Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
"Foi o povo português". Enquanto a democracia for esta glória quase transcendente de permitir que, no dia das eleições, cada um seja exactamente igual ao outro, valha tanto como o seu semelhante, independentemente do grau de escolaridade, estrato social, cor, sexo, religião ou estado de alma, será bom que o respeito pelos resultados eleitorais - sejam eles quais forem - seja o reflexo do comprometimento e perseverança na defesa da liberdade.
"Foi o povo português" deverá ser sempre um sinal de maturidade democrática e nunca um ajuste de contas ou um passa-responsabilidade. Isabel Meireles, deputada e vice de Rui Rio, sem perceber o tornado que varreu o PSD do poder que parecia estar ali tão perto, assegura que o "foi o povo português" que falhou nestas eleições. Esta declaração é um clássico-síntese do PSD de Rui Rio. "Foi por vontade de Deus/ Que eu vivo nesta ansiedade", cantava Amália em "Estranha forma de vida". Por mais censurável que seja, para alguns, a relação de forças que resulta da nova composição do Parlamento, uma certeza divina: se aqui chegámos, foi por responsabilidade de muitos dos que não conseguem perceber ou explicar a vontade do povo. Deus, quando chegar, providencial, talvez os absolva de tamanha ansiedade.
A "geringonça" e soluções aparentadas que ressuscitaram nos últimos dias de campanha por desespero socialista foram solutos que, durante os anos, esventraram BE e PCP de mais de metade do seu eleitorado. Esse tempo acabou. Atribuindo maioria absoluta ao PS, o povo português acreditou na narrativa de António Costa e não na dos partidos que lhe permitiram constituir governo após perder eleições, os que convidaram a Constituição da República para comer à mesa da democracia, iluminando outras formulações de maiorias parlamentares. O povo entregou a maioria absoluta ao PS quando o próprio já dela tinha desistido e enfraqueceu quem, nos últimos anos, garantiu políticas de Esquerda. A falsa bipolarização das sondagens foi uma falácia e um embuste que entregou a Esquerda do PS às mãos do fantasma absoluto da utilidade do voto. Num sistema eleitoral que continua a desperdiçar centenas de milhares de votos expressos, como se os deitasse ao lixo, nada de mais normal.
A pressão pelo voto útil foi transversal a toda a Esquerda, sem excepção. Mas foi a falta de lucidez do PSD em ser absolutamente claro e consequente relativamente a alianças com a extrema-direita que deu ao voto útil no PS a fatal pressão final. O PSD não soube apontar baterias ao perigo que os cantos de sereia da IL e do CH representavam para o seu eleitorado, passando a campanha a alimentar a IL com boas palavras e o CH com normalização. Tanto gasóleo deu à IL e ao CH que o combustível que sobrou para ao CDS não chegou para manter o táxi a andar ou o partido vivo. Já o PS, percebeu a fragilidade do BE e PCP e não descansou. Sendo também verdade que o voto útil é mais fácil de arregimentar em partidos já estabelecidos do que em partidos novos, a narrativa de vampirização socialista foi clara desde o primeiro dia e executada com foco. Mas sem sangue. "Quem não tem cão caça com gato" perdeu a validade na voz do povo e a falta de eficácia de Zé Albino comprova-o. Com tanto voto útil, o PS nem precisou de pôr as garras de fora.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e Jurista
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