sexta-feira, 7 de maio de 2021

Os tempos da ideologia militarista

O militarismo, encarado como uma ideologia de autodefesa da sociedade «ocidental» e dos seus «valores», é a componente essencial para opor o globalismo neoliberal ao seu inimigo jurado, o multilateralismo.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

A ecologia, a economia «verde», a sustentabilidade e as preocupações com o clima dominam grande parte do dia-a-dia informativo, alimentam enfaticamente os discursos oficiais. Parece que o ser humano identificou finalmente os problemas que afectam o planeta e está disposto a enfrentá-los, a mudar de hábitos e atitudes. Nada mais falso quando do lote de preocupações ambientais e sociais se retira deliberadamente a actividade mais predadora da Terra: a guerra.

Nas cimeiras do clima da ONU não se debatem os efeitos dos conflitos armados na qualidade de vida do planeta nem se equacionam as vantagens que se obteriam erradicando-os; nos tão enaltecidos projectos e programas «verdes» não cabe a dinamização de iniciativas capazes de conduzir à paz e ao desarmamento. Faz-se de conta que a preservação do ambiente pode cuidar da salvação do planeta convivendo com a disseminação da guerra através dos cinco continentes, como se esta fosse um fenómeno inerente à sociedade e que nada tem a ver com o desequilíbrio dos ecossistemas, com a degradação ecológica.

A dissociação entre a defesa do ambiente e do clima, por um lado, e a luta contra a guerra, pelo outro, é completamente impraticável em termos objectivos. Mas é fulcral para a afirmação do «capitalismo verde», novo conceito de consumo propagandístico para tentar eternizar o neoliberalismo no quadro da globalização e do seu instrumento de afirmação, o militarismo.

A guerra «sustentável»

Alguns dos conteúdos mais caricatos dos press releases emitidos pela NATO a propósito dos seus permanentes e cada vez mais abrangentes jogos de guerra relacionam-se com a alegada reconversão de certos aspectos dos exercícios militares em actividades «sustentáveis» ou «amigas do ambiente». Como uma espécie de prelúdio da transformação da própria guerra num fenómeno ecologicamente limpo em que morrem sobretudo os «maus» sem que haja danos para o planeta e para os ecossistemas.

A guerra, porém, não é sustentável por definição. Não é possível fingir que se compensam os seus danos comprando créditos de carbono em qualquer inovadora bolsa de valores ou plantando árvores a dez mil quilómetros de distância. A guerra fere a humanidade e o planeta como nenhuma outra actividade. Ignorá-la quando se pretende defender o ambiente e o clima é o descrédito da ecologia tal como é promovida desde que o neoliberalismo globalista dela se apropriou. Joseph Biden, um senhor de muitas guerras, tal como os seus antecessores, é o mesmo presidente norte-americano que acarinha o green new deal, a invenção da «esquerda» do seu Partido Democrata para instaurar um «capitalismo verde» perfeitamente compatível com o bem enraizado expansionismo militar, sustentado por uma ideologia militarista.

A fuga para a frente assumida pelo neoliberalismo em crise assenta na ideologia dominante do globalismo – que tem o seu expoente no mesmo Partido Democrata norte-americano como principal expressão do chamado «Estado profundo» –, por sua vez apoiada na cultura militarista.

A pretendida implantação do globalismo pressupõe a supressão gradual dos Estados nacionais e sua substituição por estruturas de governo transnacional emanando das elites económicas, financeiras e tecnológicas – de que o Fórum Económico Mundial de Davos é o exemplo mais visível. A sua campanha pelo Great Reset ou grande reinício capitalista insere-se nestes movimentos. E o «capitalismo verde» é um fortíssimo elemento propagandístico e conceptual desse «reinício».

O militarismo, encarado como uma ideologia de autodefesa da sociedade «ocidental» e dos seus «valores», é a componente essencial para opor o globalismo neoliberal ao seu inimigo jurado, o multilateralismo.

Deste modo, o que incomoda o chamado «mundo ocidental» unilateralista no seu confronto com potências como a China e a Rússia não são questões ideológicas mas sim o tipo de relações internacionais multilaterais por estes países defendido e praticado e que, tornando-se atraente para países em vias de desenvolvimento, põe em causa os velhos hábitos coloniais e expansionistas – que têm vindo a ser mantidos com a prestimosa colaboração de instituições como a NATO, o FMI e o Banco Mundial.

O militarismo manifesta-se, portanto, pela cultura de um conceito de guerra e de ameaça permanente tornado alegadamente necessário perante inimigos que, nos termos da propaganda ideológica, ameaçam subverter os «valores ocidentais» mas que, na realidade, disputam multilateralmente interesses e domínios há muito dados como adquiridos pelas potências ocidentais.

A China e a Rússia não ameaçam invadir ninguém. Têm, contudo, as suas maneiras de agir internacionalmente e regionalmente que interferem com velhos/novos métodos coloniais, neocoloniais, expansionistas e de dominação. Esse é o problema.

A paz como conceito abstracto e imaterial

O militarismo ao serviço do globalismo é a maneira de «expor» esses inimigos e as suas supostas intenções agressivas e ofensivas, tornando lógica a existência de um clima de guerra permanente – através da imposição de conflitos armados que assegurem velhos interesses, da corrida aos armamentos, de exercícios militares que mantenham as relações internacionais no fio da navalha, da propaganda generalizada e de mecanismos belicistas mediante os quais as decisões militares se sobreponham às instituições políticas. A submissão da União Europeia ao poder e influência da NATO é um exemplo flagrante dos avanços do militarismo nos dias que correm.

O neoliberalismo não pode dispensar o militarismo nem o clima latente de guerra. É essencial para a estratégia expansionista e de dominação globalizada.

Ao mesmo tempo, no seu objectivo de assumir o controlo de causas fracturantes a que a opinião pública é muito sensível – à cabeça das quais se encontra a defesa do ambiente – o neoliberalismo necessita de ser «ecológico», de se envolver em rábulas ambientalistas e em novos negócios que lhes estão associados. E para que o militarismo e a «ecologia» assim formatada possam ser compatíveis é necessário que, em situação alguma, a guerra seja apontada a dedo como um fenómeno predador do planeta, destruidor dos ecossistemas.

Por isso o pacifismo e o combate à guerra não fazem, nem podem fazer, parte das causas invocadas pelos movimentos ecologistas domesticados pelos «negócios verdes», pelo green new deal tão queridos dos grupos «verdes» oficiais rendidos ao capitalismo.

O pacifismo e a contestação da guerra tornaram-se coisas do passado, uma «curiosidade dos anos sessenta», alvejadas duramente pela propaganda oficial como atitudes susceptíveis de minar a segurança da sociedade perante os inimigos que anseiam destrui-la. Defender o ambiente e o clima é uma coisa; a guerra é outra coisa, que nada tem a ver com isso, tornada necessária para conquistar a paz e defender os «valores civilizacionais» – como estabelece a doutrina expansionista da NATO.

Entretanto, a paz foi-se esbatendo num conceito abstracto, qualquer coisa no terreno do idealismo, do imaterial – assim desligada ostensivamente do combate à guerra. Em termos da informação/propaganda dominantes, paz e militarismo são compatíveis, ou mesmo afins e complementares, tal como a «ecologia» oficial convive com as agressões militares.

O militarismo entranha-se assim insidiosamente através da propaganda, do discurso oficial do regime tendencialmente único. A procura da paz, ao contrário do que estipulam os instrumentos propagandísticos, é um combate de uma actualidade flagrante, essencial mesmo, e directamente associado à recusa permanente da ideologia militarista.

José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

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