Artur Queiroz*, Luanda
A Língua Portuguesa, sobretudo o português de Angola, é a melhor ferramenta para a Poesia. Hoje, Dia Internacional da Língua Portuguesa li para todos vós estes poemas. Alguns são a melhor parte da minha vida. Leiam quando puderem:
Cantiga da Ribeirinha
No mundo non me sei parelha,
mentre me for' como me vai,
ca ja moiro por vós - e ai!
mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia me levantei,
que vos enton non vi fea!
E, mia senhor, des aquelha
me foi a mí mui mal di'ai!,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós houve nen hei
valía dũa correa.
Texto
No mundo ninguém se assemelha a
mim
Enquanto a vida continuar como vai,
Porque morro por vós e - ai! -
Minha senhora alva e de pele rosada,
Quereis que vos retrate
Quando eu vos vi sem manto.
Maldito seja o dia em que me levantei
E então não vos vi feia!
E minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me correu muito mal!
E a vós, filha de Dom Paio Moniz, parece-vos bem
Que me presenteeis com uma guarvaia,
Pois eu, minha senhora, como presente,
Nunca de vós recebera algo,
Mesmo que de ínfimo valor.
Paio Soares de Taveirós
Descalça vai para a fonte
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.
Luís de Camões
O Sentimento dum Ocidental
I
Avé-Maria
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
II
Noite Fechada
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de <<dom>>!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
III
Ao gás
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua trai^ne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
“Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!
III
Horas mortas
O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
Cesário Verde
N'um Batuque
N'um batuque hontem andei,
onde vi certa morena,
tão gentil era a pequena
que nem eu dizel-o sei
- Como está? Lhe perguntei
logo que de perto a vi,
- Quer dançar? Lhe repeti,
não se acanhe minha bella,
- tunda bobo, me disse ella,
Ou antes: - Sai d'aqui
- Seja meu par, oh menina
não se zangue por tão pouco;
- Uá salúcia, é você um louco,
Gámessenâ'me qu'quina
- D'esse olhar a luz divina
fascinado me deixou!
Se um beijinho, só, lhe dou
gozarei prazer infindo,
- Quicolá, me disse, rindo,
logo de mim, se affastou.
- Por que foge? venha cá,
porque só me deixa aqui?
- Uá móno... mundele inhi...
Guamiâne... ndé cuná
- Por favor, não se vá já,
é ainda, muito cedo,
- Quiússuca, disse a medo
a moreninha tão linda
Caté mungo, disse ainda,
e retirou-se em segredo...
Eduardo Neve
Com os olhos secos
Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
através do corpo através do espírito
sobre os corpos inânimes dos mortos
sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos
Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda
Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdámos dos massacres e mentiras
Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE
Agostinho Neto
O Menino Negro não Entrou na Roda
O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas -- as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas, gargalhadas francas...
O menino negro não entrou na roda.
E chegou o vento junto das crianças
-- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.
E o menino negro não entrou na roda.
Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos
bailaram seus voos, cantando seus hinos...
E o menino negro não entrou na roda.
«Venha cá, pretinho, venha cá brincar»
-- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
o menino branco já não quis, não quis...
E o menino negro não entrou na roda.
O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas. Desolado, absorto,
ficou só, parado com olhar de cego,
ficou só, calado com voz de morto.
Geraldo Bessa-Víctor
Uma Negra Convertida
Minha avó negra, de panos escuros,
da cor do carvão...
Minha avó negra de panos escuros
que nunca mais deixou...
Andas de luto,
toda és tristeza...
Heroína de ideias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis, dos quimbandas...
Não xinguilas, no óbito.
Tuas mãos de dedos encarquilhados,
tuas mãos calosas da enxada,
tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,
quitabas e quifufutilas - ,
tuas mãos, ora tranquilas,
desfilam as contas gastas de um rosário já velho...
Teus olhos perderam o brilho;
e da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas...
Avózinha,
às vezes, ouço vozes que te segredam
saudades da tua velha sanzala,
da cubata onde nasceste,
das algazarras dos óbitos,
das tentadoras mentiras do quimbanda,
dos sonhos de alambamento
que supunhas merecer...
E penso que... se pudesses,
talvez revivesses
as velhas tradições!
Mário António
Prelúdio
Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra desce com ela.
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos
nas suas mãos apertadas...
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
tem voz de noite descendo
de mansinho pela estrada.
... Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada.
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo,
Mãe-Negra...
É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão de voltar!...
Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta, bem calada...
É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo
de mansinho pela estrada...
Alda Lara
Canção do Entardecer
(Cantiga de roda)
Ó pássaro traz-me o meu filho
que o sol vai desaparecendo
mualeba kuleba
pássaro que vais esvoaçando
com o sol que vai desaparecendo
longe, tão longe
Kumbi dia kinjila!
Desce dos ares, desce à terra
ave grande
traz-me o meu filho
são horas, o sol vai desaparecendo
mualeba kuleba.
Já trabalhei ó pássaro
já cansei
varri a casa
acendi o lume
cozinhei
já zuquei no meu pilão
traz-me já o meu filho ó pássaro
que o sol vai desaparecendo
Kumbi dia kinjila!
Ó pássaro
o sol vai morrendo
mualeba kuleba
e hoje ganhei o meu dia
já cansei
já capinei, lavrei
já fui acarretar água
tenho a casa limpa
recolhi a criação
cumpri os meus deveres
o sol vai morrendo
são horas de ir descansar
traz-me o meu filho ó pássaro
o kinjila ki-ngi-bekele mona!
Anda, dá-me já o meu filho
são horas
Kumbi dia kinjila
longe tão longe...
— minha negra, que pedes o filho ao pássaro
olha o teu homem
que vem cansado da tonga
dá-me um seio
tens dois — deixa ao teu filho o outro
que o sol já vai morrendo
mualeba kuleba
longe, tão longe
Kumbi dia kinjila!
António Jacinto
Picada de Marimbondo
Junto da mandioqueira
perto do muro de adobe
vi surgir um marimbondo
Vinha zunindo
cazuza!
Vinha zunindo
cazuza!
Era uma tarde em Janeiro
tinha flores nas acácias
tinha abelhas nos jardins
e vento nas casuarinas,
quando vi o marimbondo
vinha voando e zunindo
vinha zunindo e voando!
Cazuza!
Marimbondo
mordeu tua filha no olho!
Cazuza!
Marimbondo
foi branco que inventou…
Ernesto Lara Filho
Canção Para Joana Maluca
Para eles
eras unicamente a suja
a piolhosa
colhendo beatas
á porta do Nacional
E lestos
enquanto o sol brincava
no ombro alcantilado
das encostas
seus rafeiros te lançavam
de dentro dos quintais.
Joana
eles sabiam tua mão
e a temiam
(tua mão espinho-de-piteira
tua mão ngana-acusadora-mesmo
ah! kikata kikata muene)
até quando
estendida tua mão
pedia.
Na escudela da noite
entre cassuneiras e muxixis
uma pobre escura flor
adormecia...
João Maria Vilanova
O ninho do kachinjonjo
Da aldeia de nossos avós
partimos deixando os mortos
e as lavras onde com as mãos
plantámos tanta abundância:
Corremos livres para as luzes
no voo cego da borboleta.
Na correria pelos mundos
te perdi clamei chorei sofri.
Ame syafile
ongongo sya malele.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer.
No regresso os meus olhos
apenas avistaram ruínas
e as lágrimas que choraram
nunca chegaram aos corações
dos justos e piedosos
secaram nos sulcos fundos da agonia.
Ame syafile
Ongongo sya malele.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer.
A casa onde nos demos
tanto sonhamos e amamos
está tão arruinada como a infância
que jaz nos escombros
da fugaz felicidade do beijo
que num dia de pássaros de fogo
fez de nós amantes deslumbrados.
Ame syafile
Ongongo sya malele.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer.
Nas ruínas da nossa casa
nasceu grandiosa árvore
na copa faz ninho o kachinjonjo
que voa desesperado
à procura da flor que foste
do néctar que nos jardins espargiste.
nem Suku seria tão perfeito
a transformar escombros em ninhos.
Ame syafile
Ongongo sya malele.
A morte ainda não chegou
o sofrimento continua a doer.
Percorremos de mãos dadas
os mundos para além do saudoso Cassai
mas regressei só e sem olhos para ver
o mundo que nos nasceu
a casa que nos uniu a Lua que nos despiu:
Kalunga wanjivala! Kalunga wanjivala!
A morte não me quer! A Morte não me quer!
Sungwangongo Malaquias
Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Manuel Bandeira
Dá-me a tua mão
Dá-me a tua mão.
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.
Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.
José Gomes Ferreira
Canção Grata
Por tudo o que me deste:
— Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
— Obrigado, obrigado!
Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!
Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: — Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!
Desaparecido
Sempre que leio nos jornais
“de casa de seus pais desapareceu”
Embora sejam outros os sinais
Suponho sempre que sou eu.
Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus naturais
Do meu veleiro, que ora outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.
Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto de arrependimento.
Eu, que pudesse, enfim, ser meu
- Livre o instinto, em vez de coagido,
“de casa de seus pais desapareceu...”
Eu, o feliz desaparecido.
Carlos Queirós
Quási
Um pouco mais de sol - eu era
brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...
Assombro ou paz?
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...
Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...
Mário de Sá-Carneiro
Havemos de Voltar
Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar
ÀS nossas terras
vermelhas do café
brancas de algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar
Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar
Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar
À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar
À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar
À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar
Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente
Agostinho Neto
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