quarta-feira, 27 de abril de 2022

O PCP É MESMO PUTINISTA?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Embora a situação na Ucrânia "seja complexa e haja diferentes interpretações sobre o que está a acontecer" no país, é possível ter um "diálogo sério sobre a melhor forma de trabalhar para minimizar o sofrimento das pessoas"".

Aquela frase, se tivesse sido dita por um dirigente do PCP a exigir mais trabalho para a paz e menos escalada armamentista, seria rapidamente acompanhada de acusações de branqueamento da invasão russa, de traição à Ucrânia e aos valores das democracias ocidentais.

Aquela frase seria candidata a figurar na lista negra de frases pacifistas ou antimilitaristas publicada há dias, aqui no DN, por António Araújo, um inesperado mccarthista luso, que acha útil compilar nomes e palavras de personalidades com desvios ideológicos ao pensamento dominante.

Porém, esta frase foi dita ontem pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, citada neste mesmo jornal através de um despacho da agência Lusa...

Guterres, afinal, é putinista?

A Ucrânia, antes da invasão russa começar, não podia ser classificada como um país democrático, pois alguns dos elementos básicos de um regime desse tipo não existem ou são deficientes.

Aquela afirmação, se tivesse sido escrita no jornal Avante!, era candidata à classificação sumária de "fake news" e de "propaganda de Moscovo".

Porém, quem classifica assim a Ucrânia é a revista The Economist, um guia ideológico ocidental, que elabora todos os anos um índice onde analisa o nível democrático de cada país.

Nesse documento a Ucrânia, em 2021, estava fora da lista de países democráticos, classificada como um país "híbrido", quase a cair no "autoritarismo", e ocupava um modesto 86.º lugar, mesmo antes de Senegal, Arménia, Libéria e Georgia....

A The Economist, líder do capitalismo liberal, passou a ser "putinista"?

O governo ucraniano e grupos armados não-governamentais são suspeitos de praticarem a tortura e a detenção arbitrária durante o conflito que, desde 2014, decorre no leste da Ucrânia.

Aquela acusação, se fosse dita por um político do PCP, poderia, segundo os critérios analíticos seguidos por um artigo com juristas publicado no DN pela jornalista Fernanda Câncio, suscitar uma acusação criminal de "difamação" e de "incitamento ao ódio" - sugestão, aliás, já aproveitada pelo neonazi português Mário Machado, aliado desta causa, que anunciou numa rede social, depois da publicação da peça, ter formalizado no Ministério Público uma queixa nesse sentido.

Porém, a suspeita é citada num relatório sobre 2021 da Human Rights Watch que, por sua vez, cita a Missão de Observação dos Direitos Humanos da ONU na Ucrânia[1]...

A Human Rights Watch, que brama tanto contra a Rússia, é, no fundo, "putinista"?

As reportagens do jornalista Bruno Amaral Carvalho "mostram aspectos interessantes da situação do lado dos russos e separatistas pró-russos. Após editados (antes não sabemos) são trabalhos informativos com objetividade. Eu prefiro vê-los a não vê-los".

Esta análise ao trabalho que está a passar na CNN portuguesa contradiz uma insólita mensagem que a política do PS, Ana Gomes, enviou à CNN Internacional para denunciar essa opção editorial da TV portuguesa.

Lembro-me quando Ana Gomes lutou diplomaticamente por Timor-Leste contra a ocupação Indonésia, bravamente e com apoio de toda a sociedade portuguesa e de todo o jornalismo português: apesar da carga emotiva desse conflito, houve sempre a racionalidade suficiente para informar os portugueses sobre o que diziam ou pensavam os indonésios - o então ministro dos Estrangeiros desse país, o inacreditável Ali Alatas, passava a vida nos nossos telejornais. Isso foi útil, em nada prejudicou a causa portuguesa e cumpriu a obrigação básica jornalística de ouvir todos os lados de uma questão.

Agora, para esta antiga campeã da liberdade, o que é democrático é o jornalismo não ver o que se passa no outro lado, o que é democrático é impedir a autonomia editorial de um órgão de comunicação social português, o que é democrático é alguém americano pôr na ordem os jornalistas portugueses, o que é democrático é aceitar que uma guerra só tem um ângulo de visão para ser mostrado.

A análise que citei não foi feita por nenhum amigo do jornalista Bruno Amaral Carvalho (cuja simples coragem física, aliás, mereceria um respeito e uma homenagem óbvias, em vez de acusações imbecis produzidas, também, por alguns camaradas de profissão), foi feita pelo crítico de televisão Eduardo Cintra Torres que ninguém pode acusar de nutrir qualquer tipo de simpatias para com o PCP... também ele é, no fim de contas, um "putinista"?

Eu, militante do PCP, ameaçado por contágio de irradiação social, espanto-me: se eles não são putinistas, porque é que o PCP é?...

[1] https://www.hrw.org/world-report/2022/country-chapters/ukraine

*Jornalista

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