Aborto ilegal: vitória republicana tornada trunfo eleitoral democrata
A eventual revogação da Roe v. Wade galvaniza os eleitores, mas os conservadores preferem falar da inflação, imigração ou crime para reconquistar a maioria no Congresso e travar Joe Biden.
A revogação da decisão Roe v. Wade, que em 1973 legalizou o aborto nos EUA, será uma vitória para os republicanos mais conservadores. Mas a seis meses das eleições intercalares, não há motivo para grandes festejos dentro do Partido Republicano, já que o tema promete mobilizar os democratas e o seu eleitorado - sondagens mostram que 58% dos norte-americanos defendem que a interrupção voluntária da gravidez devia ser legal.
A decisão do Supremo Tribunal sobre a lei que ilegalizava o aborto a partir das 15 semanas no Mississípi (e que podia ter repercussão nacional) era esperada em junho ou julho. Mas uma fuga de informação, que levou à divulgação do rascunho da justificação de voto da maioria de cinco dos nove juízes para a revogação da Roe v. Wade (que não é final nem garantida), antecipou o debate. E numa altura em que estão a começar as primárias para escolher os candidatos ao Congresso - na Câmara dos Representantes todos os 435 lugares estão em jogo e no Senado só um terço dos 100 será renovado - e a governadores (36 dos 50 vão a votos).
O presidente norte-americano, Joe Biden, apressou-se a lembrar que é pró-escolha (sendo católico, chegou até a ser ameaçado por alguns bispos dos EUA com a proibição de comungar) e a apelar aos eleitores para que votem nos democratas em novembro - e o tema promete ser recorrente até às eleições. Já os republicanos, optaram por focar-se nas críticas à histórica fuga de informação, que será investigada pelo Supremo Tribunal.
Em teoria, o Congresso podia aprovar legislação para garantir o direito ao aborto, mas o caminho não é fácil. No ano passado, uma lei nesse sentido passou na Câmara dos Representantes de maioria democrata por 218 votos contra 211, mas ao chegar ao Senado (onde democratas e republicanos têm cada um 50 representantes) chumbou porque houve um democrata que votou contra. Mas, mesmo se tivesse votado a favor, não seria suficiente, porque as regras exigiam o voto favorável de 60 senadores.
O problema, para os democratas, é que as sondagens têm dito que os republicanos podem recuperar a maioria em ambas as câmaras. O aborto poderá complicar essas contas, com os republicanos a preferirem focar-se na maior inflação em quatro décadas, no fim das restrições sanitárias impostas durante a pandemia que travaram a imigração na fronteira com o México (com a previsível onda de entradas que isso irá causar no final de maio) ou o aumento dos crimes.
Para Biden, a eventual perda da maioria em novembro significaria uma segunda parte do mandato a ter que enfrentar a constante obstrução republicana. Pior, porque arrisca ser uma oposição onde o ex-presidente Donald Trump ainda tem peso - no Ohio, onde o atual senador Rob Portman não é candidato à reeleição, o vencedor das primárias republicanas foi J.D. Vance, que recebeu 15 dias antes o apoio de Trump (até então estava em terceiro lugar nas sondagens).
A possibilidade de o ex-presidente, depois de alegar que a eleição lhe foi roubada em 2020, tentar novamente em 2024 não está posta de lado. Ainda ontem, o senador Mitt Romney, que perdeu em 2012 para Barack Obama e não é um dos maiores fãs de Trump, disse que "é muito provável" que ele seja o candidato republicano, se resolver concorrer novamente. Isso tornaria o final do primeiro mandato de Biden ainda mais complicado.
Daí que o presidente, que após o desaire da retirada do Afeganistão ganhou pontos na cena internacional com a resposta à invasão russa da Ucrânia e espera que os bons resultados da economia no verão lhe garantam alguns votos, já esteja ao ataque. A estratégia passa por pedir aos eleitores que o comparem com a "alternativa", apelidar os apoiantes de Trump como "a mais extrema organização política" que existe e questionar o que vão atacar a seguir. Especialistas alegam que os argumentos contra a Roe v. Wade podem ser usados para reverter as uniões homossexuais ou até o uso de contracetivos, apesar de ninguém querer rever esses direitos.
O que vai a votos no Congresso?
Câmara dos Representante
Em novembro serão renovados todos os 435 lugares, sendo a atual maioria democrata de 221 contra 209 (há cinco vagas por morte ou demissão). Novo desenho dos distritos eleitorais favorece os republicanos.
Senado
Os democratas e republicanos têm cada um 50 lugares, mas só 35 dos 100 vão a jogo: 21 são republicanos (seis não tentam a reeleição) e 14 são democratas (só um não se recandidata). Há sete (quatro democratas e três republicanos) que podem cair para qualquer um dos lados.
Susana Salvador | Diário de Notícias
Imagem: Protesto a favor da continuação do aborto legal, frente ao Supremo Tribunal dos EUA. © EPA/MICHAEL REYNOLDS
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