Óscar Afonso* | Expresso | opinião
Seria desejável compreender o motivo pelo qual o Estado não o exerceu o direito de preferência na venda das barragens. (...) Todos os impostos são devidos neste negócio, o IMI, o IMT, o imposto do selo e o IRC, não se aplicam benefícios fiscais e existem sólidos indícios da prática de crime de fraude fiscal
No passado dia 19, em representação do Movimento Cultural da Terra de Miranda (MCTM), Alberto Fernandes, José Maria Pires e eu próprio prestamos declarações na 5ª Comissão de Orçamento e Finanças, na Assembleia da República, no âmbito do negócio entre a EDP e a ENGIE e, em particular, no âmbito do subsequente processo de Inquérito levantado contra José Maria Pires. Nesta crónica pretendo dar conta dos 26 factos que o MCTM ainda hoje não compreende, mas que o futuro se encarregará de nos explicar.
Estivemos presentes porque um órgão do Estado Português, a Autoridade Tributária (AT), decidiu abrir um inquérito disciplinar a um cidadão que se empenhou na defesa da sua Terra e do seu país, cumprindo uma missão cívica, que ao mesmo tempo é um direito e um dever constitucional – 1º facto, o processo. Estivemos na casa da democracia, perante as Senhoras e Senhores Deputados, para dizer que entendemos esse processo como uma afronta, algo que pensávamos impossível numa democracia madura.
Quem mandou instaurar o processo fê-lo sobre um documento entregue por um grupo de cidadãos ao Senhor Presidente da República, a seu pedido. Assim sendo, pergunto-me: como se sentirão os cidadãos que fizerem doravante o mesmo? Esse documento foi elaborado a pedido, expresso e pessoal do Senhor Ministro do Ambiente. Quem abriu o processo justificou-se falsamente que esse documento era um parecer jurídico – 2º facto, o não parecer. Basta olhar para ele para se saber que não o é, o Governo sabia que não era e a AT para além de saber que não era, sabia também da participação cívica do José Maria Pires no MCTM.
A menos que o contrário seja provado, considero que o objetivo deste processo foi apenas um: calar um movimento cívico, o que é inaceitável numa democracia – 3º facto, a motivação para o suposto desejo de silenciar.
Dizem-nos que o processo foi arquivado. Mas, de facto, não foi. Teve uma consequência sancionatória. A Diretora Geral da AT determinou três consequências para o José Maria Pires que não se entendem nem se aceitam: não pode intervir em procedimentos da AT sobre o negócio da venda das barragens – 4º facto; não pode intervir em nenhum outro procedimento de qualquer contribuinte sobre idêntica factualidade – 5º facto; não pode intervir em nenhum outro procedimento a que sejam aplicáveis as mesmas normas legais aplicáveis à venda das barragens – 6º facto.
Foi lançada sobre o José Maria Pires uma suspeição generalizada, que é inaceitável e inconstitucional, prejudicando gravemente os seus direitos constitucionais. Nunca mais, na AT, se deve pronunciar acerca de nada que possa ter a ver com o negócio da EDP. O que potencialmente o impede de fazer seja o que for. Além disso, esta verdadeira sanção é para toda a vida, porque não tem nenhum limite temporal – 7º facto. Assim, um dos mais qualificados juristas portugueses em matéria fiscal é silenciado para sempre no seio da própria AT, onde já prestou dos mais relevantes serviços ao país.
Este comportamento inaceitável da AT está em linha com outros, de todos os organismos dependentes do Governo que intervieram no negócio da EDP, e que têm que ser esclarecidos.
Desde logo, do Senhor Ministro do Ambiente que: por um lado, alega que autorizou o negócio da venda das barragens do Douro Internacional apenas na componente ambiental do negócio, porque a matéria fiscal não é da sua competência, mas, por outro lado, declarou, 10 dias depois do negócio, que o que ele autorizou não estava sujeito ao pagamento de impostos – 8º facto; autorizou um negócio montado para fugir ao pagamento de impostos, apesar de estar avisado e consciente disso – 9º facto; não exigiu a revisão do valor da concessão, como condição da sua autorização, como devia, face à prorrogação de 2007, de Manuel Pinho, por um valor (660 milhões de euros) inferior em mais de mil milhões de euros ao valor real das barragens (1.700 milhões de euros) – 10º facto; autorizou a EDP a vender as barragens, quando esta estava em incumprimento generalizado e reiterado das suas obrigações contratuais emergentes do próprio contrato de concessão, nomeadamente em termos ambientais – 11º facto; insultou e denegriu publicamente o MCTM – 12º facto.
Mas também do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que: promoveu uma alteração legislativa, no artigo 60.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que assenta como uma luva aos interesses da EDP no negócio – 13º facto; acompanhou o Senhor Ministro do Ambiente na extraordinária declaração de que um dos maiores negócios do século, em Portugal, estava isento de todos os impostos – 14º facto.
Da Agência Portuguesa do Ambiente que: aceita e concorda que, em conformidade com o interesse da EDP, umas vezes as barragens do Douro Internacional sejam consideradas bens do domínio público e noutras bens privados da própria EDP – 15º facto; aceitou que a EDP transmitisse as concessões das barragens a uma empresa fictícia, que a própria EDP lhe anunciou que duraria apenas 100 dias – 16º facto; fez ressuscitar, como que por milagre, o direito de bombagem da água do rio Douro para o Sabor e o Tâmega, colocando estes rios a correr contrário ao longo de vários quilómetros, sem qualquer contrapartida para o Estado – 17º facto; validou um negócio que é uma clara construção abusiva para fugir ao pagamento de impostos – 18º facto; apesar de ter informado a AT de que as barragens eram bens do domínio público e, como tal intransmissíveis, permitiu a sua transmissão duas vezes, pela EDP e pela Engie, neste negócio – 19º facto.
Da Direção Geral do Tesouro e das Finanças (DGTF) que, chamada a pronunciar-se sobre os interesses patrimoniais e financeiros do Estado no negócio disse que não tinha tempo nem conhecimento para fazer essa análise, mas permitiu que ele se realizasse – 20º facto;
Da Parpública que fez o mesmo que a DGTF – 21º facto.
Da AT, que, pela mão da mesma Diretora Geral: despachou no sentido de que um negócio de venda de barragens paga imposto do selo e, de seguida, sobre o mesmo negócio vem dizer exatamente o contrário – 22º facto; despachou no sentido de que as barragens que estão no balanço das concessionárias devem pagar IMI e, menos de um ano depois, veio dizer o contrário, curiosamente, num processo da EDP – 23º facto.
Dos tribunais arbitrais que, aparentemente, manipularam a distribuição de um processo de impugnação da EDP contra a liquidação do IMI de uma das barragens do Douro Internacional, entregando-o a uma árbitra, que é também advogada e que decidiu quase sempre individualmente a favor dos impugnantes – 24º facto; decidiu a favor da EDP, dizendo serem bens do domínio público prédios que estavam no Balanço da EDP como bens privados, que na realidade são – 25º facto.
A esses factos, acrescem ainda um outro. Seria desejável compreender o motivo pelo qual o Estado não o exerceu o direito de preferência na venda das barragens – 26º facto. Efetivamente, tanto quanto se sabe, o Estado nem sequer terá estudado as vantagens e os eventuais inconvenientes no seu exercício, podendo assim ter lesado o interesse público.
Todos estes comportamentos, estranhos, diria mesmo bizarros, sistematicamente contra o interesse público, praticados por aqueles a quem cabe defendê-lo, são inadmissíveis, e sempre a favor da EDP. Até agora, não compreendemos o racional desses comportamentos, mas, como disse acima, estamos convictos que o viremos a conhecer, embora não se saiba quando.
O MCTM tem a certeza de que todos os impostos são devidos neste negócio, o IMI, o IMT, o imposto do selo e o IRC, que não se aplicam benefícios fiscais e que existem sólidos indícios da prática de crime de fraude fiscal. Mas temos dúvidas se estas instituições, que são as mesmas a quem cabe aplicar a lei, sejam capazes de o fazer, como o fazem a qualquer cidadão.
Por isso, pelas nossas dúvidas, aceitamos o convite para prestar declarações na 5ª Comissão de Orçamento e Finanças, na Assembleia da República, e fomos pedir às Senhoras e aos Senhores Deputados que continuem a sua ação de escrutínio e, também, dizer que confiamos que a intervenção da Procuradoria Geral da República nas investigações venha a fazer imperar o Estado de Direito neste negócio.
* Óscar Afonso, oafonso@fep.up.pt, é docente da Faculdade de Economia da Universidade do Porto e sócio fundador do OBEGEF
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