domingo, 30 de maio de 2021

Pirataria, fascismo e telhados de vidro

José Goulão* AbrilAbril | opinião

Em matéria de pirataria e de assaltos aos direitos humanos, apesar da sua atitude criminosa, Lukachenko não pode mesmo considerar-se um pioneiro.

O regime da Bielorrússia, com a sensibilidade de quem caça formigas com canhões, decidiu tentar resolver problemas internos através de um acto de pirataria internacional e acertou nos próprios pés. Ofereceu de bandeja a quem o ataca gratuitamente, jogando as cartas viciadas da geopolítica, um ás de trunfo que vai servir para acelerar, a partir de agora, as manobras de desestabilização e de mudança de regime que têm vindo a desenvolver-se.

Para deitar a mão a um fascista mercenário de «revoluções coloridas» às ordens de Biden, Bruxelas & Cia, o governo de Lukachenko acabou por provocar a mobilização geral da parafernália imperialista montada contra os «Estados párias» – e deu ainda mais alento aos múltiplos canais da russofobia. É provável, por isso, que o saldo da operação não lhe seja favorável, além de suscitar um óbvio agravamento do intervencionismo da NATO contra a Rússia. A situação gerada tem, por outro lado, a particularidade de escancarar a hipocrisia, a falta de decoro e de princípios das elites do chamado «mundo ocidental», que entraram em delírio sem se darem conta das rasteiras em que a História as pode fazer cair. Enfim, um retrato multifacetado do mundo de hoje.

Roman Protasevich, de 26 anos, é o indivíduo capturado pelas autoridades da Bielorrússia na sequência do sequestro de um avião civil da Ryanair que fazia a ligação entre a Grécia e a Lituânia. Para obrigar o aparelho a aterrar em Minsk, a torre de controlo invocou um alarme de bomba a bordo que se revelou totalmente falso. O regime bielorrusso recorreu, portanto, a um acto de pirataria internacional para atingir o seu objectivo de deter dois passageiros, Protasevich e uma mulher que o acompanhava.

O detido é acusado pelas autoridades de ter participado na organização das manifestações violentas para contestar os resultados das últimas eleições presidenciais, em Agosto de 2020, que renovaram o mandato de Aleksandr Lukachenko sob acusações de fraude eleitoral levantadas pela oposição e logo aceites – sem provas – pelos Estados Unidos e a União Europeia.

Revolução colorida com pós de fascismo

Protasevich é uma espécie de retrato robot dos agitadores «pró-democracia» formados por organizações conspirativas como o CANVAS e outras patrocinadas pelo magnata globalista George Soros e pelo Partido Democrata dos Estados Unidos para desenvolverem «revoluções coloridas» de mudança de regime em países onde os governos não fazem vénias a Washington, Bruxelas e à NATO.

Vivendo actualmente sob a tutela dos governos da Polónia e da Lituânia, Roman Protasevich participou na agressão do regime de Kiev contra as populações do Donbass ao lado do batalhão nazi Azov, como membro do destacamento Pahonia de «voluntários» fascistas bielorrussos. Está igualmente documentada a sua presença, como membro do Black Block (Bloco Negro) neonazi, em actos nacionalistas bielorrussos evocando o colaboracionismo com as forças hitlerianas na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, em Abril de 2018 recebeu formação no Departamento de Estado norte-americano em Washington, «a semana mais importante da minha vida», como escreveu no Facebook.

Depois de ter trabalhado na estação de propaganda ocidental Rádio Liberdade1, Protasevich foi um quadro da Euroradio.fm, um órgão fomentado pela USAID – que defende estatutariamente os interesses norte-americanos no mundo – a partir da Polónia para injectar propaganda na Bielorrússia de modo a divulgar «os valores europeístas» e a preparar «a transição para o mercado». Depois disso, o agitador agora detido passou a responsável pela publicação online Nexta, também a partir da Polónia e da Lituânia, na qual deixou explícito que o seu património doutrinário assenta na fusão da «pró-democracia» com a herança nacionalista hitleriana, o fascismo e as manifestações violentas, reproduzindo assim o formato de regime instaurado pelos Estados Unidos e a União Europeia através da «revolução Maidan» na Ucrânia.

Em Atenas, onde tomou no domingo o voo que viria a ser sequestrado, Protasevich actuou como «fotógrafo» da chefe do processo de mudança de regime na Bielorrússia, Svetlana Tsikhanovskaya, durante a visita em que esta se encontrou com a presidente grega e com o embaixador dos Estados Unidos na Grécia, GeoffreyPyatt. Este diplomata, então embaixador em Kiev, foi um dos operacionais dogolpe de Maidan na Ucrânia em 2014.

Considerando que Protasevich foi responsável por manifestações violentas e ilegais a seguir às eleições na Bielorrússia, Minsk apresentou pedidos de extradição à Polónia, Lituânia e a outros países da região, que não foram atendidos. Seguiu-se agora o episódio de pirataria para consumar a captura.

O presidente norte-americano, Joseph Biden – um dos responsáveis directos do golpe de 2014 na Ucrânia, então como vice-presidente de Obama – e a União Europeia decidiram imediatamente aplicar novas sanções contra a Bielorrússia, que já estavam em preparação mesmo sem rapto, e promoveram o encerramento de aeroportos e espaços aéreos a aviões bielorrussos. Mas a nova fase de campanha contra Minsk, extensível a Moscovo, ainda apenas está no adro, tal é a excitação que se percebe em Washington e Bruxelas e nos seus megafones mediáticos com impacto global. Evidenciando-se Portugal na linha da frente ao admitir no Conselho de Estado a presença do secretário-geral da NATO para discutir a Bielorrússia.

«Sem precedentes»?

Num comunicado, os chefes de Estado e de governo dos 27 falaram do acto de pirataria de Minsk como um «incidente sem precedentes e inadmissível».

Inadmissível é, certamente: Mas será «sem precedentes»? Aqui a elite europeísta é traída pela memória.

No dia 3 de Julho de 2013, o avião oficial do presidente da Bolívia, com o próprio Evo Morales a bordo, fazia a ligação entre Moscovo e La Paz quando, por exigência de Washington, países como a Itália, França, Espanha e Portugal lhe fecharam os respectivos espaços aéreos obrigando-o a vaguear pela Europa até aterrar em Viena quase sem combustível e na iminência de uma catástrofe. Em território austríaco, a aeronave foi minuciosamente revistada pelas autoridades, a pedido dos Estados Unidos, supostamente em busca de Edward Snowden, ex-funcionário dos serviços secretos que acabara de denunciar ao mundo os métodos norte-americanos para invadirem a privacidade de cidadãos, empresas e Estados. Segundo Jen Psaki, na ocasião porta-voz da Secretaria de Estado e actualmente exercendo a mesma função na Casa Branca, era preciso «prender esse traidor». Nem que fosse, como era o caso, recorrendo à pirataria internacional contra o avião de um chefe de Estado.

E assim se percebe que Aleksandr Lukachenko não precisou de inventar a roda para travar adversários políticos. Os Estados Unidos de Obama e a própria União Europeia, esse «farol de democracia», inspiraram-no ao tentarem deitar a mão a «um traidor» e agora não cabem em si de indignação. Em Portugal o povo costuma dizer, nestes casos, que se trata de um sinal de pouca vergonha.

Em 21 de Outubro de 2016, autoridades do regime ucraniano obrigaram a regressar a Kiev um avião da Belavia, companhia bielorrussa, que descolara havia apenas 11 minutos. E informaram o comandante de que, se fosse necessário, enviariam aviões militares para fazer cumprir a ordem. Novamente em terra, o aparelho foi revistado e os agentes policiais prenderam então o jornalista e cidadão arménio Armen Martirosyan, autor de trabalhos que não agradaram ao regime nascido da «revolução de Maidan». Ao que parece a confusão entre os canais dos serviços secretos ucranianos era muita e o detido acabou por ser libertado e ainda seguiu viagem. Este episódio de sequestro, que atingiu mais de uma centena de passageiros de um avião civil, não mereceu uma palavra de reprovação por parte dos sempre tão sensíveis dirigentes dos Estados Unidos e da União Europeia.

Em matéria de pirataria e de assaltos aos direitos humanos, apesar da sua atitude criminosa, Lukachenko não pode mesmo considerar-se um pioneiro. Ainda está certamente presente nas memórias dos leitores – que não dos dirigentes da União Europeia e dos Estados membros – o comprovado acolhimento em aeroportos europeus de aviões-piratas da CIA transportando suspeitos de terrorismo a caminho de Guantánamo e que antes tinham sido torturados em prisões clandestinas instaladas em países como, precisamente, a Polónia e a Lituânia, fiéis intérpretes e dinamizadores dos «valores europeístas». Um episódio que esteve longe de provocar o escândalo, a reprovação e muito menos as sanções a que estamos a assistir no espaço «ocidental».

É claro que quando se pode contar com um imenso megafone amestrado para moldar a realidade pretendida, que não a autêntica, se torna muito fácil invocar grandiloquentes princípios sem recear que eles se virem contra os próprios.

Os princípios, porém, não são elásticos e a memória histórica funciona em seu apoio quando consegue sobreviver à intoxicante verdade oficial e mediática. Lukachenko deu um tiro nos pés; a União Europeia arremessa-lhe pedras e estilhaça os seus próprios telhados de vidro. Tudo isto mergulhado num repugnante caldo de hipocrisia

*José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

Imagem: O avião do voo 4978 da Ryanair aterra no aeroporto de Vilnius, proveniente de Atenas, a 23 de Maio de 2021, depois de uma paragem em Minsk, Bielorrússia, durante a qual o oposicionista Roman Protasevich, que seguia a bordo, foi detido pelas autoridades bielorrussasCréditosAndrius Sytas / REUTERS

Nota: 1 - A Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade (Radio Free Europe/Radio Liberty (RFE/RL) em inglês, Radio Svoboda em russo e bielorrusso) é uma emissora do governo dos EUA que transmite para a Europa de Leste, Ásia Central, Cáucaso e Médio Oriente. Foi fundada em 1949, durante a Guerra Fria, como uma «fonte de propaganda anticomunista» (Wikipedia, em inglês). Desde 1995 tem sede em Praga (República Checa).

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