Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião, em 23 Fevereiro 2022
Uma das promessas não cumpridas pela globalização foi a paz. Se pensarmos no Iraque, na Síria, na Líbia, no Afeganistão, na Al-Qaeda, no Estado islâmico, na Jugoslávia, na Chechénia, na Somália, em vários outros conflitos em África, mais alguns noutras paragens da Ásia, percebemos que o fim da Guerra Fria e a consequente disseminação do neoliberalismo económico não garantiu a paz no mundo, nada disso.
A argumentação, já teorizada há 40 anos, foi milhares de vezes replicada pela propaganda ideológica dominante desde o início deste século: dizia que com a interdependência económica entre as grandes nações, acelerada pela revolução tecnológica, as razões para sustentar guerras, fossem regionais, fossem planetárias, cairiam pela base face às consequências económicas desastrosas para todos os envolvidos.
As grandes empresas tecnológicas, transnacionais sem pátria, estariam sempre contra a guerra porque perderiam fortunas.
Os mercados financeiros, a grande banca com capitais em todo o lado, estariam sempre contra a guerra porque perderiam fortunas.
As grandes indústrias, que vendem produtos com componentes fabricados em vários pontos do planeta, estariam sempre contra a guerra porque perderiam fortunas.
A expansão do capitalismo, a quebra de barreiras alfandegárias, a internacionalização dos fluxos de capitais, a padronização ideológica, a uniformização cultural, tudo isso era um caminho para a paz... pelo menos as grandes potências não podiam guerrear-se entre si, pois os senhores do dinheiro não o permitiriam, jurava-se.
Um dia os Estados Unidos da América perceberam que com a globalização a China ia ser, rapidamente, mais forte economicamente do que eles.
O primeiro tiro na globalização foi dado aí: os governos norte-americanos começaram a impor limitações aos negócios com os chineses, a impedir a entrada de capitais de Pequim em empresas norte-americanas, a exigir à União Europeia e a outros países a mesma atitude, prenderam até gestores chineses em solo norte-americano. Hong-Kong e Taiwan voltaram a ser problemas políticos.
A China percebeu que o seu plano de expansão económica no mundo tinha de mudar.
A União Europeia ficou entalada entre as divisões internas, a dependência económica dos países que voltaram, de repente, a ser "inimigos do ocidente" e a pressão de Washington.
A Grã-Bretanha tentou aproveitar a indecisão europeia e faz de cão-de-fila dos Estados Unidos.
A Rússia, acossada pela expansão da NATO para leste, viu que podia tentar utilizar em seu benefício a desorientação geral e a estupidez de Joe Biden em não se comprometer com a recusa da entrada da Ucrânia na Aliança Atlântica.
E assim chegamos ao que pode ser uma guerra de grandes dimensões que, a acontecer, custará em poucos meses muitos milhares de vidas e pode escalar, rapidamente, para uma dimensão mundial.
Vladimir Putin e Xi Jinping estiveram juntos no passado dia 5 de fevereiro para institucionalizar uma "parceria estratégica abrangente" entre os dois países. É uma parceria que o presidente russo, num artigo publicado na agência de noticias chinesa Xinhua, diz incluir o fortalecimento de laços comerciais, o uso mais frequente das moedas nacionais nas transações entre os dois países (em prejuízo do dólar, presume-se), a construção de centrais nucleares, o fornecimento de gás, a concretização de grandes investimentos chineses em muitas regiões da Rússia, o reforço da influência dos dois países junto dos BRICS, o "namoro" à Índia (hoje em dia pro-americana) e a outras potências asiáticas. Até no desporto parecem estar a desenhar um caminho comum. Parece a divisão do mercado mundial em dois.
Rússia e China, nos últimos 10 anos, construíram redes e serviços informáticos alternativos ao ocidente: por exemplo, cada um tem a sua versão de Facebook, de WhatsApp ou de Google, popularíssimas nos seus países, e já li notícias que garantiam estarem ambos os países a estudar a forma de se isolarem informaticamente do ocidente.
Este conflito em torno da Ucrânia pode, por isso, ser de facto o ponto de partida para uma nova ordem mundial, com, novamente, duas partes do planeta de costas voltadas.
Se nos próximos dias a China vier apoiar claramente a Rússia, a reação pavloviana ocidental será de retaliação. A crise agravar-se-á e a globalização entrará em coma.
*Jornalista
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