sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

EUROPA, BRINCANDO COM O FOGO NA UCRÂNIA

# Publicado em português do Brasil

Sergio Rodríguez Gelfenstein* | Carta Maior

Quando me preparava para escrever meu artigo semanal, que decidi dedicar à análise da situação na Ucrânia, recebi um e-mail de meu querido amigo Juan Pablo Cárdenas, jornalista chileno de longa carreira profissional, cujas opiniões são sempre altamente consideradas por mim, a fim de melhorar o trabalho.

Juan Pablo me lembrou um artigo que escrevi e que foi publicado em 2 de setembro de 2014, chamado “Europa, brincando com fogo na Ucrânia”, que foi publicado pelo portal da Rádio Universidade do Chile, e posteriormente editado em um livro intitulado “Mundo de locos donde he nacido - Un sistema internacional en permanente transformación”. Na mensagem, Juan Pablo resgatou o caráter “profético e preciso” da referida análise. Perguntei-lhe se achava que eu deveria publicá-lo novamente, e sua resposta foi contundente: “eu ficaria muito feliz com isso”.

Com o maior respeito ao leitor, sete anos e meio depois, entrego novamente estas linhas. Incrivelmente – e como Juan Pablo percebeu –, a análise é totalmente válida. Bastaria mudar alguns nomes e fatos que eram recentes na época. Mas ele o deixou inalterado, para que o leitor possa avaliar os acontecimentos atuais e perceber que eles respondem a uma política calculada e continuada dos Estados Unidos, que teve governos democrata e republicano no período.

Não sei se alguém notou, mas, na minha opinião, o conflito na Ucrânia é o mais perigoso que ocorreu no planeta desde o fim da Guerra Fria. É verdade que, naquele período, ocorreram várias invasões de países africanos, golpes de Estado na América Latina, uma profunda crise econômica e financeira, a sangrenta desintegração da Iugoslávia, genocídio em meio a um cerco permanente de Israel contra o povo palestino, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ameaçando constantemente com ataques ao Irã, as guerras de intervenção pós-imperial no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria… Mas, em nenhum deles, o confronto direto entre duas ou mais potências nucleares foi ou está tão próximo. Isso tem uma explicação no contexto local, regional e global. Vamos do particular ao geral.

Não é segredo para ninguém que houve um golpe de Estado na Ucrânia, que teve sua origem, precisamente, na necessidade da OTAN de criar uma situação de conflito como a que existe hoje. O governo do presidente deposto, Víktor Yanukóvytch, foi um obstáculo para isso. Nesse sentido, o atual governo ucraniano nada mais é do que uma criação dos Estados Unidos e da Europa.

Tal como na Síria e no Iraque, onde até há dois meses o Estado Islâmico era constituído por grupos sírios outrora chamados de “combatentes da liberdade” – hoje classificados como terroristas –, no caso da Ucrânia, não se deve esquecer que as revoltas que levaram ao golpe foram apoiadas pelo Ocidente e realizadas por organizações de inspiração nazista, cujas primeiras ações foram ataques às sinagogas. Até o rabino-chefe da Ucrânia, Moshe Reuven Azman, recomendou à sua comunidade, em fevereiro deste ano, que deixasse o país, afirmando que não queria abusar da sorte, porque “há ameaças constantes de ataque às instituições judaicas”. É claro que os governos de Israel e dos Estados Unidos permaneceram embaraçosamente silenciosos.

Assim, criaram-se as condições para impor, em meio a uma brutal campanha psicológica, as eleições que levaram o atual governo ao poder, com um discurso – apoiado pelo dos porta-vozes da OTAN – que é tão agressivo que lembra com saudade os tempos da Guerra Fria.

O atual presidente ucraniano, Petro Poroshenko, disse que a Ucrânia está “muito perto do ponto sem retorno”. Segundo ele, “o ponto sem retorno é uma guerra em grande escala”. Colocando lenha na fogueira, o secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, famoso por suas declarações abruptas – segundo o jornalista alemão Michael Stürmer –, afirmou que a organização que dirige está disposta a fortalecer a cooperação com a Ucrânia.

No mesmo contexto, o ministro da Defesa da Ucrânia, Valery Geletey, indicou que seu país “está no limiar de uma ‘grande guerra’ com a Rússia, cujas perdas serão medidas em milhares, ou em dezenas de milhares” de vítimas. Chama a atenção o uso da expressão “grande guerra”, ou seja, aquela dada pelos povos da União Soviética, aos quais se comprometeram a expulsar o exército nazista de seu território ao custo de 20 milhões de cidadãos caídos.

Vale dizer que os argumentos apresentados para justificar essas afirmações inflamadas, tanto por parte dos governos ocidentais quanto do governo ucraniano, se baseiam em uma suposta participação direta das forças armadas russas no conflito. A verdade é que, até agora, ninguém foi capaz de apresentar provas válidas a este respeito. Diante da exigência do governo russo para que se explicitassem tais provas, as respostas foram vagas e superficiais.

A memória resgata situações semelhantes e recentes, como as supostas armas atômicas nunca encontradas no Iraque, os supostos assassinatos em massa realizados por Muammar al-Gaddafi na Líbia – que, mais tarde, se revelou uma produção hollywoodiana encenada no Qatar – e as dezenas de histórias falsas que marcaram a política externa agressiva dos Estados Unidos, com sua costumeira tendência dos seus presidentes de deturpar a realidade.

No fundo há dois elementos a serem destacados. O primeiro é a incapacidade do exército regular ucraniano de derrotar as forças rebeldes no Leste. Em reunião realizada a portas fechadas no dia 31 de agosto, o alto comando da OTAN chegou à conclusão de que “militarmente, o conflito está perdido para Kiev”, conforme noticiado pela revista alemã Der Spiegel. Um dos participantes da reunião assegurou que o único caminho que resta ao presidente ucraniano é o das negociações “para poder tirar seus homens vivos das garras dos grupos de autodefesa” do Leste.

Em outro nível, as tentativas de escalar o conflito por parte do governo ucraniano se devem à urgência de resolver a terrível situação econômica do país, muito dificultada pela falta de gás, diante de um inverno muito rigoroso previsto para os próximos meses. Hoje, no auge do verão europeu, o governo foi forçado a cortar o abastecimento de água quente, para construir reservas de gás e se preparar para o mau tempo no início do próximo ano. A incapacidade do governo em negociar e resolver o problema de fornecimento de gás – que vem da Rússia – gerou uma enorme dívida que paralisou os envios do país vizinho. O primeiro-ministro ucraniano Arseni Yatseniuk pediu demissão, não sem antes afirmar que sem o gás russo não será possível enfrentar o inverno.

A resposta a ambas as situações foi aprofundar o conflito e envolver a Europa, na tentativa de encontrar uma tábua de salvação que lhe permita permanecer no poder e se salvar da derrota. No entanto, para a Europa, onde a grande maioria dos países é governada pela direita, embarcar nesse transe como vagão traseiro da política dos Estados Unidos significa se colocar em uma situação que apresenta muitos aspectos negativos. As sanções contra a Rússia tiveram origem no apoio desse governo à decisão da Crimeia de passar a ser parte desse país. Porém, o argumento mudou e passou a se basear no apoio do governo do presidente Putin aos grupos de autodefesa no Sudeste da Ucrânia.

As contramedidas russas a essas sanções estão começando a ser sentidas na Europa, e também estão incluídas em um contexto sombrio. No segundo trimestre deste ano, a economia alemã encolheu pela primeira vez desde 2012. A chamada “locomotiva europeia” desacelerou 0,2% do PIB, enquanto a economia da França está estagnada. Os dois representam quase metade da produção da Zona Euro. A Itália, terceira maior economia da região, está em recessão.

Nesse contexto, especialistas alertam que se as sanções contra a Rússia forem mantidas – ou pior, se forem aumentadas, como o presidente ucraniano pediu –, haverá profundos efeitos aos negócios e investimentos que podem ser fatais, bem como uma perda de confiança de que a situação possa melhorar, com todas as repercussões que isso tem.

A Europa deve medir cuidadosamente as consequências de suas ações. A economia dos Estados Unidos é muito mais impermeável às contramedidas russas, especialmente no campo da energia. Da mesma forma, nessas condições, o fortalecimento do dólar em relação ao euro é inevitável. Assim, os Estados Unidos terão usado um conflito extracontinental para fortalecer sua moeda às custas de quem é considerado seu aliado.

No cenário global, deve-se considerar que a Rússia voltou por seus próprios direitos a assumir seu status de potência mundial, depois de ter sido humilhada e ridicularizada nos tempos de Gorbachev e Yeltsin, reverenciada pelo Ocidente e desprezada por seu povo, de acordo com as pesquisas. Em tal circunstância, não é possível aplicar medidas contundentes contra o país. A violação dos acordos feitos com o próprio Yeltsin, de não estender as “fronteiras da OTAN” para o Leste, em troca da introdução de reformas de mercado no final do Século XX, foi violada pela própria aliança militar. Recentemente, a OTAN anunciou que vai instalar cinco novas bases militares na Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia e Romênia, todos eles territórios próximos à Rússia. Até a Finlândia e a Suécia, países bálticos que não são membros da aliança atlântica, anunciaram que se curvariam às medidas militares anti russas da coalizão.

Nesse sentido, a revista alemã Die Welt afirma que “a ajuda militar a Kiev pode levar a uma guerra global”, e adverte que “tais ações são inadmissíveis na era das armas nucleares”. Apesar do fato de o governo russo ter declarado repetidamente que não realiza e não realizará nenhuma ação militar na Ucrânia, o Ocidente, em um esforço inútil, tenta provar o contrário. O próprio presidente Putin destacou que o conflito ucraniano deve servir “para acabar com essa tragédia o mais rápido possível, pacificamente e por meio de negociações”.

A Rússia não é o Afeganistão, não é o Iraque, a Líbia ou a Síria. A Europa deve pensar nisso, fazer suas contas e lembrar que as duas guerras mundiais do Século XX foram travadas em seu território, que a recuperação, em ambos os casso, tardou anos, e que, também em ambos os casos, o único país vitorioso foram os Estados Unidos, que não arriscou seu território, nem sua população, nem sua economia. E não acredito que, em meio à crise atual, haja condições para um novo Plano Marshall.

*Publicado originalmente em 'Resumen Latinoamericano' | Tradução de Victor Farinelli

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