segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Angola | OSSOS DE ASSASSINOS PROMOVIDOS A HERÓIS -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

As eleições de 1992 registaram uma afluência às urnas absolutamente invulgar , mais de 90 por cento dos eleitores inscritos. O MPLA venceu com maioria absoluta. A UNITA recusou os resultados eleitorais e regressou a guerra, pondo em marcha um plano previamente desenhado pelos serviços secretos sul-africanos e a direcção do partido. Esta era a fórmula: Se ganharmos tudo bem. Se perdermos, alegamos que houve fraude e tomamos o poder pela força das armas. Para isso, a inteligência militar de Pretória escondeu 20.000 homens e as melhores armas em bases secretas no Cuando Cubango.

Jonas Savimbi até quis saltar por cima das eleições e tomar logo o poder pela força. Washington recusou alinhar no golpe e exigiu que a UNITA cumprisse o Acordo de Bicesse. Um contratempo que se verificou insuperável. Porque a UNITA partiu mesmo para o golpe militar e não só perdeu nas frentes de combate, mas também o apoio dos EUA que faziam parte da Troika de Observadores, uma equipa de arbitragem que assumiu a responsabilidade de exigir que os assinantes do Acordo de Bicesse cumprissem o acordado. Os outros dois árbitros eram Portugal e a Federação Russa.

 Eu estava nas instalações da Rádio Nacional de Angola no sábado em que as tropas da UNITA desencadearam o golpe de estado. As ruas de Luanda foram transformadas em campos de batalha e cemitérios. Guerra terrível. Tudo começou com um “incidente” na zona do aeroporto, às primeiras horas da manhã. Uma unidade de “comandos” do general Ben Ben tentou tomar de assalto a zona das cargas e a partir daí alastrar a todas as instalações, inclusive a aerogare. Foram rechaçados. À mesma hora, um grupo de jovens que saiu de uma festa de “sexta à noite” foi massacrado pelos militares da UNITA. Todos assassinados no Kassenda. Mataram por matar, para curarem a frustração.

Até às 13 horas daquele sábado a tensão na cidade aumentava. Quando acabou a reunião da Comissão Conjunta Política e Militar (CCPP) Salupeto Pena deu ordens para o assalto final aos alvos definidos: Bairro Alvalade e matar toda a gente, tomar de assalto a Rádio Nacional de Angola e a TPA, atacar e tomar a sede do MPLA, ocupar a zona dos Ministérios. Assaltar de novo o aeroporto e cercar o Bairro Miramar. As tropas saíram da Maianga, de Viana e da delegação do Bairro São Paulo.

Na Rádio Nacional, gabinete do director-geral Agostinho Vieira Lopes, estavam além dele, o ministro da Comunicação Social, Rui de Carvalho, em contacto permanente com o vice-ministro Aldemiro Vaz da Conceição, José Guerreiro, director comercial da TPA, o jornalista Arlindo Macedo e eu. Na primeira investida contra a emissora, a unidade da Polícia de Intervenção Rápida travou os assaltantes que se puseram em debandada. Alguns foram presos. Um deles tinha um rádio da rede da UNITA que foi capturado e ficou nas mãos de José Guerreiro. Salupeto Pena, aos gritos, ordenava às suas tropas para matarem todos os mulatos e brancos que encontrassem. 

O mesmo Salupeto Pena deu uma ordem terrível: Ataquem a Embaixada dos EUA e matem todos os que estiverem lá dentro! Rui de Carvalho, pela rede de rádio do Governo avisou as autoridades e pediu que aquela legação diplomática e todas as embaixadas da zona do Miramar fossem protegidas. O tiroteio na cidade era cada vez mais nutrido.

Às 15 horas chegou à Rádio Nacional de Angola um oficial da Polícia de Intervenção Rápida com mais dois agentes e o jornalista Carlos Garcia. A viatura era blindada e tinha vidros à prova de bala. Andaram pelas zonas quentes da guerra e reportaram mortos civis espalhados pelas ruas de Luanda. Carlos Garcia informou que o general Zé Maria tinha organizado unidades de contra ataque, no antigo quartel da tropa portuguesa, Depósito de Adidos. Pedi ao oficial que me levasse lá. O trajecto era curto mas fomos alvejados várias vezes. O general Zé Maria fez-nos o ponto da situação. 

Uma das suas unidades foi enviada para São Paulo onde militares da UNITA, baseados na delegação do partido, varriam todo o casario com tiroteio nutrido. Os homens do general Zé Maria, todos jovens e com uma fita na cabeça para se distinguirem de eventuais infiltrados, neutralizaram os golpistas e tomaram as instalações. Carlos Garcia e eu saímos dali e continuámos pela cidade na viatura à prova de bala. Muitos mortos estendidos na rua.

No Hotel Mundial existiam sempre grupos de meninos que esperavam a distribuição dos restos de comida. Um grupo de golpistas atacou o hotel e matou as crianças. O horror à solta nas ruas de Luanda. O chefe dos assassinos era Salupeto Pena. Carlos Garcia e eu passámos pelo Hotel Trópico. Blindados defendiam a unidade hoteleira de manifestantes em fúria, que queriam matar dirigentes e familiares da UNITA ali alojados. Uma situação terrível. Regressámos à Rádio Nacional.

Pela rede de rádio da UNITA ouviu-se a voz de Salupeto Pena ordenando a morte de Johnny Pinock Eduardo, antigo dirigente da FNLA e membro do Governo, na sua casa do Bairro Azul. Rui de Carvalho pediu que uma força fosse proteger o governante. Grandes combates na rua. Mas os assassinos foram escorraçados. Também não conseguiram ocupar a Embaixada dos EUA nem embaixada nenhuma. Foram rechaçados pelas forças que protegiam a sede do MPLA. Não tomaram nenhum objectivo.

Salupeto Pena deu ordens de retirada. O general Ben Ben recusou juntar-se aos outros dirigentes golpistas no Bairro Miramar. Desceu as barrocas a pé, chegou às imediações do Porto de Luanda e desapareceu. Jeremias Chitunda, Abel Chicukuvuku, então o chefe dos esquadrões da morte da UNITA, e Salupeto Pena partiram em duas viaturas em direcção ao norte, via Caxito. Foram interceptados no Bairro Sambizanga. Os combatentes de “fitinhas” derrotaram-nos. 

Na troca de tiros, Chitunda e Salupeto foram atingidos mortalmente. Chikuvukuku ficou ferido com gravidade e levado para o hospital Militar onde lhe salvaram a vida ao fim de um longo internamento. Ele foi responsável pela morte de muitos civis nas ruas de Luanda e ao lado de Jonas Savimbi, no Huambo, ameaçou reduzir Angola a pó, se fossem publicados os resultados eleitorais. Quando a população em fúria ia linchá-lo, apareceram oficiais das FAPLA que o salvaram. Hoje o assassino é um democrata da primeira e quer fazer uma esquina eleitoral com a UNITA.

Os dois dias de guerra em Luanda tiveram a cobertura do jornalista Carlos Garcia e minha. Não vi mais ninguém nas ruas. Também ninguém teve a sorte de ser transportado numa viatura blindada, conduzida por um oficial da Polícia de Intervenção Rápida. As minhas reportagens podem ser lidas na revista “Sábado”, a original, não o actual boletim ao serviço do banditismo político e mediático. Está lá tudo. 

Hoje, o chefe da seita satânica UNITA, disse que Salupeto Pena e Alicerces Mango, também golpista e igualmente morto em combate, são “grande exemplo de coragem” além de serem “mártires pelo brioso empenho pela luta da paz”. Grandes corajosos. Mandaram matar civis inocentes. Lutaram pela paz disparando contra brancos, mulatos e meninos pobres que esperavam os seus restos de comida nas traseiras de um hotel. Mandaram ocupar embaixadas e matar diplomatas. Não conseguiram, mas mandaram. Adalberto Costa Júnior disse que Mango e Salupeto “possuíam características nobres”. 

A nobreza dos sicários da UNITA viu-se em 1992 nas ruas de Luanda e de todas as cidades do país. Nas aldeias e vilas. Nas matas e nas lavras. Matar, matar, matar inocentes é a nobreza desses monstros. Os assassinos de ontem hoje são mártires. Ninguém pensou nas famílias destroçadas pela morte dos seus, nas ruas? Jovens assassinados a sangue frio não vos merecem nenhum respeito? As perguntas não são para os membros da seita UNITA. São para os que transformaram bandidos em mártires e cuspiram ou mijaram nas tumbas das suas vítimas com o negócio das ossadas. Imperdoável! Imperdoável!

Ao longo dos dias de guerra, na rede de rádio da UNITA nunca se ouviu a voz de Jeremias Chitunda. Nunca. E ele era o vice-presidente da UNITA. Na delegação do Bairro São Paulo, entre outra documentação comprometedora, foi apreendido o diário daquele dirigente da UNITA. Basta ler para compreender que ele foi arrastado para a golpada. Não tinha a linguagem dos assassinos Salupeto Pena, Alicerces Mango, Abel Chivukuvuku e Ben Ben. Por isso, hoje, na homenagem aos ossos, Jeremias Chitunda nem foi citado!

Para o engenheiro à civil Adalberto da Costa Júnior, o seu antigo vice-presidente não é herói, não é mártir, não é corajoso, não é digno da seita. Querem mais sectarismo? Impossível.

* Jornalista 

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