Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Os pronunciamentos das diversas forças políticas, no quadro do debate em curso sobre a proposta do Orçamento do Estado (OE) para 2022, aconselha todas as cautelas quanto a prognósticos relativos ao seu desfecho, pois a política está cheia de surpresas. Com prejuízo para os portugueses, o enfoque do debate está colocado nas táticas dos partidos e na utilização do OE como fator potenciador de uma crise política.
Existem, a meu ver, três fatores que alimentam este cenário: a fragilidade estratégica em que o Partido Socialista decidiu colocar-se nesta legislatura, podendo dizer-se que não terá a responsabilidade toda nesse processo, mas que é sua a parte de leão; o sofrimento que a Direita vem acumulando, provocado pela ansiedade incontida de aceder ao poder, mesmo sem qualquer programa político decente para o país; a impaciência do presidente da República (PR), agora em segundo mandato, que vê no atual quadro uma oportunidade para exercitar os seus dotes de manipulador político. Marcelo pode estar, como já estão "estadistas" do seu partido, a entrar na ansiedade obsessiva da crise.
Marcelo habituou os portugueses a esperarem dele comentários a tudo e mais alguma coisa e a ser uma espécie de homem sociedade. Ele é capaz de substituir qualquer instituição ou organização nos seus papéis e pronunciamentos. Por isso não se estranha muito que, em período de discussão do OE, venha avivar o espectro do diabo encarnado em crise política. Tem algum sentido o PR falar da crise em abstrato e, a partir daí, especular sobre custos políticos para o país e para os portugueses? Marcelo possui um versátil jogo de anca que o apresenta como limador de arestas, mesmo quando as está a vincar.
Em vez de se entreter com especulações abstratas, Marcelo podia fazer um exercício de identificação da substância do OE ajudando os portugueses, em grande medida distantes da perceção das implicações do OE no dia a dia das suas vidas, a situarem-se melhor nas reivindicações sociais e económicas de que não podem abdicar: o combate estrutural à pobreza - assim até evitava passar o ano a promover a caridadezinha; a exigência aos poderes privados para que assumam a dimensão social da crise na mesma medida que assumem a económica; a melhoria do perfil da economia; a valorização do trabalho e a dignificação de quem trabalha, ou já trabalhou uma vida. Alguns destes temas estão no todo ou em parte fora do Orçamento, mas é imperiosa a sua discussão agora.
A teia que a pandemia teceu, e ainda nos aprisiona, está a provocar arrastamento nas decisões e na ação dos setores público e privado, embora também se observem vontades de rompimento e de avanço em novos caminhos. O Governo e o Partido Socialista deviam estar na linha da frente da criação de novas dinâmicas, mas deixam-se ir nesse arrastamento e há governantes viciados em empurrar os problemas com a barriga. É urgente um golpe de asa que traga o debate político para a substância concreta daquilo que possa propiciar melhorias nas vidas das pessoas e lhes dê confiança no futuro. E faz muita falta uma ação governativa bem mais capaz e ofensiva.
O OE não é o espaço de todos os compromissos, mas é um momento de obrigatória discussão estratégica das políticas a adotar. Além disso não basta inscrever nele boas vontades. Os procedimentos para dar efetividade aos compromissos devem ficar claros.
*Investigador e professor universitário
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