Minha mãe trauteava uma velha
canção enquanto limpava o chão, cozinhava, lavava a roupa na selha que era um
barril de vinho do Puto cortado ao meio, ou íamos à capopa buscar água. E
quando se calava, eu pedia-lhe mais e mais. Ela, pacientemente, repetia aqueles
versos que me encantavam. É assim: “No teu bercinho de terra/ um sino te vai
embalar/enquanto de manhãzinha/a chuva te limpa a carinha”. Mamã, por que o menino tem um
bercinho de terra? Porque quando morremos a terra nossa mãe passa a ser nosso
berço. Mamã, por que a chuva limpa a carinha do menino? Porque a criança ainda
não foi enterrada, está estendida à chuva. De todas as coisas tristes, a mais
triste é esta: Ninguém enterrar um morto.
Um dia fui ao Cunene em serviço
de reportagem. A seca começava nas ruas do Lubango e acabava em Namacunde. Os
pastores corriam o nundo à procura de água e pastos. Nem uma coisa nem outra
encontravam nos caminhos armadilhados de espinheiras. As mulolas à beira da
estrada estavam ressequidas. O capim sequioso. As mulheres punham os olhos
chorosos no horizonte e nada acontecia. O tempo decorria lentamente, como quem
quer recusar a última hora, a última notícia, o último suspiro. Naquele ano até
a fazenda “Gata e Borges” estava seca e o gado definhava à fome e à sede.
O grande rio corria
abundantemente. Lembrei-me do coronel Artur de Paiva, que um dia escreveu uma
monografia na qual defendia que era um crime deixar a água do rio Cunene correr
para o mar, deixando nas suas costas a seca, a fome, a miséria, o desespero.
Mais tarde caiu-me nas mãos um
livro técnico intitulado “Carta de Aptidão para Regadio da Zona de Capelongo -
Alto Cunene”. Comecei logo a imaginar açudes, desvios do caudal do rio para as
planícies infinitas entre a Cahama e Xangongo. Os pastores felizes, as mulheres
embalando as crianças nos acampamentos precários de quem tem alma nómada.
Lá em baixo esperava-me um dos
choques mais brutais da minha vida. Em todas as aldeias existiam seres humanos
esqueléticos, olhos encovados, cabelos hirsutos. Era o retrato da fome na sua
versão mais trágica. O que escrever? Nenhum censor deixaria publicar uma só
fotografia daqueles seres humanos. Nem um parágrafo do texto ficaria intacto.
Estávamos ali para vermos como a fome faz de nós seres tão irrelevantes que só
as moscas nos dão importância, poisando em nós. O pior estava para chegar.
Na Môngua resolvi ir à aldeia
Oshana Sha Ukwangula visitar as cacimbas eternas, onde a água brota límpida
como as lágrimas de mães dolorosas. Pelo caminho encontrei um pai aflito, com
um menino ao colo, inerte. Parámos e o homem pediu boleia até às cacimbas,
porque a criança estava a morrer com sede. O homem acomodou-se no banco de trás
e eu olhei para a criança. O rosto era de fome. Os lábios gretados, muito
fechados, como querendo agarrar toda a comida do mundo. Toda a água das
cacimbas.
Chegámos às cacimbas e também ali
a água escasseava. Conseguimos encher uma lata daquelas do óleo Mobil. O pai
foi vertendo água nos lábios da criança. Nenhuma reacção. O homem começou a
soluçar, enquanto espargia água sobre o rosto e os cabelos do menino. A
quietude da morte tem sempre os mesmos sinais. Dei por mim trauteando a velha
canção da minha mãe: “No teu bercinho de terra/ um sino te vai embalar/enquanto
de manhãzinha/a chuva te limpa a carinha”.
Na época escrevi a crónica de uma
reportagem falhada, mas foi para o lixo. Mesmo que fosse publicada, tinha o
mesmo destino. Os jornais diários, no dia seguinte, só servem para as
zungueiras embrulharem as suas mercadorias a retalho.
Muito mais tarde voltei ao
Cunene. Inundações! A água espraiava-se a perder de vista. Jovens mães, com os
filhos às costas, lançavam às lagoas formadas pelos aguaceiros tropicais,
mosquiteiros impregnados de insecticida a fazerem de redes de pesca. Em cada
lance, vinha peixinho miúdo que depois de seco, garantia pitéu para a família.
Grande alarido, gargalhadas, alegria. A quem nada tem é proibido não amar
migalhas. Aqueles peixes fizeram a fortuna de muitas mães.
O Presidente João Lourenço mudou
a Presidência da República para a província do Cunene, onde vai trabalhar,
alguns dias, na qualidade de titular do Poder Executivo. Mui grato ficaria a
sua excelência se na agenda de trabalhos incluísse a aprovação de um projecto
que, de uma vez por todas, permita o aproveitamento integral da água do Baixo
Cunene como já se faz em alguns pontos no curso do rio mais próximo da mãe dos
rios Cunene e Cuanza, que nascem a poucos metros de distância um do outro, lá
na Babaera. Se é possível regadio no Alto Cunene, também deve ser em todo o seu
curso até à foz.
Que nunca mais uma criança do
Cunene morra à sede, sem chuva nem água de cacimba que, de manhãzinha, lhe lave
a carinha. Peço deferimento, respeitosamente.
* Jornalista
Imagem do Jornal de Angola – 9 de
Julho de 2021.