Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Uma das características francamente mais desprezíveis da espécie humana passa pela manifestação comportamental pedinchona e algo exibicionista de quem se põe nas pontas ou bicos dos pés, clamando por atenção, visibilidade, razão ou reconhecimento à força.
Se é assim para o comum dos mortais, imagine-se para o político na antecâmara de eleições, a meses do voto em urna.
Quando o assunto é saúde pública e pandemia, porém, conviria o maior recato e prudência. Infelizmente, uma vez mais, a comunicação do "dossier" da vacinação de crianças e adolescentes entre os 12 e os 15 anos foi um desastre de coordenação entre o poder político e a esfera técnica da saúde. Que estranha mania, esta, a dos políticos se quererem colocar na ponta das seringas.
"As decisões da DGS são puramente técnicas", assegura António Costa. O simples facto do primeiro-ministro ter de vir a terreiro justificar a decisão é, desde logo, reveladora. Reveladora, em primeiro lugar, de que há uma espécie de "Liga do Apocalipse" que considera que as vacinas nos vão transformar em zombies com antenas ou em postos de registo e emissão. Este "lóbi" negacionista antivacinação está mais activo do que nunca quando o debate se faz à volta da vacinação das crianças.
Mesmo após a DGS ter esperado (e bem) para alicerçar a decisão nos resultados da experiência de vacinação de 6 milhões de crianças na EU (a que se somam os já conhecidos resultados de 9 milhões de crianças nos EUA), há quem critique a espera, confundindo-a com demora ou incerteza. A demagogia negacionista é imparável. Daí que fosse dispensável que o poder político avançasse com comentários desnecessários e certezas antes do tempo, parecendo adiantar-se à decisão dos técnicos de saúde. Ao ponto de, antes da própria DGS, apontar o calendário final de 19 de Setembro para a vacinação dos jovens.
O processo de vacinação em Portugal é, globalmente, um caso de sucesso e que nos deveria orgulhar. Pelo esforço e comprometimento de todos, em especial - como é evidente - de todos os profissionais da saúde. Mas também de cada um de nós, cidadãos, que esperamos a nossa vez, priorizando quem mais precisava, abdicando de muitos dos nossos direitos e liberdades, cumprindo regras por vezes dúbias ou de pouco sentido, ainda assim com um propósito. Um bem maior, comunitário.
A pandemia está longe de acabar e não será a vacinação das crianças que impedirá novos surtos, acredito. Mas devemos estar orgulhosos de estarmos a fazer a nossa parte, sentindo o privilégio de tomarmos uma vacina que tanta gente no Mundo não tem e que vai morrer precisamente por não a ter.
Quem está vacinado pode contrair doença mas será, certamente, doença menos grave e que transmitirá menos carga vírica para os outros. Em Portugal, felizmente, são poucas. Mas é preciso dizer, sem pruridos, que as pessoas que não se querem vacinar são grandemente responsáveis por novos surtos e pelo aparecimento de novas variantes. Uma coisa é não ter a vacina. Outra coisa é rejeitá-la.
*Músico e jurista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)
Imagem: Portugal é o país da UE com mais casos da variante Delta Plus (que é afinal a já conhecida mutação nepalesa)
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