A Alemanha está perante um dilema na atual crise da Ucrânia, pois compra metade do seu gás natural à Rússia. E o caminho para essa dependência foi definido há muito tempo.
Já em 2014, estudiosos alemães alertavam: "A Alemanha e a Europa dependem em grande parte da importação de energia da Rússia. Isso aplica-se sobretudo ao gás natural, ao petróleo e ao carvão mineral. Tendo em vista a deterioração das relações com a Rússia, crescem os alertas de que o Governo russo poderia usar possíveis interrupções no fornecimento como uma arma política de grande escala".
A citação consta do estudo de Matthias Basedau e Kim Schultze intitulado "Dependência das importações de energia: Risco para a Alemanha e para a Europa?". O artigo partiu de uma pesquisa do Instituto Alemão de Estudos Globais e de Área (GIGA) e do Instituto Leibniz de Estudos Globais e Regionais, em Hamburgo.
De lá para cá, nada mudou na análise geopolítica. Quanto muito, o Presidente russo, Vladimir Putin, fomentou ainda mais essa relação de dependência nas suas políticas externa e energética.
Dependência consciente
Além disso, o chefe de Estado russo modernizou as Forças Armadas do seu país e aumentou consideravelmente a pressão sobre os países vizinhos e alguns membros da União Europeia (UE) com movimentos militares ameaçadores.
O mais recente foi esta segunda-feira (21.02). Putin ordenou ao seu Ministério da Defesa o envio de tropas russas de manutenção da paz para Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, depois de anunciar o reconhecimento da independência das duas regiões separatistas pró-Rússia.
Em resposta, Berlim anunciou a suspensão da certificação do gasoduto Nord Stream 2, que levará gás natural russo diretamente da Rússia para a Alemanha.
Mas o facto é que a dependência
alemã de importações de energia da Rússia aumentou significativamente nos
últimos dez anos. Desde
Sem medo do Inverno
Metade das residências na Alemanha é aquecida com gás e o período no qual o aquecimento é necessário pode durar até março, dependendo do clima. No entanto, os especialistas estão convencidos de que as pessoas não precisam preocupar-se com a possibilidade de as suas casas ficarem frias se o conflito na Ucrânia escalar ainda mais.
"Se dependesse apenas do fornecimento global, poderíamos substituir o gás natural russo amanhã. A pergunta é: quanto queremos pagar por isso?", afirmou Andreas Goldthau, especialista em energia do Conselho Alemão de Relações Exteriores (DGAP) ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung (FAS), no final de janeiro.
Em caso de uma paralisação do fornecimento, a Europa teria três opções: Comprar mais gás natural de outros países fornecedores via gasodutos, importar mais gás natural liquefeito (GNL) por navios-tanque ou utilizar gás armazenado.
Ofensiva na importação de GNL
Entretanto, a UE conseguiu aumentar as importações de GNL e a situação abrandou consideravelmente, de acordo com a Comissão Europeia. A organização assegurou que está agora - na última semana de fevereiro - bem preparada para o caso de a Rússia cortar o fornecimento de gás.
Numerosos navios que transportam gás natural liquefeito (GNL) foram desviados para a Europa, segundo uma porta-voz da Comissão. Só em janeiro, 120 navios trouxeram um total de 10 mil milhões de metros cúbicos de GNL para o continente. O fornecimento de energia estaria assim assegurado. Há poucas semanas, o fornecimento de GNL era bastante mais incerto.
Segundo o centro de pesquisa Breugel, com sede em Bruxelas, as importações de GNL para a UE mais do que duplicaram só nas primeiras semanas deste ano, em comparação com 2021. Os peritos da Breugel assumem mesmo que os Estados-membros da UE poderiam conseguir passar completamente sem gás russo, mesmo com tempo mais frio em março.
No entanto, esta seria apenas uma ajuda limitada à indústria, o maior consumidor de gás natural na Alemanha, com cerca de 35% do consumo total e que já há meses se debate com os preços elevados do gás. E para setores que fazem muito uso de energia, como as indústrias de alumínio, fertilizantes ou cerâmica, a produção deixa de ser rentável quando o preço do gás natural atinge um determinado nível.
Stocks em mínimos recorde
Usar as instalações de armazenamento de gás não seria tão simples, porque os níveis de abastecimento dessas instalações, localizadas principalmente no norte da Alemanha, atingiram mínimos recorde.
Sebastian Bleschke, da Iniciativa Armazenamento de Energia e.V. (INES), a associação industrial de operadores de instalações alemãs de armazenamento de gás e hidrogénio, confirmou isso mesmo à DW.
"A Alemanha tem a quarta maior capacidade de armazenamento de gás natural do mundo, o que certamente é uma das razões pelas quais muita gente, especialmente no mercado interno da UE, está a olhar para as instalações de armazenamento alemãs. Mas elas estão pouco abaixo dos 42% da capacidade. Os níveis de abastecimento nunca estiveram tão baixos como agora", descreveu.
Um detalhe: 10% das instalações alemãs de armazenamento de gás são operadas por subsidiárias do grupo Gazprom, vinculado ao Kremlin. Bleschke afirma que o nível de abastecimento dessas instalações é de 17%, em contraste com 50% nas restantes.
Noruega e Holanda: Produção no limite
Países produtores europeus, como a Noruega, Holanda ou Reino Unido, não conseguem substituir o gás da Rússia. O Governo da Noruega afirma que já está a produzir o máximo que pode e a Holanda também não consegue aumentar o seu fornecimento.
O Reino Unido, por sua vez, já está a sofrer com a escassez de gás natural e os custos recorde que levaram à falência de diversos pequenos fornecedores de gás.
GNL (ainda) não é concorrente para os gasodutos
Nas últimas semanas, cada vez mais navios-tanque com gás natural liquefeito partiram dos Estados Unidos para a Europa. Mas, ao contrário de países vizinhos como a Holanda, a Alemanha não possui um único terminal de GNL em seu litoral.
Em vez disso, possui o gasoduto Nord Stream 2, que já está cheio de gás russo, mas a aprovação da sua licença de operação parece cada vez mais distante.
Esta terça-feira, o chanceler Olaf Scholz avisou que a suspensão do processo de aprovação do gasoduto será "até novo aviso". Mas algo que ficou claro nos últimos meses - e que demonstra a dependência energética da Rússia - é que, quando a Alemanha fala sobre o Nord Stream 2, parece que pisa ovos.
Por vezes, o projeto era colocado em cima da mesa pela ministra alemã dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, como possível sanção. Outra vezes era relativizado pelo chanceler Olaf Scholz como um projeto puramente privado.
Ainda assim, Scholz mudou recentemente de tom e trouxe à tona a possibilidade de fechar definitivamente o gasoduto no caso de uma invasão da Ucrânia pela Rússia.
Nord Stream 2: Investimentos perdidos?
Mas representantes da indústria não acreditam que a Rússia deixará de fornecer gás ao Ocidente por completo.
Klaus-Dieter Maubach, presidente
da elétrica Uniper, afirma que, mesmo durante a Guerra Fria e após a anexação
da Crimeia, em
De acordo com a empresa de dados ICIS, a Rússia forneceu apenas 32% do gás natural consumido na Alemanha em dezembro passado. A Noruega contribuiu com 20%, a Holanda com 12%. Apenas 5% da procura de gás natural da Alemanha foi coberta pela produção interna. Cerca de 22% vieram de instalações de armazenamento e o resto de outras fontes.
Mesmo que a importação de gás russo fique significativamente abaixo dos 50%, Maubach afirma: "A Rússia não pode ser substituída como fornecedor nos próximos anos". Além disso, a transição energética prevê o fecho das três centrais nucleares alemãs ainda ativas e a eliminação progressiva da geração de energia a carvão. Para suprir as lacunas criadas por isso, o gás natural continuará a ser a fonte central de energia fóssil para a Alemanha.
Mais compras de gás à vista
Há décadas, fornecedores e importadores europeus têm contratos de fornecimento de gás russo com prazos de até 30 anos. Uma das razões para o aumento extremo no preço do gás natural é que muitos fornecedores compraram gás a curto prazo no chamado mercado "spot". Os preços dispararam no ano passado e agora os fornecedores foram apanhados em contramão.
De qualquer forma, os especialistas em energia concordam que, até que se pudesse compensar totalmente possíveis quebras de abastecimento pela Rússia com entregas de GNL por navios-tanque, mais caras, a época de uso do gás para aquecimento provavelmente já teria terminado.
No entanto, o tempo está a favor da Alemanha e da UE, que ao todo recebe cerca de 40% de suas necessidades de gás da Rússia, afirma Sebastian Blaschke. "À medida que o Inverno avança, é provável que vejamos um abrandamento das temperaturas, afinal de contas o clima está atualmente bastante mais ameno. Mas permanece uma certa incerteza", pontua.
Para já, o gás natural permanecerá caro, pelo menos enquanto continuar a agravar o clima de tensão entre a Rússia e a Ucrânia. No continente, prevalece, no entanto, a esperança de que este ano a UE esteja melhor preparada para o próximo Inverno, com stocks mais elevados nas instalações de armazenamento de gás natural.
Thomas Kohlmann | Deutsche Welle
Sem comentários:
Enviar um comentário