# Publicado em português do Brasil
O ex-ator Mário Frias e a malhação do trabalho sujo
Se você achou que a encenação nazista do ex-secretário Roberto Alvim foi o
pior que poderia acontecer para o que sobrou de ministério da Cultura no
Brasil, temos uma má notícia. Acabou a era da performance, começou a da
canetada. E já que o gabinete do ódio foi desmontado (ao menos por ora) pelo
STF e pelo Sleeping Giants, o bolsonarismo organizou outra tropa de choque
digital para destruir os que eles taxam de inimigos.
Outrora responsável por políticas de fomento e democratização da cultura – que
iam de discussões sobre economia aos pontos de cultura, passando por uma profunda
discussão sobre direitos autorais –, a pasta de Cultura foi restrita a uma
secretaria insossa, que funciona sob o ministério do Turismo. Mas antes fosse
só a morte por inanição. O que descobrimos é algo muito pior. O bolsonarismo,
vocês sabem, não se contenta em ser pouco ruim.
A secretaria de Cultura comandada pelo ex-ator Mario Frias está usando a
máquina pública para defender blogueiros, youtubers, manipuladores e mentirosos
em geral que propagam o discurso do presidente.
O ato mais grotesco rolou no último mês: é lá que está sendo gestado o bizarro decreto para proibir as redes sociais de apagar posts.
Alegando ser uma posição "contra a censura", o governo decidiu, do
dia para a noite, mudar o Marco Civil da Internet, uma lei que foi discutida
por cinco anos para estabelecer direitos e deveres para cidadãos e empresas. Na
nova proposta, Facebook, Twitter, YouTube e outras redes sociais não poderão
mais apagar posts dos usuários – só após uma decisão judicial. Conseguem
imaginar o tamanho desse buraco? Sem a canetada de um juiz, um vídeo ensinando,
por exemplo, a fazer nebulização com cloroquina pode ficar no ar por meses, e matar pessoas.
Isso praticamente extinguiria a moderação das redes sociais. Hoje, elas têm
diretrizes de comunidade e regras que tentam impedir discurso de ódio e
violência. Também têm medidas para tentar diminuir o alcance de notícias falsas
e desinformação sobre covid-19, apagando posts que espalham mentiras. E nós
sabemos que elas falham – e muito – tentando deixar nossa timeline saudável.
O que Bolsonaro quer é basicamente piorar isso. É claro que a turma de Mario Frias está trabalhando pela família de Jair, e não pelo país. O decreto surgiu depois que o presidente teve posts apagados por espalhar mentiras sobre o coronavírus. Então, para defender o direito do presidente e de seus seguidores de continuarem propagando o negacionismo impunemente, entrou em ação a secretaria de Cultura.
Em fevereiro desse ano, o ex-ator já tinha avisado: "Não admitirei qualquer tipo de censura", como se o seu cargo lhe conferisse algum poder de paladino da liberdade de expressão. Ele não mencionou o caso, mas a direita bolsonarista, na época, estava em polvorosa com a remoção, pelo You Tube, do canal de extrema-direita Terça Livre. Foi uma clara resposta do governo a uma das poucas ações mais enérgicas do Google contra um dos principais porta-vozes do negacionismo no país. (Allan dos Santos, depois, conseguiu na justiça a retomada de seu canal).
Na época, Frias disse que pediu à Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual que notificasse o Google para pedir explicações sobre as remoções. Como o próprio nome sugere, essa secretaria deveria cuidar de questões relativas à gestão de direitos autorais e combate à pirataria, além de regulações relacionadas ao tema. "Pedir explicações" a uma empresa a serviço de um interesse particular não está entre suas atribuições.
Mas a secretaria, comandada por um advogado que usa a Polônia como exemplo de país defensor da liberdade (leia aqui essa entrevista se você quiser saber mais sobre a extrema-direita polonesa), tomou para si o papel de defender o que chama de "direito de opinião". O paladino desse “direito” se chama Felipe Carmona Cantera, investigado por espalhar notícias falsas (claro) e membro de um grupo que montava dossiês contra adversários do governo (lógico).
"Missão dada é missão cumprida", disse Carmona
Com um cargo no executivo, Carmona sequer disfarçou a motivação por trás da pressa. "Na função de secretário de Direitos Autorais, vi com preocupação o banimento de Donald Trump das redes sociais, e vários episódios no Brasil", tuitou em maio.
Sua "missão", o decreto, regulamenta outro decreto, o 8.711, de 2016, que organizou o Marco Civil. Foi uma manobra porque, para alterar a lei, o caminho precisaria ser o legislativo – e Bolsonaro, você sabe, prefere a canetada.
O Marco Civil da Internet determina que uma empresa de internet só pode ser responsabilizada por um conteúdo caso se recuse a removê-lo após uma ordem judicial. A ideia desse artigo foi justamente preservar a liberdade de expressão: sem precisar responder por violações, empresas como Twitter e YouTube poderiam manter um conteúdo no ar, a não ser que a justiça mandasse apagá-lo.
Isso não isentou essas empresas, é claro, de criarem suas próprias políticas de moderação, já que a manutenção de um espaço de livre opinião esbarra também em outros direitos fundamentais – ninguém tem liberdade de expressão para ser racista, por exemplo, ou para receitar um coquetel mortal de nebulização. Isso é crime.
É aí que entra o decreto de Bolsonaro. Ele quer distorcer o entendimento do Marco Civil: se o provedor não pode ser responsabilizado, então também não poderia remover o conteúdo por conta própria. Uma bobagem. As empresas podem, e devem, tomar cuidados antes que a justiça entre em ação.
A iniciativa cria uma terra sem lei, onde, como exemplifica o professor Carlos Affonso, da UERJ, não apenas espalhadores de mentira podem vomitar cloroquina por toda a timeline, mas motoristas ruins de Uber (ou coisa pior) e restaurantes que roubam clientes não podem ter suas contas suspensas se não houver uma ordem judicial. Isso porque o Marco Civil não regula só redes sociais, mas todos os serviços de internet.
Além de potencialmente inundar o judiciário – e nós sabemos quem tem condiçõe$ de acionar a justiça no país –, cria um ambiente de risco em praticamente todos os serviços que usamos na internet. Ainda piora: na proposta, a fiscalização de violações na rede ficaria a cargo da secretaria chefiada por Carmona, criando uma espécie de Ministério da Verdade bolsonarista.
"Fiquei estupefato", nos disse Paulo Rená, mestre em Direito, Estado e Constituição, e um dos gestores do Marco Civil da Internet na época em que a lei estava sendo elaborada. Ele ficou sabendo da canetada por um jornalista e ficou surpreso com a "facilidade com que se propõe uma mudança dessa magnitude sem debate, no sigilo". Para Rená, a proposta de Bolsonaro é claramente inconstitucional – mas não só isso. Ela extrapola e distorce as regulações do Marco Civil.
Nem o Comitê Gestor da Internet no Brasil, o CGI, que em tese deveria participar da elaboração de políticas que alteram o Marco Civil, foi ouvido pelo governo para elaborar o decreto. Apesar de ter sido considerado ilegal por pesquisadores da área de direito e tecnologia, a Advocacia-Geral da União não viu problema em dar um parecer favorável ao decreto. Aparentemente, está tudo bem o Poder Executivo atuar como moderador na internet. O decreto ainda não foi publicado, mas a oposição já avisa que vai tentar derrubá-lo se Bolsonaro insistir na canetada.
Já publicamos muitas reportagens questionando e expondo as entranhas dos sistemas de moderação das redes sociais. São pouco transparentes, precários e falham miseravelmente em manter um ambiente saudável. Crimes online explodem, notórios espalhadores de mentiras ganham dinheiro e ficam no ar impunemente e narrativas negacionistas se proliferam sem incômodo. É um sistema que precisa sem dúvida ser melhorado e, sobretudo, aberto ao escrutínio público.
As big techs sabem que o mundo está cobrando que elas melhorem; que trabalhem ativamente para manter a timeline livre de violência, mentiras e outros artifícios capazes de erodir sistemas democráticos pelo mundo. Os bolsonaristas sabem que isso significa que, para eles, o cerco vai se fechar. Eles precisam, nas palavras de Carmona, se "antecipar". É só na lama que podem vencer. Afinal, 2022 está quase aí.
Tatiana Dias - Editora Sénior | Leandro Demori - Editor Executivo | The Intercept_ Brasil (newsletter)
Sem comentários:
Enviar um comentário