Mariana Mortágua* | Jornal de Notícias | opinião
O Garantir Cultura foi lançado pelo Governo para financiar a criação e programação culturais. Pela primeira vez, todos (ou quase todos) os projetos elegíveis tiveram direito ao apoio. Para muitos milhares de trabalhadores das artes, este pode ser mesmo o rendimento que faz a diferença depois de uma prolongada paralisação das atividades culturais.
Segundo as regras destas linhas de financiamento, estão previstas duas formas de participação: uma para empresas e outra para entidades singulares e coletivas que não prossigam atividade de natureza empresarial. Segundo o regulamento trata-se, em ambos os casos, de um apoio a fundo perdido. Na verdade, é um financiamento para a realização de atividades, atribuído perante a justificação das despesas efetuadas.
O processo de candidatura foi atribulado nos prazos, mas relativamente simples nos procedimentos, tal como os primeiros recebimentos. Tudo corria estranhamente bem, num Ministério habituado a ligar o complicómetro e dificultar a vida a quem já lida com o caos burocrático que vem com a precariedade específica do setor. Tudo corria bem até os beneficiários do financiamento começarem a ser confrontados com um conjunto de exigências ausentes do regulamento.
Primeiro, no contrato, surgiu uma frase enigmática: o apoio é prestado "fora do campo de sujeição do IVA". Bom, com imaginação e pessimismo é possível que o Ministério esteja a dizer que não vai pagar a parcela das despesas correspondentes ao IVA. A interpretação foi confirmada pelas primeiras submissões de despesas, que esbarraram contra a teimosia da plataforma eletrónica. Ora, a medida até pode fazer sentido no caso de empresas ou entidades que podem deduzir o IVA gasto, mas esse não é o caso da maior parte dos beneficiários individuais e associações. O que está a ser dito, portanto, é que o programa criado para apoiar os profissionais precários da Cultura exige que estes autofinanciem 23% (ou a taxa aplicável de IVA) dos seus projetos.
Foi depois comunicado a várias entidades não empresariais que os documentos de quitação que emitiram para comprovar o recebimento do valor não seriam válidos. É necessário, afinal, um documento contabilístico, ou seja, um recibo verde. Não é um pormenor, já que com a fatura/recibo verde o "apoio" passa por "venda" e chegam obrigações fiscais sem sentido. Para além do IVA, a emissão do recibo cria uma obrigação descabida de IRS e Segurança Social sobre a totalidade do valor do apoio, como se fosse um rendimento pessoal e não o financiamento de todo um projeto.
Em janeiro de 2020, quando esta exigência surgiu pela primeira vez, e teve de ser corrigida, a justificação foi a pouca experiência do Ministério na atribuição de apoios sociais. Desta vez, trata-se de financiamento à criação. Sem outra desculpa, resta a incompetência do Ministério, ou a vontade deliberada de poupar uns milhões na confusão.
*Deputada do BE
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