José Sócrates* | Diário de Notícias | opinião
Tudo igual, tudo igual, tudo desesperadamente igual. A detenção usada para investigar e a violação do segredo de justiça usada para difamar. No centro da ação mediática já não está uma pessoa com os seus direitos, mas um alvo a que ninguém dará ouvidos quando chegar a sua vez de dizer qualquer coisa em sua defesa. A maledicência estatal resultou em pleno e o plano foi repetido sem falhas, pouco importando se toda a atuação se baseou na ação criminosa de violação de segredo de justiça. Afinal, quem ainda liga a isso? Quem se interessa ainda por saber se havia ou não fundamento legal para a detenção? Salvo honrosas exceções, os jornalistas, encantados por tanto escândalo e por tanta audiência, apenas divulgam e festejam e aplaudem. Por eles está tudo bem e não há razão nenhuma para questionar as autoridades, que só poderiam ver nisso ingratidão. Afinal de contas, são elas que fornecem a informação que lhes alimenta a ação.
O direito penal evolui assim por transgressões. Se violarmos as normas muitas vezes, as pessoas acostumam-se e aceitam. Agora, prende-se primeiro e pergunta-se depois; agora, arrastam-se as pessoas para a cadeia para humilhar, para despersonalizar e para intimidar os outros - calem-se, que vos pode acontecer o mesmo. A detenção para interrogatório deixou de ser um dispositivo extraordinário da ação judicial para se transformar num vulgar instrumento da violência estatal quando identifica o inimigo social. O segredo de justiça há muito que se transformou em ferramenta à disposição das autoridades, usada por forma a substituir a presunção de inocência pela presunção pública de culpabilidade. Um novo tempo e uma velha cultura. Lentamente, a caminho de um estado policial.
O espetáculo de violência estatal concentra-se, portanto, nestes dois pontos - a prisão abusiva e a campanha de difamação alimentada pela violação do segredo de justiça. Abuso e crime, eis o comportamento institucional onde se já se vislumbra o que a senhora ministra da Justiça chamou, em artigo recente, "direito dos justiçáveis". Este novo mundo precisa de novas categorias e novas gramáticas. A expressão põe de lado o clássico fundamento da dignidade pessoal e dos direitos universais e convida a separar uns e outros. Eis como tudo encaixa. Na verdade, Joe Berardo e Luís Filipe Vieira já não são indivíduos com direitos, são "justiçáveis".
No livro O nosso agente em Havana, Graham Greene expõe a teoria sobre as classes "torturáveis" e não "torturáveis": " Há pessoas que esperam ser torturadas e pessoas a quem tal ideia enche de indignação ( ...) a polícia pode usar de toda a brutalidade que quiser com os imigrantes da América Latina e dos estados do Báltico, mas não com os visitantes do seu país ou da Escandinávia (...) Os católicos são mais torturáveis do que os protestantes ". A nova linguagem da ministra não é, portanto, completamente nova. O que é novo é que, para lhe encontrarmos o rasto, tenhamos que regressar a um mundo de guerra fria, de tortura, de ditaduras latino-americanas e de conversas de chefes de polícia.
Impossível também não reparar na primeira entrevista do senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça dada ao jornal Observador: "Há um excesso de garantias de defesa. Se queremos uma justiça mais rápida temos que cortar com isso". Cortar com isso, nada menos. Ao senhor juiz presidente não impressiona que as autoridades penais prendam durante onze meses sem que apresentem qualquer acusação durante esse período. Não impressiona que se adiem indefinidamente uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes os prazos legais de inquérito. Não o impressiona a despudorada e ostensiva violação do segredo de justiça. Nada disto lhe suscita qualquer reflexão. Na nova dialética "justiceiro - justiçáveis" que nos é proposta, esse problema parece não vir ao caso, já que estamos a falar dos segundos, que são problemáticos, e não dos primeiros que são intocáveis. Mas vamos ao que importa. O que é extraordinário é que a única preocupação do senhor Presidente seja a de se perguntar se ainda faz sentido que o Estado Democrático garanta ao cidadão o direito a poder recorrer de uma decisão judicial que considere errada ou injusta. É absolutamente extraordinário. E mais extraordinário ainda é o silêncio. A violência do silêncio.
Finalmente, no Benfica, a cena em palco é ainda mais repulsiva. Nem uma palavra de simpatia por quem ainda ontem era o líder da equipa. Nem uma palavra. O cadáver ainda não arrefeceu e ali só se vê cálculo e ambição e poder e oportunismo. Aquelas pessoas perderam-se ali mesmo, no preciso momento em que encenaram o megalómano espetáculo do estádio vazio de onde emergiria a figura redentora. No final, o pano desce tristemente, mostrando que por detrás dele nada existe - nem legitimidade, nem gravitas. Os mais calculistas são frequentemente os mais incautos. À volta, de novo, o silêncio.
* Ex-primeiro-ministro
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