segunda-feira, 9 de maio de 2022

A MINHA LÍNGUA É A PÁTRIA DA POESIA

Artur Queiroz*, Luanda

A Língua Portuguesa, sobretudo o português de Angola, é a melhor ferramenta para a Poesia. Hoje, Dia Internacional da Língua Portuguesa li para todos vós estes poemas. Alguns são a melhor parte da minha vida. Leiam quando puderem:

Cantiga da Ribeirinha

No mundo non me sei parelha,
mentre me for' como me vai,
ca ja moiro por vós - e ai!
mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia me levantei,
que vos enton non vi fea!

E, mia senhor, des aquelha
me foi a mí mui mal di'ai!,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós houve nen hei
valía dũa correa.

Texto em Português Contemporâneo

No mundo ninguém se assemelha a mim
Enquanto a vida continuar como vai,
Porque morro por vós e - ai! -
Minha senhora alva e de pele rosada,
Quereis que vos retrate
Quando eu vos vi sem manto.
Maldito seja o dia em que me levantei
E então não vos vi feia!

E minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me correu muito mal!
E a vós, filha de Dom Paio Moniz, parece-vos bem
Que me presenteeis com uma guarvaia,
Pois eu, minha senhora, como presente,
Nunca de vós recebera algo,
Mesmo que de ínfimo valor.

Paio Soares de Taveirós

Descalça vai para a fonte

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,

O testo nas mãos de prata,

Cinta de fina escarlata,

Sainho de chamelote;

Traz a vasquinha de cote,

Mais branca que a neve pura.

Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,

Cabelos de ouro entrançado

Fita de cor de encarnado,

Tão linda que o mundo espanta.

Chove nela graça tanta,

Que dá graça à fermosura.

Vai fermosa e não segura.

Luís de Camões

O Sentimento dum Ocidental

               I

         Avé-Maria

    Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

    O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se duma cor monótona e londrina.

    Batem carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista, exposições, países:

Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

    Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

    Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;

Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

    E evoco, então, as crónicas navais:

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

    E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinir de louças e talheres

Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

    Num trem de praça arengam dois dentistas;

Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

    Vazam-se os arsenais e as oficinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.

    Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

    Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera os focos de infecção!

                      II

             Noite Fechada

    Toca-se às grades, nas cadeias. Som

Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!

O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,

Bem raramente encerra uma mulher de <<dom>>!

    E eu desconfio, até, de um aneurisma

Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;

À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,

Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

    A espaços, iluminam-se os andares,

E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos

Alastram em lençol os seus reflexos brancos;

E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

    Duas igrejas, num saudoso largo,

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,

Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

    Na parte que abateu no terremoto,

Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;

Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,

E os sinos dum tanger monástico e devoto.

    Mas, num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar!

    E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.

    Partem patrulhas de cavalaria

Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:

Idade Média! A pé, outras, a passos lentos, 

Derramam-se por toda a capital, que esfria.

    Triste cidade! Eu temo que me avives

Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,

Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,

Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

    E mais: as costureiras, as floristas

Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;

Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos

E muitas delas são comparsas ou coristas.

    E eu, de luneta de uma lente só,

Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:

Entro na brasserie; às mesas de emigrados,

Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

                         III

                      Ao gás

    E saio. A noite pesa, esmaga. Nos

Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.

Ó moles hospitais! Sai das embocaduras

Um sopro que arripia os ombros quase nus.

    Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,

Em uma catedral de um comprimento imenso.

    As burguesinhas do Catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,

As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

    Num cutileiro, de avental, ao torno,

Um forjador maneja um malho, rubramente;

E de uma padaria exala-se, inda quente,

Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

    E eu que medito um livro que exacerbe,

Quisera que o real e a análise mo dessem;

Casas de confecções e modas resplandecem;

Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

    Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros,

A esguia difusão dos vossos reverberos,

E a vossa palidez romântica e lunar!

 

    Que grande cobra, a lúbrica pessoa,

Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!

Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,

Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

 

    E aquela velha, de bandós! Por vezes,

A sua trai^ne imita um leque antigo, aberto,

Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,

Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

 

    Desdobram-se tecidos estrangeiros;

Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

 

    Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes

Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;

Da solidão regouga um cauteleiro rouco;

Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

 

    “Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim!

                          III

                  Horas mortas

    O tecto fundo de oxigénio, de ar,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;

Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,

Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

    Por baixo, que portões! Que arruamentos!

Um parafuso cai nas lajes, às escuras:

Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,

E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

    E eu sigo, como as linhas de uma pauta

A dupla correnteza augusta das fachadas;

Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

As notas pastoris de uma longínqua flauta.

    Se eu não morresse, nunca! E eternamente

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Que aninhem em mansões de vidro transparente!

    Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,

Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!

Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,

Numas habitações translúcidas e frágeis.

    Ah! Como a raça ruiva do porvir,

E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,

Nós vamos explorar todos os continentes

E pelas vastidões aquáticas seguir!

    Mas se vivemos, os emparedados,

Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...

Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas

E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

    E nestes nebulosos corredores

Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;

Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,

Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

    Eu não receio, todavia, os roubos;

Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;

E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,

Amareladamente, os cães parecem lobos.

    E os guardas, que revistam as escadas,

Caminham de lanterna e servem de chaveiros;

Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,

Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

 E, enorme, nesta massa irregular

De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

A Dor humana busca os amplos horizontes,

E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

Cesário Verde

N'um Batuque

N'um batuque hontem andei, 

onde vi certa morena,

tão gentil era a pequena

 que nem eu dizel-o sei

- Como está? Lhe perguntei

logo que de perto a vi,

 - Quer dançar? Lhe repeti, 

não se acanhe minha bella, 

- tunda bobo, me disse ella, 

Ou antes: - Sai d'aqui 

 - Seja meu par, oh menina 

não se zangue por tão pouco; 

- Uá salúcia, é você um louco,

Gámessenâ'me qu'quina

 - D'esse olhar a luz divina 

fascinado me deixou!

Se um beijinho, só, lhe dou

gozarei prazer infindo,

- Quicolá, me disse, rindo,

logo de mim, se affastou.

- Por que foge? venha cá, 

porque só me deixa aqui? 

 - Uá móno... mundele inhi... 

Guamiâne... ndé cuná

- Por favor, não se vá já,

é ainda, muito cedo, 

- Quiússuca, disse a medo 

a moreninha tão linda

Caté mungo, disse ainda,

e retirou-se em segredo...

     Eduardo Neve

Com os olhos secos                                  

Com os olhos secos 

- estrelas de brilho inevitável

  através do corpo através do espírito

sobre os corpos inânimes dos mortos

 sobre a solidão das vontades inertes

nós voltamos

Nós estamos regressando África

 e todo o mundo estará presente

 no super-batuque festivo

 sob as sombras do Maiombe

no carnaval grandioso

pelo Bailundo pela Lunda

Com os olhos secos

contra este medo da nossa África

que herdámos dos massacres e mentiras

Nós voltamos África

estrelas de brilho irresistível

 com a palavra escrita nos olhos secos

 - LIBERDADE

Agostinho Neto

O Menino Negro não Entrou na Roda 

O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas -- as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas, gargalhadas francas...

O menino negro não entrou na roda.

E chegou o vento junto das crianças
-- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.

E o menino negro não entrou na roda.

Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos em redor. Por fim,
bailaram seus voos, cantando seus hinos...

E o menino negro não entrou na roda.

«Venha cá, pretinho, venha cá brincar»
-- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
o menino branco já não quis, não quis...

E o menino negro não entrou na roda.

O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas. Desolado, absorto,
ficou só, parado com olhar de cego,
ficou só, calado com voz de morto.

Geraldo Bessa-Víctor

Uma Negra Convertida

Minha avó negra, de panos escuros,
da cor do carvão...
Minha avó negra de panos escuros
que nunca mais deixou...

Andas de luto,
toda és tristeza...
Heroína de ideias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis, dos quimbandas...

Não xinguilas, no óbito.
Tuas mãos de dedos encarquilhados,
tuas mãos calosas da enxada,
tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,
quitabas e quifufutilas - ,
tuas mãos, ora tranquilas,
desfilam as contas gastas de um rosário já velho...

Teus olhos perderam o brilho;
e da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas...

Avózinha,
às vezes, ouço vozes que te segredam
saudades da tua velha sanzala,
da cubata onde nasceste,
das algazarras dos óbitos,
das tentadoras mentiras do quimbanda,
dos sonhos de alambamento
que supunhas merecer...
E penso que... se pudesses,
talvez revivesses
as velhas tradições!

Mário António

Prelúdio

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra desce com ela.

Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos
nas suas mãos apertadas...

Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
tem voz de noite descendo
de mansinho pela estrada.

... Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada.
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo,
Mãe-Negra...

É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão de voltar!...

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta, bem calada...

É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo
de mansinho pela estrada...

Alda Lara

Canção do Entardecer

(Cantiga de roda)

Ó pássaro traz-me o meu filho

que o sol vai desaparecendo

mualeba kuleba

pássaro que vais esvoaçando

com o sol que vai desaparecendo

longe, tão longe

Kumbi dia kinjila!

Desce dos ares, desce à terra

ave grande

traz-me o meu filho

são horas, o sol vai desaparecendo

mualeba kuleba.

Já trabalhei ó pássaro

já cansei

varri a casa

acendi o lume

cozinhei

já zuquei no meu pilão

traz-me já o meu filho ó pássaro

que o sol vai desaparecendo

Kumbi dia kinjila!

Ó pássaro
o sol vai morrendo
mualeba kuleba
e hoje ganhei o meu dia

já cansei

já capinei, lavrei

já fui acarretar água

tenho a casa limpa

recolhi a criação

cumpri os meus deveres

o sol vai morrendo

são horas de ir descansar

traz-me o meu filho ó pássaro

o kinjila ki-ngi-bekele mona!

Anda, dá-me já o meu filho

são horas

Kumbi dia kinjila

longe tão longe...

— minha negra, que pedes o filho ao pássaro

olha o teu homem

que vem cansado da tonga

dá-me um seio

tens dois — deixa ao teu filho o outro

que o sol já vai morrendo

mualeba kuleba

longe, tão longe

Kumbi dia kinjila!

António Jacinto

Picada de Marimbondo

Junto da mandioqueira

perto do muro de adobe

vi surgir um marimbondo

Vinha zunindo

cazuza!

Vinha zunindo

cazuza!

Era uma tarde em Janeiro

tinha flores nas acácias

tinha abelhas nos jardins

e vento nas casuarinas,

quando vi o marimbondo

vinha voando e zunindo

vinha zunindo e voando!

Cazuza!

Marimbondo

mordeu tua filha no olho!

Cazuza!

Marimbondo

foi branco que inventou…

Ernesto Lara Filho

Canção Para Joana Maluca

Para eles
eras unicamente a suja
a piolhosa
colhendo beatas
á porta do Nacional

E lestos
enquanto o sol brincava
no ombro alcantilado
das encostas
seus rafeiros te lançavam
de dentro dos quintais.

Joana
eles sabiam tua mão
e a temiam
(tua mão espinho-de-piteira
tua mão ngana-acusadora-mesmo
ah! kikata kikata muene)
até quando
estendida tua mão
pedia.

Na escudela da noite
entre cassuneiras e muxixis
uma pobre escura flor
adormecia...

João Maria Vilanova

O ninho do kachinjonjo

Da aldeia de nossos avós 

partimos deixando os mortos

e as lavras onde com as mãos

plantámos tanta abundância:

Corremos livres para as luzes 

no voo cego da borboleta.

Na correria pelos mundos

te perdi clamei chorei sofri.


Ame syafile

ongongo sya malele.

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer.

 

No regresso os meus olhos

apenas avistaram ruínas

e as lágrimas que choraram

nunca chegaram aos corações

dos justos e piedosos

secaram nos sulcos fundos da agonia.

 

Ame syafile

Ongongo sya malele.

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer.

 

A casa onde nos demos

tanto sonhamos e amamos 

está tão arruinada como a infância

que jaz nos escombros 

da fugaz felicidade do beijo

que num dia de pássaros de fogo

fez de nós amantes deslumbrados.

 

Ame syafile

Ongongo sya malele.

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer.

 

Nas ruínas da nossa casa

nasceu grandiosa árvore

na copa  faz ninho o kachinjonjo 

que voa desesperado

à procura da flor que foste

do néctar que nos jardins espargiste.

nem Suku seria tão perfeito

a transformar escombros em ninhos.

 

Ame syafile

Ongongo sya malele.

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer.

 

Percorremos de mãos dadas

os mundos para além do saudoso Cassai

mas regressei só e sem olhos para ver

o mundo que nos nasceu

a casa que nos uniu a Lua que nos despiu:

Kalunga wanjivala! Kalunga wanjivala! 

A morte não me quer! A Morte não me quer!

Sungwangongo Malaquias

Irene no Céu

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

Manuel Bandeira

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

José Gomes Ferreira

Canção Grata

Por tudo o que me deste:
— Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
— Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: — Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

Desaparecido

Sempre que leio nos jornais

“de casa de seus pais desapareceu”

Embora sejam outros os sinais

Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,

Que por caminhos meus naturais

Do meu veleiro, que ora outros movem,

Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;

Vencido, embora, por contrário vento,

Mas desprezasse, consciente e forte, 

O porto de arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser meu

- Livre o instinto, em vez de coagido,

“de casa de seus pais desapareceu...”

Eu, o feliz desaparecido.

Carlos Queirós

Quási

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Mário de Sá-Carneiro

Havemos de Voltar

Às casas, às nossas lavras 

às praias, aos nossos campos
havemos de voltar

ÀS nossas terras
vermelhas do café
brancas de algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar

Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar

À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar

À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar

À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente

Agostinho Neto

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