sexta-feira, 21 de maio de 2021

ANGOLA NO PÂNTANO DOS ETNO-NACIONALISMOS

Martinho Júnior, Luanda

A existência de etno-nacionalismos em Angola é praticamente tão antiga quanto a iniciativa colonial da “africanização da guerra”, uma ambígua subversão de conceitos e de práticas da barbárie que nos transporta aos tempos das lutas contra as resistências que as forças portuguesas de ocupação encontraram pelo caminho, visando o domínio de todo o território, antes mesmo do “Estado Novo” fascista e colonial.

Para vencer as resistências o colonialismo recorria a recrutamentos locais, pois era impossível realizar as prolongadas campanhas apenas em função do contingente “metropolitano”, uma vez que o ambiente tropical não era favorável a ele e os “cabos de guerra” conseguiam melhores resultados com efectivos africanos, adaptados ao terreno, com exigência de pouca logística, mentalmente vulneráveis à doutrinação colonial e muitas vezes envolvidos em disputas de poder entre as elites africanas em torno dum reinado, dum sobado, dum “dembo”, ou dum “régulo”…

Essa “zona cinzenta” de contínua acção psicológica e de práticas a condizer, propiciou-se às ingerências e às manipulações e era a partir desse jogo inteligente, parido pelos “experts” que produziam o domínio sob a bandeira colonial, que se tornava mais eficaz o recrutamento e o rótulo que as autoridades coloniais obrigatoriamente tinham de criar para cada caso étnico, inclusive os expedientes etno-nacionalistas de feição.

O historiador René Pélissier detalha em pormenor essa “sapiência” colonial fundamentada com muitos dados que recolheu e é dele que fomos buscar o conceito original de etno-nacionalismo, que se misturava a preceito com o conceito de “africanização da guerra”.

Esses conceitos têm feito percurso para além do período colonial propriamente dito, por que o neocolonialismo rampante em África, tendo em conta os recursos financeiros, as linhas de inteligência de que se nutre e os objectivos de exploração das riquezas naturais, continuam a fazer esse tipo de “aproveitamentos”.

A “FrançAfrique” desenvolveu sublimando a superestrutura ideológica do poder e os seus instrumentos, a partir do tempo das “redes Foccart” (década de 60) e do conde Alexandre de Marenches (década de 70), recrutando a partir das elites africanas a fim de colocar no poder o títere de feição e com isso garantir os interesses da França em África até á exaustão por via das conexões das redes de inteligência (SDECE/DGSE)…

Os “produtos refinados” da contemporânea FrançAfrique persistem desde suas linhas tradicionais e em Angola, os etno-nacionalismos foram sempre filtrados também por esse tipo de condensação de interesses, conforme ao caso de Cabinda, por exemplo.

É de supor que a presença da Total nos interesses do gás em Cabo delgado possua este tipo de “filtragens”, algo que é “genético” á exploração de riquezas (matérias-primas) por parte da FrançAfrique!

A FLEC foi sempre filtrada pela persistência neocolonial desse tipo de redes (por isso o território do Bas Congo na República Democrática do Congo é de seu crucial interesse) e hoje, com o capitalismo neoliberal, só precisa de núcleos duros para persistir na fluidez etno-nacionalista que também, graças ao multipartidarismo angolano parido por via de Bicesse a 31 de Maio de 1991, se distende para dentro de alguns partidos de oposição cuja raiz é, na sua essência, a mesma.

No caso angolano, é por isso que qualquer manifestação etno-nacionalista, possui ramificações para dentro do “caudal” da Unita, o que tem sido evidente quer quando há a expressão da Frente de Libertação do Enclave de Cabinda, FLEC, quer quando há a expressão Movimento do Protectorado Português Lunda Tchokwe, MPPLT.

Eventualmente, para além do registo de etnicidades implícito no etno-nacionalismo, o impacto de radicalização poderá ser também feito através do âmbito religioso, algo fluente em África por via do radicalismo fundamentalismo islâmico sunita/wahabita de que a África Central e Austral, com a RDC, Tanzânia e Moçambique na primeira linha, estão já a sentir efeitos, apesar de haverem também seitas ditas cristãs que o podem também concretizar (em Angola é o caso por exemplo da Teologia da Prosperidade, injectada a partir do Brasil com a Igreja Universal do Reino de Deus e sue “apóstolos” e “pastores” brasileiros)…

Na África Central e Austral, os etno-nacionalismos são de tal modo intensos que persistem década a década, fomentam rebeliões armadas, podem fazer junção aos radicalismos islâmicos e, nos parlamentos das frágeis democracias africanas, espelham a sua representação, inibindo as potencialidades de participação popular e do protagonismo consciente próprio da sabedoria.

As “transversalidades” sociais do radicalismo existem, ainda que em contradição de quem anda “nas matas” com as armas da rebelião na mão e persistem por que por essas “transversalidades” é por onde flui o dinheiro que garante a continuidade do etno-nacionalismo e do seu pendor para a subversão e a interpretação exclusivista (e etnocentrista) da história!

O colonial-fascismo português esmerou-se ao utilizar o rótulo FLEC para “pseudo terrorismo” na direcção dos dois Congo, com o objectivo de atacar o MPLA durante a Luta Armada de Libertação Nacional e o neoliberalismo injectado no “arco de governação” desde 0 golpe do 25 de Novembro de 1975 em Lisboa, garante apoio à clandestinidade a entidades da FLEC na Europa, em estreita consonância com a inteligência francesa filtrada pelos interesses da Total no petróleo!

Parlamentos como o angolano, não conseguem sair desse pântano apto às “transversalidades” sob o rótulo da “representatividade multipartidária” e ainda que seja maioritariamente preenchido pelo MPLA, a fluidez social faz a sua quota-parte de trabalho de sapa por via das linhas de inteligência de sustentação, forjando a mentalidade adequada e inibindo a consciência patriótica fiel às raízes do movimento de libertação em África!

O jornalista Artur Queiroz tem feito várias radiografias desse tipo de organizações, através de entrevistas de alguns dos seus autores em dissidência ou não e através delas é possível melhor entender os conteúdos internos desse tipo de barbárie ao dispor do manancial de “programas” da barbárie maior do “hegemon”!

Numa das entrevistas abaixo reproduzidas, realce-se o velado papel do governo português do “arco de governação” em relação a entidades da FLEC em Lisboa, em consonância com a sua tradicional vassalagem ao “hegemon”, também por via da NATO e do Africom!...

Martinho Júnior -- Luanda, 19 de Maio de 2021

TRÊS IMAGENS

Recolhidas do “Folha 8” semanário autointitulado de “independente” da capital angolana, ao serviço da radicalização etno-nacionalista – etiqueta Simulambuco – https://jornalf8.net/tag/simulambuco/ 

NOTA SOBRE O FOLHA 8:

Perito em “guerra psicológica” explorando as “transversalidades” propiciadas pela “democracia representativa multipartidária” é por demais evidente a linha ideológica fundamentalista, fascizante e neonazi deste Semanário, um dos autores e símbolos do pântano a que foi atraída Angola e o próprio MPLA especialmente desde Bicesse a 31 de Maio de 1991 (de há 30 anos a esta parte), tendo em conta muitas das linhas que são expressas pontualmente nas vias do Parlamento angolano!

DA EXPERIÊNCIA DO JORNALISTA SÉNIOR ARTUR QUEIROZ, A RADIOGRAFIA DA FLEC EM 2012…

(O padre excomungado e deputado Raúl Tati deu uma entrevista ao Novo Jornal. Nos meus arquivos encontrei duas entrevistas feitas em 2012 a antigos dirigentes da FLEC, Luís António da Costa “Futuro” e António Sango “Lembrança”. A memória tem futuro. A equipa de reportagem: Adalberto Ceita, Eduardo Pedro e Artur Queiroz.)

AVENTURAS E DESVENTURAS DE LUÍS COSTA “FUTURO”

“Traidores são os que comem o dinheiro que pedem para a revolução”

Antigo ministro da Saúde da FLEC faz graves acusações à ala dos intelectuais de Cabinda

Luís António da Costa escolheu ser “Futuro”. Era esse o seu nome de guerra na FLEC, onde desempenhou o cargo de ministro da Saúde. É um veterano da organização: “tinha apenas 19 anos quando fui incorporado, no Baixo Congo, aldeia de Tombo Yanga, distrito do Tshela, em Janeiro de 1976. Nasci em Março de 1957, no Buco Zau. É só fazer as contas aos anos que militei na organização”. Regressou a casa em Agosto de 2011. Só agora, tantos anos volvidos, “a palavra futuro começa a fazer sentido na minha vida. Mas como eu, há milhares de vítimas dos que não têm limites para as suas ambições. O futuro, afinal, está aqui, nesta grande Angola, que recebe todos os seus filhos de braços abertos”.

Jornal de Angola - Como aconteceu a sua ida para a FLEC?

Luís António da Costa - Como tantos jovens da minha geração, fui para a FLEC porque nos diziam que o petróleo era de Cabinda e devíamos exigir a independência para sermos todos ricos. Quem levantava dúvidas, eles diziam que tinham o apoio das grandes potências mundiais e dos países vizinhos. Se acenam a um jovem com riqueza, ele vai logo. Mas quando cheguei a Tombo Yanga encontrei tanta pobreza que pensei logo em voltar para casa. Mas os agentes da segurança da FLEC, são implacáveis. Quem entra ali dificilmente volta a sair. Esta é a grande verdade.

JA - São tratados como prisioneiros?

LAC - Pior. São tratados como propriedade da FLEC. Eu sou enfermeiro. Aprendi na escola a tratar todos os seres humanos em sofrimento, com toda a atenção e carinho. Mas nos centros de refugiados ou nas bases da FLEC não há carinho nem compaixão com ninguém e muito menos com os doentes, que são simplesmente abandonados. Aproveito esta oportunidade para pedir às organizações de defesa dos Direitos Humanos que ajudem aquelas pessoas, porque estão em grande sofrimento. O apelo é dirigido especialmente à Cruz Vermelha Internacional, uma organização que muito respeito. E peço aos elementos da segurança dos Congos e da FLEC que deixem sair quem quiser. As autoridades angolanas estão de braços abertos à espera deles.

JA - Onde estudou enfermagem?

LAC - Fiz o curso médio na Missão Católica de Kuimba e o curso superior no Instituto de Saúde de Kinshasa. Foi devido à minha formação que fui nomeado ministro da Saúde do governo no exílio. Eu era da direcção da FLEC.

JA - Sendo um humanista, como se sentia numa organização que atacou a caravana desportiva do Togo e os jornalistas que a acompanhavam?

LAC - É preciso dizer a verdade. Os combatentes e dirigentes ficaram muito divididos por causa desse acto que eu considero terrorista. Foi a partir daí que a FLEC se dividiu. Hoje há a FLEC do Interior-Europa, a África, a do Norte, a do Sul, a dos Intelectuais, também chamada de “mpalabandistas”. Dentro das minhas possibilidades, mas não estive só nessa posição, influenciei a declaração de tréguas do presidente Alexandre Tati. Foi uma medida que eu considero verdadeiramente revolucionária. Daqui envio um apelo ao presidente Alexandre Tati: não se deixe levar pela voz dos oportunistas e mantenha a trégua.

JA - Não teme ser declarado traidor?

LAC - Traidores são os que comem o dinheiro que pedem para a revolução. Eu só temo pelas vidas de centenas de pessoas da FLEC que estão nos centros e bases dos Congos, num sofrimento que ninguém imagina. Entrei na FLEC com 19 anos e quando saí, há alguns meses, já tinha netos. Estive sempre nas matas. Passei fome e desafiei o perigo. Salvei vidas humanas. Traidores são os que fizeram da nossa luta um negócio asqueroso. Os que nos empurram para a morte, porque querem continuar a ganhar dinheiro à custa daquilo a que chamam a revolução cabindesa. Deviam chamar-lhe a revolução do dinheiro! É apenas isso que os move. São revolucionários de conta bancária e intelectuais da extorsão, do roubo e da aldrabice.

JA - Tem provas dessas acusações?

LAC - Não gostava de entrar nesse campo, agora o mais importante é exigir que a comunidade internacional, as organizações dos Direitos Humanos, salvem centenas de pessoas daqueles campos de concentração onde estão a sofrer e sempre sob ameaça dos seguranças da FLEC. Ali ninguém pode dizer, nem aos familiares, que vai fugir e regressar a casa. Muitos perderam a vida só porque manifestaram vontade de regressar a Angola. Aqueles seres humanos não têm comida, não têm medicamentos nem roupa: só fome, doença e nudez. Mas em Cabinda há alguns senhores, ditos intelectuais revolucionários, que sacam dinheiro aos empresários em nome da FLEC. Muitos trabalhadores do Malongo (Cabinda Gulf) tiram dos seus salários 100 ou 200 dólares para a revolução. Mas nada chega às matas.

JA - Insisto, tem provas do que está a afirmar?

LAC - Prometi falar de tudo nesta entrevista e para honrar o meu compromisso vou dar um exemplo. A direcção da FLEC foi presa em Kinshasa. Falo de um acontecimento muito estranho, que um dia tem de ser esclarecido. Eu tinha acabado o curso superior de enfermagem e dirigia-me a um cyber-café para fazer pesquisas na Internet, porque estava a preparar a tese. No caminho recebi um telefonema de José Manuel Vaz, membro do bureau político da FLEC. Disse que a direcção ia reunir de urgência, para tratar de um assunto muito grave. Mandou-me ir para a Rua Shaba, na zona Kasavubu…

JA - O que tem isso a ver com desvio de dinheiro?

LAC - Tem a ver com traição e desvio de dinheiro. Na Rua Shaba liguei para José Manuel Vaz e ele disse que devia entrar num bar dessa rua, porque já estavam todos à minha espera. Entrei e, de facto, já lá estavam Alexandre Tati, nessa altura vice-presidente da FLEC, Estanislau Miguel Boma “Aparência”, o ministro da Defesa e chefe do Estado-Maior General, Carlos António Moisés “Rótula”. Ministro do Interior e chefe da segurança, Alfredo Buanje “Aimé”, chefe das comunicações, Cristóvão Honório Mabiala “Crisse”, José Simba Mabiala, conselheiro do presidente Nzita Tiago e José Manuel Vaz. Eu já era o ministro da Saúde.

JA - Eram os mais altos dirigentes da vossa ala?

LAC - Aqui não há alas. Estamos em Agosto de 2009, só existia uma FLEC. Éramos os mais altos dirigentes da organização. Só faltava Nzita Tiago, que vive em Paris. Fiquei muito admirado por terem escolhido um local daqueles, num bairro movimentado. Juntar ali dirigentes como Alexandre Tati ou Estanislau Boma, parecia-me uma autêntica loucura. E tinha razão para os meus receios. Cerca de 20 minutos depois de começar a reunião, entrou no bar uma mulher que olhava para todos os lados, como que a ver se localizava alguém que procurava. Dei o alerta. Mas não fui ouvido.

JA - Porque desconfiou da mulher?

LAC - Porque senti que ela entrou ali para confirmar a nossa presença. Houve uma breve discussão, eu e o Boma propusemos o fim da reunião mas a maioria venceu e continuámos. Nem cinco minutos depois a polícia entrou no bar de rompante. Os agentes estavam armados até aos dentes e mandaram-nos pôr as mãos no ar. O Boma disse-me que era melhor fugirmos porque eles não iam disparar num sítio cheio de civis. Mas mal ele disse isto, um agente mandou toda a gente para um canto. Ele percebia português. Fomos para a prisão de Kasavubu e cada um ficou na sua cela, excepto José Manuel Vaz, que ficou com os agentes 

JA - está a levantar suspeitas sobre esse membro do bureau político?

LAC - Estou apenas a contar os factos. Mas digo já que alguém nos atraiu para aquela reunião. Houve ali dedo de um traidor ou de vários. Quero esclarecer que, para mim, o José Manuel Vaz teve um tratamento especial porque era o único que tinha os papéis em ordem. Acho que eles pensaram que se tratava do chefe do grupo. Teve direito a ficar no pátio da prisão. E ele conseguiu negociar com o dirigente da polícia a nossa libertação. Mas tínhamos que pagar cinco mil dólares. O Boma e o Rótula mandaram imediatamente contactar um cunhado do “Aimé”, congolês. Deram-lhe os contactos do Belchior Tati para mandar o dinheiro. 

JA - E eles mandaram os cinco mil dólares?

LAC – Sim, mandaram. E graças a esse dinheiro fomos todos libertados. Algum tempo depois, já em Ponta Negra, soube que Belchior Tati e outros “mpalabandistas” puseram a circular na cidade de Cabinda que a direcção da FLEC estava presa em Kinshasa e era necessário dinheiro para nos resgatar, caso contrário era o fim da revolução cabindesa. Soubemos que um só empresário de Cabinda deu dez mil dólares. Outros deram à medida da dimensão dos seus negócios, mas todos entre mil e dez mil dólares. No Malongo também foi colectado muito dinheiro. Somando as empresas e os trabalhadores, eles devem ter recolhido mais de 100 mil dólares. Mas apenas nos mandaram cinco mil pelo cunhado do “Aimé”.

JA - Questionaram Belchior Tati sobre o dinheiro?

LAC - Eu exigi explicações, mas Alexandre Tati disse que ia esclarecer o assunto pessoalmente. Nunca mais falei disso com ninguém. Falta dizer que os mil dólares que sobraram foram distribuídos em partes iguais por todos. Como a polícia congolesa nos confiscou os telemóveis, com a minha parte comprei um novo aparelho. Deixo aos leitores estes factos. Cada um que tire as suas conclusões.

JA - Agora que está em Cabinda, já falou com esses seus companheiros?

LAC - Eu estou disposto a falar com toda a gente, até porque em dois ou três dias mandaram-nos os cinco mil dólares. Devo-lhes ter saído da prisão. Mas eles consideram-me inimigo, porque optei pela paz, pelo diálogo e pela revolução da verdade. Eu sei que as nossas verdades são perigosas, põem em risco os seus negócios. Mas entre os negócios dos chamados intelectuais de Cabinda e as vidas dos que sofrem nos centros de refugiados nos Congos eu estou do lado dos sofredores. Os ricos não precisam mais de mim.

JA - Quem são os ricos?

LAC - Toda a gente os conhece em Cabinda. Eles são da FLEC, do banco BAI, do BPC. Militam em todas essas causas lucrativas. Excepto o Raul Danda, que além dessas, ainda tem a ELF/Total e a UNITA. Quanto mais o povo sofre, mais eles prosperam. Não contem comigo para isso. Já chega de miséria moral. É esta a mensagem que deixo ao Ivo Macaia, ao Polaco, ao padre Raúl Tati e a todos os outros. E faço-lhes um apelo: Não lancem mais achas para a guerra. Mas se são assim tão guerreiros, apresentem-se sem documentos nem dinheiro, nas matas. Defender a guerra de barriga cheia e as contas bancárias milionárias, é muito fácil.

JA - O que faz agora?

LAC - Ainda tenho forças para ajudar na reconstrução de Angola. Em breve vou fazer um estágio profissional de seis meses numa escola de saúde e num hospital. Quando terminar, vou dar o meu contributo como enfermeiro.

“LEMBRANÇA” DAS TRAGÉDIAS DA GUERRA

António Sango denuncia os que pagam para matar

Antigo Vice-Ministro da FLEC conta como o dinheiro fez correr sangue inocente

António Luís Sango tinha como nome de guerra “Lembrança”. Nasceu na aldeia de Cochiloango, município de Cacongo. Entrou para a FLEC em 8 de Fevereiro de 1977. É enfermeiro de profissão. Foi vice-ministro da Saúde da FLEC e viveu grande parte da sua vida junto dos guerrilheiros. Em Agosto de 2011 trocou a guerra pela paz. Como membro da direcção da FLEC participou em reuniões importantes com os “intelectuais” da cidade. E conta com pormenores uma reunião onde os “mpalabandistas” encomendaram a morte de inocentes. Um relato arrepiante!

Jornal de Angola - A paz em Cabinda é para durar?

António Luís Sango - Se os intelectuais que vivem na cidade de Cabinda quiserem, vamos ter paz para sempre. O problema é que muitos deles, só pensam no mal e querem a guerra, custe o que custar. Estão tão cegos que ainda não perceberam que os homens armados da FLEC são poucos e quase todos velhos. Há muito que a juventude rejeita a guerra. A Paz do Luena, em 2002, provou a todos que o diálogo tem mais força que as armas. Os jovens perceberam isso melhor que ninguém.

JA - O que tem contra aqueles a que chama intelectuais da cidade de Cabinda?

ALS – Eu não tenho nada contra ninguém. Mas eles têm contra mim e todos os que andavam nas matas. Quando chegou a hora de assinar o cessar-fogo eles opuseram-se e usaram argumentos ofensivos. Diziam que nós somos analfabetos, não sabemos falar e muito menos negociar. Eles é que têm de decidir. Foi assim que provocaram as grandes cisões na FLEC. Todos os que querem negociar com o Executivo na base da autonomia, eles põem-lhes logo o rótulo de traidores. Nós a sofrer nas matas e eles à boa vida na cidade e nós é que somos os traidores. Alguns são funcionários do Estado.

JA - Viveu muitos anos nas matas, como conheceu os intelectuais?

ALS - Em Agosto de 2009 saí das matas do Maiombe e fui para Ponta Negra. Como era vice-ministro e da direcção da FLEC participei em muitas reuniões com eles. Nunca me caiu bem a sua arrogância. E muito menos a facilidade com que eles falavam em matar civis. Em 13 de Agosto de 2009 participei numa reunião, no Hotel Makoka, em Ponta Negra, com Ivo Macaia e o senhor Capita, que trabalhava na clínica da Chevron em Cabinda. Eles insistiam que era preciso fazer operações militares porque havia muito silêncio à volta da FLEC. Eu sabia que nas matas as coisas estavam muito mal e ninguém queria combater. Mas Gabriel Augusto Nhemba “Pirilampo” acabou por se comprometer com operações militares.

JA - Qual foi a sua posição sobre o recomeço das operações militares?

ALS - Informei-os sobre a péssima situação dos combatentes nas matas. Eles no fim da reunião distribuíram cinco mil kwanzas, cerca de 20.000 francos CFA, por mim, pelo Rafael Mabiala “Pacífico”, e pelo Félix Ngonda Puati, comandante da região militar de Cacongo. Voltamos a encontrar-nos em casa do “Pirilampo” no bairro Songololo. Conhecemo-nos muito bem. Em 2010 aconteceu aquela loucura do ataque à delegação desportiva do Togo e aos jornalistas que a acompanhavam. Os intelectuais queriam sangue. Quando se aperceberam das negociações do presidente Alexandre Tati com o governo, foram imediatamente a Ponta Negra sabotar a paz.

JA - Eles explicam porque defendem a guerra na província de Cabinda?

ALS - Dizem que a autonomia é uma traição e é preciso fazer a guerra pela independência. Consideram-se muito inteligentes, mas não evoluíram nada. Nem sequer percebem que já não existem condições para fazer a guerra. Faltam armas e faltam combatentes. Já ninguém adere à FLEC para combater de armas na mão. Só se forem eles para o combate, o que eu duvido. Não vão deixar os seus bons empregos e negócios em Cabinda para se meterem na Mata Grande.

JA - Houve discordâncias quanto ao ataque à caravana desportiva do Togo?

ALS - Houve muitas discordâncias e para mim foi a maior derrota que a FLEC sofreu. Internacionalmente todos repudiaram aquela loucura. E internamente houve um grande repúdio, mesmo dos combatentes mais antigos. Mas em 2010 aconteceram mais erros e que são da responsabilidade dos mplabandistas. Por exemplo, o assassinato do senhor Olímpio Pongo.

JA - Pode explicar o que aconteceu?

ALS - No mês de Outubro de 2010 o senhor Capita foi a Ponta Negra e entregou dinheiro ao “Pirilampo” para ele atacar os trabalhadores civis da empresa PGP, que fazia prospecções para a Sonangol. Em 8 de Novembro o grupo do “Pirilampo” atacou uma viatura da empresa, na área de Tando Colombo. Morreu o tenente Valentim e o motorista, senhor Olímpio Pongo. Foi uma tremenda tragédia, porque Olímpio Pongo era primo do senhor Capita, o homem que deu o dinheiro para a operação. Na guerra, matar o inimigo, é relativamente indiferente. Mas atacar uma viatura civil, ao serviço de uma empresa civil e matar um primo, não é assim tão indiferente. O primo do senhor Capita era um civil. Não tinha que morrer naquela estúpida operação.

JA - Foi um caso isolado?

ALS - Infelizmente, não. Os mpalabandistas só querem a guerra. Em Dezembro de 2010, o professor Belchior Lanzo Tarti, mal saiu da cadeia, foi ter connosco a Ponta Negra. Marcámos uma reunião no Hotel Makoka e estiveram presentes mais de 50 membros da FLEC. Queríamos saber o que lhe aconteceu. O Belchior disse ao “Pirilampo” que era necessário quebrar o silêncio que pesava sobre a FLEC e realizar acções contra pessoas isoladas, de raça branca, de preferência portugueses. Os itinerários escolhidos foram Dinge-Inhuca-Buco Zau e Bitchequete-Massabi.

JA - Foi feita alguma acção?

ALS - Foram feitas acções, mas nenhuma contra civis. O dinheiro entregue pelo professor Belchior serviu para uma grande operação contra as FAA, na aldeia de Vito Novo, na qual morreram cinco militares, entre os quais um coronel e um major.

JA - O padre Raúl Tati também participou nas reuniões da FLEC?

ALS - Nunca tive qualquer reunião com ele. Apenas reuni com o professor Belchior, o Ivo Macaia e o senhor Capita. Estes eram os representantes dos intelectuais da cidade. Que eu saiba, padres nunca apareceram em Ponta Negra. E ainda bem. Não gostava de ver sacerdotes da minha Igreja a encomendar assassinatos e acções de terror.

JA - O comandante “Pirilampo” obedecia às ordens dos intelectuais?

ALS - Infelizmente para ele, sim. O professor Belchior dava instruções para tirar os combatentes de umas bases para outras e o “Pirilampo” aceitava. O comandante Batalha foi transferido com a sua gente, numa carrinha de caixa aberta, alugada em Cabinda pelo professor e enviada durante a noite para a sua base. Penso que foram para a Mata Grande, guiados pelo João Massanga “Homem de Guerra” que conhecia a palmo toda a região. Mas o “Pirilampo” teve um fim triste. O seu quartel-general foi tomado de assalto pelas FAA no dia 1 de Abril de 2011 e ele acabou por morrer em combate um mês depois. Os intelectuais dizem que os analfabetos das matas não têm nada que negociar com o governo porque eles é que sabem. Mas se a FLEC hoje não tem um único homem a combater em Cabinda é muito por culpa deles, que não sabem nada da arte militar.

JA - Alexandre Tati é a favor da guerra?

ALS - O presidente decretou o cessar-fogo unilateral e penso que não volta para a guerra. Os que querem a guerra são os que ficaram com Nzita Tiago. O Stephane Barros está em Lisboa, penso que tem documentos portugueses e é protegido pelo Governo Português. É um radical que só pensa em guerra. Vejam bem. O professor Belchior quer nas estradas de Cabinda acções contra civis brancos, de preferência portugueses. O Stephane Barros defende a mesma linha. E vive em Lisboa sob a protecção do Governo Português, que anda a mandar trabalhadores portugueses para Angola onde a ala dos intelectuais da FLEC os quer matar. Angola com amigos destes, não precisa de inimigos. A FLEC do Nzita Tiago em Lisboa tem todo o apoio do mundo.

JA - Essas facilidades não são mais em Paris?

ALS - Paris e Lisboa são a mesma coisa. O Mingas é cidadão francês e trabalha para uma empresa pública francesa. Foi preso por estar implicado no ataque à equipa de futebol do Togo. Um dia destes foi libertado porque diz que nada teve a ver com a operação, nem sequer participou na preparação da acção. Se o tribunal francês quiser, arranjo-lhe várias testemunhas que provam o contrário. Ele esteve pessoalmente no terreno a preparar o ataque. As autoridades francesas sabem que é assim, mas não querem assumir que um seu cidadão nacional cometeu um acto terrorista contra desportistas e jornalistas em território angolano.

JA - Qual é a sua actividade actual?

ALS - Com a graça de Deus vivo em paz e estou a fazer um estágio profissional. Depois vou trabalhar num hospital público. A reconstrução nacional espera por mim e eu tenho a obrigação de dar o máximo. Perdi muito tempo com pessoas que só querem matar e destruir.

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