João Melo | Diário de Notícias | opinião
Eu tinha prometido a mim mesmo não voltar a falar na covid-19 por uns tempos. Mas a posição da Europa "oficial" diante da maka da suspensão das patentes das vacinas contra o novo coronavírus não me permite esquecer esse assunto facilmente. Se alguém ainda tem esperanças de que a humanidade sairia melhor da atual pandemia, é melhor desenganar-se de uma vez por todas.
Faltam-me adjetivos para qualificar a posição dos líderes europeus que se recusam a apoiar a pretensão dos países pobres (por uma vez, esqueçamos os eufemismos) de levantamento temporário das patentes das vacinas anticovid, para permitir a sua produção e a sua distribuição a custos menores pelas regiões que continuam escandalosamente discriminadas no atual processo de vacinação global, em especial a África.
Como se sabe, tal pretensão, manifestada por centenas de países, é apoiada pelo presidente da maior potência mundial, Joe Biden, e pelo Papa Francisco, duas lideranças que não são, digamos assim, negligenciáveis. Mas os mesmos líderes europeus que, servis - e apenas para dar esse exemplo -, apoiaram a invasão do Iraque decidida pelos EUA com base numa comprovada mentira, agora rebelam-se "corajosamente" contra a correta posição norte-americana de subscrever a proposta de levantamento das patentes em questão.
A posição europeia é apoiada por todos os seus líderes, da direita à esquerda (os leitores decidirão se usarão aspas ou não). Ou seja, o grande "centrão" europeu está unido contra a suspensão das patentes.
Os seus argumentos são de uma clareza assustadora, não escondendo ao que vêm: defender os interesses estratégicos das grandes farmacêuticas - um dos pilares do sistema neoliberal, ao lado dos conglomerados financeiros e das big tech - e manter as nações pobres numa posição de dependência.
Comentarei aqui, brevemente, apenas dois deles.
O primeiro é que apenas a iniciativa privada é capaz de fomentar a inovação. Falácia. A história das invenções e do desenvolvimento tecnológico está cheia de descobertas e inovações realizadas pelos próprios estados ("inspiradas", por exemplo, em razões militares), sem esquecer que grande parte da pesquisa privada é financiada pelos governos. Por falar nas vacinas anticovid, lembro que apenas 3% (leram bem: 3%) da pesquisa da AstraZeneca foi feita com fundos privados.
O segundo argumento é patético: a suspensão das patentes não resolve o problema da produção e da distribuição de vacinas. Como assim? O que os países pobres reclamam é precisamente ter acesso livre às patentes para poderem produzir as vacinas de maneira massiva e distribuí-las a um preço mais reduzido. No caso de Angola, por exemplo, seria muito mais barato adquirir vacinas produzidas na África do Sul do que na Índia, na China, na Alemanha ou nos Estados Unidos.
O continente africano conseguiu vacinar até agora apenas 2% da sua população. O que dizer, portanto, quando o presidente francês, Emmanuel Macron, jura, com o ar mais seráfico possível, que a suspensão das patentes não resolve esse problema e que os africanos poderão (talvez fosse mais honesto dizer "terão de") continuar a contar com a "Europa solidária", seja lá o que isso for?
Quanto à declaração da presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, de que tem problemas "mais importantes" com que se preocupar do que o tema das patentes, a mesma fala por si. É caso para dizer: T. C. (tomámos conhecimento).
*Jornalista e escritor angolano, publicado em Portugal pela Caminho
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