.

O Chega faz um jogo político que faz lembrar o jogo que todas crianças, naquela parte em que deixam de ser bebés, apreciam. É mais ou menos assim: tapa-se a cara e diz-se: “não está cá!” e a seguir destapa-se a cara e contradiz-se com estrondo: “está, está!”. Por alguma razão todas deliram. E é verdade que quando se volta a tapar a cara, a criança, que acabou de ver que ali estamos e que simplesmente acabámos de tapar a cara, fica mesmo na convicção que desaparecemos. A surpresa e a alegria quando, logo a seguir, destapamos a cara são fascinantes.

Assim é o jogo do Chega. De vez em quando destapa a cara e mostra a sua face racista e fascista – e atenção: tem mesmo de o fazer, é o que a maior parte do seu eleitorado exige. É do que se alimenta. Depois há um recuo e algumas declarações que vêm por água na fervura. O objectivo é sempre o mesmo: ficar na linha ténue que separa a legalidade da ilegalidade. Poder dizer: não era bem isso.

Há de facto quem delire com isto mas também há quem não suporte e, já agora, os que não o suportam são a larga maioria dos portugueses. Todos sabem o que está ali quando o André Ventura volta a tapar a cara: os que apreciam o discurso racista e fascista e os que não o toleram. É um jogo e não engana ninguém.

Quando alguém diz que é contra a ilegalização do partido Chega não se está a pronunciar sobre a apreciação da legalidade do partido – se é ou não é racista ou se é ou não é fascista – mas sim sobre a eficácia de resolver o problema da extrema-direita dessa forma. Existe aqui um esquecimento do que efetivamente resulta da lei constitucional, da Lei nº 64/78, de 6 de Outubro e da Lei dos Partidos Políticos. A aplicação da lei não pode estar dependente de uma avaliação estratégica ou política.

Se consideram que mais vale manter um partido racista no sistema democrático porque se trata de uma força política com demasiada expressão para ser extinta por decisão do Tribunal Constitucional, isso é lamentável. Acontece que a aplicação da lei não se detém nessas considerações. É racista? Então deve ser extinto. É obrigatório que assim seja.

O que está aqui em causa não é se se é a favor da extinção de um partido mas sim se se é a favor da aplicação da lei.

Algures no tempo as pessoas deixaram de acreditar na aplicação da lei. Poucos acreditam que o Tribunal Constitucional a fará cumprir e é certo que, para ser chamado a fazê-lo, terá que existir esse pedido por parte da Procuradora-Geral da República. Sobretudo será André Ventura que não acredita e que aproveita o momento para mobilizar os seus apoiantes e as atenções sobre si.

Quem está a movimentar-se, pedindo a atuação do Ministério Público, é quem acredita no sistema judicial. Será ingenuidade? Vamos ver. A situação deve ser entregue a quem tem a competência para a apreciar. A responsabilidade de quem enceta o procedimento cessa aí e aí começa a das instituições.

Se isto deixou de ser um Estado de Direito estamos feitos.

O problema de André Ventura, que tem também contornos penais, é um problema da própria democracia e é trágico que existam os que fazem de conta que não.

Agora chegámos ao impasse mexicano.

Para quem não sabe o que é: trata-se de um confronto entre três oponentes no qual cada um deles está armado. É um bom momento cinematográfico e certamente já o terão visto em alguns filmes. É um dilema sem estratégia infalível para a vitória. O primeiro a disparar ficará em desvantagem em relação ao que não foi alvejado. É tramado. Ninguém quer ser o primeiro a disparar, será o segundo a disparar que ganha o impasse. Ficar quieto também não é seguro, pode significar a morte. “A” dispara em direção a “B”, este ficará ferido e “C” dispara em direção a “A”.

Não, isto não é sobre os três políticos que nos colocam em perigo. Os três, juntos, formam uma letra só.

“A” é a justiça, “B” são estes políticos, “C” somos nós. Estão, estamos, com as armas apontadas uns aos outros. Ninguém quer perecer. Aqui existe uma solução: que seja a justiça e que sejamos nós a disparar primeiro e que o façamos em conjunto e na mesma direção. São eles que devem cair. É a boa forma de sair deste impasse. A justiça não pode ser inimiga do povo e o povo precisa da justiça. A luta não deve ser entre “A” e “C”.

Em conjunto deveremos obliterar os políticos que não cumprem a lei e que não honram os princípios democráticos. Este trio é a concretização da pior forma de fazer política. Existe esquerda séria, existe direita séria e um longo caminho para andar. Vejamos ainda um outro aspecto: nenhum deles, neste aspecto interessa sobretudo Rui Rio e André Ventura, têm propostas e soluções para os problemas dos portugueses. Com André Ventura a coisa é ridiculamente evidente: apontar o dedo a alguma corrupção e aceitar outra, castigar a comunidade de etnia cigana e castrar pedófilos não vai fazer grande coisa pelo país e pelos portugueses. Com tão pouco nem os de bem se safam.

André Ventura ontem, ladeado por um número incompreensível de seguranças, foi do Príncipe Real ao Rossio segurando uma faixa que tinha escrito “Chega ou Morte”. Uma notável mensagem política.

Mas André, “ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde”.

*Carmo Afonso -- advogada -- 19.04.21

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