Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Parece uma anedota. Quando 67% da população acima dos 15 anos é obesa ou apresenta excesso de peso, num país em que a prevalência da obesidade entre os 5 e os 9 anos é de 37%, recomendaria o bom senso que qualquer medida de saúde pública que procurasse salvaguardar o equilíbrio da alimentação das crianças e adolescentes nas escolas fosse recebida com um aplauso unânime.
Mas nada surpreendentemente, o despacho que vem clarificar e dar força de lei à lista dos alimentos que não podem fazer parte da oferta alimentar nos bares das escolas, algo que já está sugerido como recomendação há quase uma década, gerou uma vaga de opiniões contraditórias e dificilmente compreensíveis. As trincheiras são cavadas a fundo e, à boleia da ementa, a trincheira da direita liberal quis transformar os bares das escolas numa aula de economia política.
O exercício da liberdade e da moderação na escolha alimentar não está ao alcance das crianças. Aliás, olhando as estatísticas, nem de boa parte dos adultos. A ideia de uma escola onde se ensina algo que é imediatamente contrariado à saída da sala de aula é a negação da validade da aprendizagem. É de uma ingenuidade atroz pensar que basta ensinar na aula sem que o exemplo seja dado fora dela ou, pior ainda, quanto os bares das escolas iluminam a mundividência da passagem entre Chaves e Berlim, insinuando a geografia do caminho pelas prateleiras, entre pastéis e bolas. Aos alunos, de nada vale continuarem a fazer recortes da roda alimentar para cartolina ou desenharem a minúcia da talha dos brócolos para artes visuais, se depois são confrontados com hambúrgueres em pão de açúcar e salgadinhos. A "última tentação do aluno" seria carregar essa cruz de hipocrisia, um tormento moral entre pavilhões que nem Scorsese se arriscaria a filmar senão num filme interdito a menores. A idade adulta da escola não deixa cair o bilhete de identidade quando cheira a comércio.
A promoção de hábitos de vida saudável não se faz apenas e só pela proibição. Mas para os que entendem que se compra fora da escola o que não se encontra lá dentro, aconselha-se a luta pela colocação de máquinas de tabaco à porta das bibliotecas escolares. Há muito a fazer pela alimentação que é dada às nossas crianças, muitos bares de escola são refúgio e complemento para a falta de qualidade da oferta nas cantinas e a ausência de pensamento nutricional é gritante. Mas o segredo está na diversificação, criatividade e racionalização da oferta. Entre a teoria e a prática, a escola tem de ser um universo de coerência. Enquanto alguns preferem agitar a presença de Limos, o demónio da fome, e outros clamam por Deméter, a deusa dos alimentos, que haja o mínimo de bom senso para não batalhar questões ideológicas sobre "junk food" retiradas da arca frigorífica do bar, só porque a escola pública é da responsabilidade do Estado. E que o ensino privado, com ou sem obrigações, siga ou continue a praticar o exemplo.
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga ortografia
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