quarta-feira, 6 de abril de 2022

NINGUÉM DUVIDA DO MASSACRE DE BUCHA?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Quem, logo no início da invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro, tomou partido ativo por um dos lados em conflito escrevendo, falando, adjetivando nos jornais, rádios e TV ou, em alternativa, batalhando nas redes sociais em comentários e publicações inflamadas, apaixonadas, bélicas confronta-se, 42 dias depois do começo da guerra, de forma contraditória, com a acumulação insuportável do horror das imagens dos cadáveres.

Mesmo filtradas, censuradas, selecionadas, editadas ou manipuladas, por razões tão diferenciadas que tanto podem ir do bom senso humanitário, como chegar ao exercício perverso de propaganda política, o que já vimos de sanguinário nesta guerra é suficiente para ser inequívoco: a crueldade está a ganhar demasiadas batalhas.

Esta náusea, este choque com a realidade da guerra, confronta o íntimo de cada um daqueles partidários de causa alheia com esta pergunta: "se o meu lado neste conflito acumula crimes e abusos, se se revela um facínora, eu, que o apoio, sou também um facínora?"

Em princípio ninguém, nem um verdadeiro facínora, aceita classificar-se como tal, em princípio ninguém, a não ser um louco, olha para si próprio como agente de puro mal.

Ao associar a sua conceção pessoal de justiça, solidariedade, humanidade a apenas um dos lados da contenda entre ucranianos e russos, diabolizando, desumanizando, desalmando o outro lado, a pessoa que tem tal certeza na bondade inata dos "seus" tende a não aceitar que esses "seus", afinal, cometem também crimes hediondos - é que se o fizer, se aceitar esse facto, está a condenar-se a si própria, está a responder, à pergunta íntima, secreta, anteriormente formulada: "sim, sou um facínora!".

Os ucranianos que, por convicção patriótica, estão contra a invasão russa, estão livres dessa hipotética autocondenação moral porque encontram legitimidade no simples e básico direito à sobrevivência.

Os outros ucranianos e os russos que, do lado oposto, estão em combate, convencidos de que estão a libertar regiões do jugo de Kiev, acabam por estar no mesmo patamar de refúgio mental, pois sentem a mesma legitimidade ligada ao direito à sobrevivência ou à de uma suposta nobreza na causa pela qual estão dispostos a dar a vida.

Fora desse círculo, as defesas e autojustificações para racionalizar e desculpabilizar crimes de guerra são inexistentes.

Qual é a solução que esta gente encontra, face à visão do crime de guerra cometido pelo lado que apoiam, para sossegar o espírito? Qual a receita que passam para anestesiar a tortura da má consciência? Qual a droga que injetam para libertar a mente do escrúpulo?... Fé, cega fé.

Se és contra os russos, tens fé e nunca vês crimes de guerra cometidos por ucranianos. Se és contra os ucranianos, tens fé e só vês crimes de guerra cometidos por ucranianos.

Estejas onde estiveres, não queres que o outro lado apresente as suas provas, que fale, que argumente, que ponha em casa a tua fé - não queres sujeitar as tuas próprias escolhas a um julgamento público.

Porém, nenhuma verdade pode ser verdadeira se não passar o teste da dúvida - e estes crentes, atormentados, ao recusar submeter a sua fé a esse exame perpetuarão a dúvida, que vencerá assim a verdade.

Quase todos os que me leem já viveram tempo suficiente para saberem que, quando há guerras, os Estados mentem e manipulam, a comunicação social não encontra fontes independentes em quantidade suficiente para equilibrar o noticiário, aquilo que começa por ser uma verdade insofismável passa, tempos depois, somados milhares e milhares de mortos, a ser uma mentira vergonhosa.

Só daqui uns anos poderemos ter a certeza da verdade, das várias verdades desta guerra.

Se eu escrever que acredito tanto no massacre de Bucha, exibido pelos ucranianos contra os russos, como na execução indiscriminada e fria de soldados presos e manietados, exibida quase simultaneamente pelos russos contra os ucranianos, fico na terra de ninguém, sujeito à fúria de todos estes crentes na pura candura de um dos lados da guerra...

Paciência. O meu lado não me traz problemas de consciência: é o lado de procurar um caminho que possa poupar vidas humanas. Por isso não tenho fé e duvido, duvido de tudo o que vejo e oiço - se mais pessoas, nesta altura, duvidarem, como eu, talvez nasça uma inquietação capaz de pressionar o poder político deste mundo a procurar, finalmente, a paz.

* Jornalista

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