quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O SUSTO DOS RESSUSCITADOS -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Se eu fosse deus não deixava morrer ninguém e ressuscitava todos os mortos. Depois logo se via, cada qual que se desenrascasse. Não contem comigo para a morte. Um deus sério tem que pensar em tudo e reconheço que sem morte, ficávamos sem espaço na Terra. E a ressurreição dos mortos também podia ter muitíssimos danos colaterais. As coisas ficavam tão complicadas que já estou arrependido de escrever se eu fosse deus.

Estamos todos vivos, mesmo os nossos mortos. Entro na sala da casa onde Agostinho Neto vivia, no Bairro de Saneamento, e ele está a ler um texto de opinião, hoje publicado no Jornal de Angola e assinado por Faustino Henrique. Cheguei no momento em que o Fundador da Nação lia esta parte, sobre a Doutrina Truman, presidente dos EUA, em 1947: “O mundo conhecia a divisão entre os que se aliavam ao Ocidente, livre, democrático e capitalista, e os que se encostavam ao Leste, sob regimes socialistas e totalitários”. 

As mensagens subliminares são terríveis. Vou descodificar. Para Faustino Henrique, os do Ocidente eram aliados, livres, democráticos e capitalistas. Os outros eram encostados, socialistas e totalitários. Como Angola não se juntou aos “aliados” nasceu como país “encostado”, socialista e totalitário. Agostinho Neto lia este insulto à nossa História, aos nossos Heróis e à nossa inteligência e dizia-me que não queria ser ressuscitado.

Faustino Henrique, na página de Opinião do Jornal de Angola, explicou-nos que o presidente do estado terrorista mais perigoso do mundo, Harry Truman, proferiu um discurso histórico ante as duas câmaras do Congresso, nesse ano mágico de 1947. E cita um naco das suas declarações:

“No momento actual da História mundial, quase todas as nações devem escolher entre os modos de vida alternativos... Um modo de vida é baseado na vontade da maioria [e] nas garantias de liberdade individual. O outro, depende do terror e da opressão, de uma imprensa e rádio controlados, eleições fixas e a supressão das liberdades pessoais. Os Estados Unidos vão apoiar os povos livres que resistem à tentativa de subjugação”. Nesta altura já todos os combatentes do MPLA que fizeram a luta armada de libertação nacional me exigiram que, como deus desde as chanas às alturas, os despachasse desta para pior.

A citação desta parte do discurso de Truman é mais uma mensagem subliminar de Faustino Henrique. Vou descodificar: A República Popular de Angola nasceu do lado do terror e da opressão. A UNITA tem razão, os Media públicos estão controlados pelo Executivo, vivemos numa sociedade em que as liberdades pessoais foram suprimidas.  

A mensagem mais ousada do jornalista é esta: “senadores e líderes de países aliados (os encostados nem países são, digo eu!) entendem que  os Estados Unidos não devem abdicar do compromisso que sucessivas administrações, em mais de 70 anos, sempre assumiram abertamente, a defesa da liberdade e democracia no mundo”.

O homem é especialista em mensagens subliminares. Vou descodificar. O governo dos EUA fez muito bem financiar, armar e municiar as forças que em 1974 ocuparam o Norte de Angola e fizeram tudo para afastar o MPLA do processo de descolonização. O presidente Nixon foi um herói quando encomendou a António de Spínola, presidente português, que dividisse Angola em dois estados, um governado pela FNLA e o outro pela UNITA. Reagan fez muito bem dar mísseis a Savimbi. Armar e apoiar politicamente o regime racista de Pretória, foi um favor à Humanidade. Agora é a vez da UNITA.

Por fim, a vénia ao patrão. Escreve Faustino Henrique: “O Presidente Biden, um bom conhecedor da realidade mundial dos últimos 30 anos, atendendo ao background que possui, quer como senador durante décadas e décadas, quer como Vice-Presidente de Barack Obama, durante dois mandatos consecutivos, pretende passar à História  como os seus predecessores, que fizeram da defesa da liberdade no mundo um dever existencial dos Estados Unidos”. Esta mensagem é à bruta e apenas serve para garantir um punhado de dólares.

Defesa da liberdade no mundo é um dever existencial dos Estados Unidos. Em Angola foi assim, como todos sabemos. Washington gastou biliões de dólares para destruir o país e matar milhares de angolanos. Milhões de deslocados e refugiados. Triliões de prejuízos.

Mas vamos a 1947, quando nasceu a “Doutrina Truman”. Portugal tinha uma ditadura assassina. Em 23 de Abril de 1936 o regime fascista abriu o Campo de Concentração do Tarrafal. Até 1954, em plena doutrina libertadora dos EUA, passaram pelo Campo da Morte Lenta 340 presos políticos. E centenas de Angolanos: António Jacinto, António Cardoso, Luandino Vieira, Hermínio Escórcio, Jonatão Tchingungi, Armindo Fortes, Gilberto Saraiva de Carvalho, Aldemiro Vaz da Conceição e outros que neste momento não recordo.

A Doutrina Truman protegeu, estimulou, dispensou apoio político e financeiro aos ditadores Franco e Salazar. Assassinos e torturadores. Washington apoiou aberta ou disfarçadamente a guerra sangrenta que Portugal impôs a angolanos, guineenses, moçambicanos. Milhares de mortos. Milhões de exilados, deslocados e refugiados. Segundo Faustino Henrique, “a defesa da liberdade no mundo é um dever existencial dos Estados Unidos da América”.

No Brasil, a defesa da liberdade como dever existencial do estado terrorista mais perigoso do mundo, viu-se no apoio político e financeiro ao golpe militar de 1964. Milhares de mortos, milhares de prisioneiros submetidos a maus tratos desumanos e a violentíssimas torturas. Perguntem à Presidenta Dilma Rousseff como foi.

Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Guatemala, República Dominicajá eram ditaduras violentíssimas em 1964 e Washington apoiava todas, financeira e militarmente. Algumas foram mesmo instaladas pelas tropas dos EUA, no meio de banhos de sangue. Foi o início do Terrorismo de Estado não só na América Latina mas em todo o “mundo dos que se aliavam ao Ocidente, livre, democrático e capitalista”.

Na década de 1960, Bolívia, Peru e Argentina caíram nas mãos de violentos ditadores militares. Na Argentina desapareceram milhares de pessoas, sem deixar rasto. Na década de 1970, foi a vez do Chile e Uruguai. Tortura e execuções sumárias foram s práticas visíveis da Doutrina Truman. Pinochet, no Chile, foi o melhor seguidor do Estado Terrorista. Milhares de cidadãos foram fechados no Estádio Nacional de Santiago e dali ninguém saiu vivo. Agentes da CIA ensinavam técnicas de tortura aos torcionários e marcavam os que deviam ser mortos.

Nas décadas de 1970 e 1980, as ditaduras militares da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Bolívia e Uruguai, às ordens dos Estados Unidos, montaram a Operação Condor para eliminarem opositores às ditaduras. O Terrorismo de Estado atingiu o máximo. Milhões de mortos por conta da doutrina Truman. Novas ditaduras militares ou civis e militares surgiram: República Dominicana, Haiti, Panamá, Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala.

Ler no Jornal de Angola que “a defesa da liberdade no mundo é um dever existencial dos Estados Unidos da América” é bem mais extraordinário do que ver uma bicicleta andar de porco. Foi na defesa da liberdade que o estado terrorista mais perigoso do mundo apoiou a UNITA e o regime racista da África do Sul, contra Angola encostada aos “regimes socialistas e totalitários” como simpaticamente escreve Faustino Henrique.  

Só lhe falta escrever: A UNITA merece governar porque fez a guerra contra os russos e cubanos. Escreve, homem! Ainda ganhas mais um pratito de lentilhas.

Estou de férias. Deixem-me descansar.

* Jornalista

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