Naquele tempo o Sol perdia luz no arvoredo cerrado das montanhas do Bailundo e os raios das trovoadas partiam rochedos. Entre o rio e a montanha existiam grandes perdizes que faziam voos rasantes nas chanas lançando no ar um canto trágico que pressagiava desgraças.
Sitaluka nasceu na terra pobre, onde o massango definhava e as crias morriam de fome. Mas os caminhos eram percorridos por grandes caravanas de carregadores e comerciantes que levavam as riquezas até ao mar de Benguela. Nesses tempos de tristeza, o homem já era burro e o burro ainda não era homem.
Sitaluka cresceu comendo os grãos de massango deixados pelo sungwangongo, definhava com o pirão que o diabo amassou. Estava magrinha como um osso de galinha quando os velhos da aldeia lançaram um estratagema para alimentar as crianças. Ao entardecer, escondiam-se por trás do espesso arvoredo e lançavam os lúgubres gritos da grande perdiz que enchia o ar dos piores presságios.
Os carregadores ouviam aquele canto trágico, largavam os fardos de mercadorias e fugiam esbaforidos. Os comerciantes disparavam as suas escopetas contra o arvoredo, tentando aniquilar as almas danadas que arrepiavam os corações.
Os celeiros das aldeias começaram a ficar repletos de comida. Sitaluka envelheceu e chegou a vez de ter um neto, a quem deram o nome de Kanyala. As caravanas de mercadorias há muito tinham desaparecido dos caminhos do Bailundo e a fome estava de volta. Sitaluka sentava o menino no regaço e contava-lhe o estratagema dos velhos, no tempo em que o homem já era burro e o burro ainda não era homem:
- K’ongolosi, kekumbi obwingila panda nda kuli osanga ku akongo otjisungwangongo tjysika ekumbi l’okulinggisa usumba olongende vyakavelwa.
Kanyala cresceu à sombra da avó, que procurava nas lavras os restos das magras colheitas. Disputava o milho e a massambala com as perdizes que tinham seu reinado entre o monte e o rio.
O rapaz cresceu e quando ficou com força para cultivar uma lavra, sua avó indicou-lhe um pequeno oásis abandonado, perto do rio. O homem que cultivava aquele pedaço de terra foi levado há muitos anos para longe, na miserável condição de escravo. Passaram os anos e ele não voltou. A mulher morreu, seus filhos foram levados para as grandes roças do norte, onde perderam para sempre o caminho de regresso a casa. Ainda hoje se ouvem na noite gritos de arrepiar:
- Monangambé! Monangambé!
A terra rendia pouco, mas o suficiente para o rapaz e a avó comerem a sua magra dose de pirão.
Um dia Kanyala disse a Sitaluka:
- Vou para longe, onde dizem que a fortuna nos vem parar às mãos. Depois volto para te dar a abundância do tempo em que os velhos espantavam os carregadores e comerciantes das caravanas que levavam as nossas riquezas até ao mar de Benguela.
Sitaluka abençoou o neto, mas pediu-lhe que tivesse sempre presente a lição que os sábios deixaram escrita na memória dos homens:
- Vai, meu filho, mas nunca esqueças que se te deixares ficar para trás, serás sempre o pobre dos pobres e todos vão fazer de ti o mais insignificante dos homens. Nunca fiques no limiar da porta dos poderosos porque quem não ousa entrar na casa da abundância, o máximo que podes aspirar é ser o acarretador de água, se o rio for muito distante.
Kanyala guardou no coração e na raiz do pensamento estas palavras:
Okusala k’oñima, olinga eveke lyukwene. Okusungwa k’ombundi, olinga utapi wovava.
Os velhos lançavam sobre o entardecer o canto lúgubre das perdizes para recolherem a comida que fez crescer as crianças e transformou as terras do Bailundo no paraíso da abundância.
Os novos aprenderam a lição que mudou as suas vidas: quem não toma a iniciativa, os que não têm personalidade, morrem escravos dos outros.
É assim desde o tempo do Kaprandanda, quando o homem já era burro e o burro ainda não era homem.
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