Afeganistão. EUA enviam militares para retirar civis. Será Cabul a próxima Saigão?
Fantasmas do que aconteceu em 1975, no fim da guerra do Vietname, surgem diante do avanço dos talibãs. Vários países, seguindo o exemplo de Washington, vão reduzir funcionários ou até fechar embaixadas.
"Não haverá circunstância alguma em que vão ver pessoas a serem levadas do telhado de uma embaixada dos EUA no Afeganistão." As palavras são do presidente norte-americano Joe Biden, em junho, quando rejeitou qualquer semelhança entre a retirada norte-americana do Afeganistão e a queda de Saigão em 1975, no final da guerra do Vietname. Mas numa altura em que militares estão a ser enviados de novo para Cabul para ajudar a retirar o pessoal diplomático - não para ajudar o governo afegão a travar os avanços dos talibãs, que na última semana conquistaram mais de metade das capitais provinciais -, a comparação entre os dois episódios volta a fazer-se ouvir.
A queda de Saigão e a derrota dos EUA no Vietname ficou imortalizada na imagem do fotojornalista neerlandês Hubert van Es, em que se vê uma fila de pessoas a subir para o telhado da embaixada onde estava um helicóptero - o episódio a que Biden se referia. Ao longo de dois dias, 29 e 30 de abril de 1975, mais de sete mil pessoas deixaram dessa forma a então capital da República do Vietname (Vietname do Sul), entretanto rebatizada de Cidade de Ho Chi Minh em homenagem ao líder comunista.
Na quinta-feira, os EUA enviaram
três mil militares para o Afeganistão para garantir a segurança do aeroporto de
Cabul durante a retirada do pessoal diplomático e dos colaboradores afegãos.
Outros mil militares vão para o Qatar de forma a fornecer apoio técnico e
logístico e mais
A retirada está a ser criticada pela oposição norte-americana. "As últimas notícias de uma nova redução do pessoal na nossa embaixada e o destacamento apressado de forças militares parecem preparativos para a queda de Cabul. As decisões do presidente Biden levam-nos para uma sequela ainda pior do que a humilhante queda de Saigão em 1975", disse num comunicado o líder da minoria no Senado, Mitch McConnell. O republicano defende um maior apoio dos EUA às forças afegãs, incluindo apoio aéreo para lá da data oficial de retirada militar - 31 de agosto. "Sem isso, a Al-Qaeda e os talibãs podem celebrar o 20.º aniversário dos ataques do 11 de Setembro a queimar a nossa embaixada em Cabul", acrescentou McConnell.
Foram os atentados de 2001, onde morreram quase três mil pessoas, que levaram os norte-americanos a invadir o Afeganistão para derrubar o regime talibã, no poder desde 1996, tendo imposto uma interpretação rígida do islão, limitado os direitos das mulheres e era acusado de dar apoio à Al-Qaeda. Em duas décadas de guerra, os EUA gastaram quase dois biliões de dólares e sofreram quase 2500 baixas.
O receio dos analistas é que, tal como a saída dos EUA do Iraque levou à ascensão do Estado Islâmico, a retirada do Afeganistão possa dar um novo fôlego à Al-Qaeda. "O que temos que fazer agora é não voltar as costas ao Afeganistão mas continuar, como membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a trabalhar com os nossos parceiros e garantir que o governo de Cabul não permite que o país seja, novamente, terreno fértil para o terrorismo", disse o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, após uma reunião de emergência. Os britânicos também enviaram tropas para retirar os seus cidadãos e funcionários locais.
Ontem, os talibãs conquistaram mais seis capitais provinciais, controlando já 18 das 34 em que se divide o Afeganistão e cerca de dois terços do território. No início da semana, a previsão de Washington era que Cabul podia cair no prazo de três meses após o fim da retirada militar. Na quinta-feira, e diante dos avanços feitos, já se falava que podia cair em setembro.
As semelhanças com Saigão
A guerra do Vietname, entre o norte comunista (apoiado pela então URSS e a China) e o sul apoiado pelos EUA, durou duas décadas, com os norte-americanos a entrar oficialmente a partir de 1965. Em janeiro de 1973, os EUA e a República Democrática do Vietname (Vietname do Norte) negociaram um cessar-fogo e o início da retirada das tropas norte-americanas. Também os EUA, sob a presidência de Donald Trump, negociaram com os talibãs a retirada, mas o ex-presidente disse que os seus planos incluíam garantias de segurança.
Apesar do acordado na altura com Washington, em 1975, os vietcongues (nome pelo qual era conhecida a organização revolucionária comunista do Vietname do Sul) tinham lançado uma nova ofensiva contra Saigão. No poder estava um governo civil apoiado pelos EUA, depois de ter sido aprovada uma nova constituição e de terem sido realizadas eleições em 1967. Também no Afeganistão foi aprovada uma nova Constituição (em 2004) e tem havido eleições, com governos apoiados pelos EUA.
Semanas antes da retirada dos últimos civis de Saigão, na Operação Vento Constante, a mesma tática tinha sido usada para retirar menos de 300 pessoas de Phnom Penh, a capital do Camboja, dias antes de os Khmer Vermelhos chegarem ao poder. A uma escala muito maior, a operação em Saigão foi a mais famosa de retirada de não-combatentes (NOE na sigla em inglês). Uma expressão que Washington não está a querer usar agora.
"Não estamos a eliminar completamente a nossa presença diplomática no terreno", disse o porta-voz do Pentágono, John Kirby, evitando falar de uma evacuação. "Ninguém está a abandonar o Afeganistão, não nos estamos a afastar. Estamos a fazer a coisa certa na hora certa para proteger as nossas pessoas", afirmou.
A retirada dos soviéticos
A saída dos norte-americanos está também a ser comparada à retirada dos soviéticos do Afeganistão, que ficou concluída a 15 de fevereiro de 1989. Estes tinham invadido o país em dezembro de 1979, para apoiar o governo comunista do Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA), acabando envolvidos numa guerra de guerrilha contra os mujaedines. Mas em 1986, o líder soviético Mikhail Gorbachev deu ordens para retirar no prazo de dois anos, apelidando o Afeganistão de "ferida sangrenta".
A saída levou os mujaedines a lançar também uma ofensiva, mas ao contrário dos talibãs que estão a fazer avanços rápidos, foram travados pelo governo afegão, que continuava a ter o apoio de Moscovo, e pelas forças militares que os soviéticos tinham treinado. Os rebeldes acabariam contudo por conseguir derrubar o governo do PDPA três anos após a retirada, em 1992, quando o primeiro presidente da Rússia, Boris Ieltsin, cortou o apoio financeiro.
Susana Salvador | Diário de Notícias
Imagem: A icónica imagem da retirada de Saigão em 1975, do fotojornalista Hubert van Es, que se tornou num símbolo da derrota dos EUA. - © Bettmann Archive
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