sexta-feira, 24 de junho de 2022

ELEGIA PARA A MINHA FILHA JÉSSICA

Artur Queiroz*, Luanda

A minha filha Jéssica tinha três anos e foi assassinada. Quem a matou? A sociedade do espectáculo, essa megera, meretriz de sentimentos apodrecidos, rostos maquilhados, bocas deformadas de tantas vezes alugadas. Aqui está a criança morta! Quando ainda viva embalava num carrinho de bebé, duas bonecas, gémeas na exclusão, na pobreza enganada, na miséria engalanada a cores e em alta definição. 

A autópsia de Jéssica revelou maus tratos no rosto. O coração estava ressequido, desertificado, descolorido, sem músculo nem vestígios de amor. Mal nasceu arrancaram-lhe o coração pela boca. Eu não sabia que tinha a minha filha Jéssica. E se soubesse, que podia fazer para enfrentar os negócios do Balsemão, do Barqueiro do Douro, do ministro que tutela a RTP, dos traficantes do correio da manhã? Nada. Nunca o nada me foi tão doloroso, vazio, fantasmagórico, angustiante.   

O velório da Jéssica é numa capela decorada com santos de pau ou porcelana, sem valor, imprestáveis, cúmplices de um deus caprichoso e cruel que viu matar a minha filha Jéssica e cuspiu para o lado.

A minha filha Jéssica viveu na rua com a mãe, passou fome de amor e de pão. Até as noites agrediam o seu corpinho, com frio e escuridão. Não lhe digam que vem aí o Papão! E a Mamã cantava o fado Camões grande Camões quão teu fado é igual ao meu! Na mão de deus, na sua mão direita, repousa, enfim, o meu coração. Escrito isto, Antero disparou um tiro na cabeça.

Quem o matou? Fomos todos, até eu, que ainda não tinha nascido. Estamos sempre prontos a disparar aos miolos dos poetas. Violar meninas de três anos com a pobreza abaixo do limiar inventado pela criadagem do nababo dono do Pingo Doce. Um mundo tenebroso criado, cifrão a cifrão, pelos banqueiros e seus governos de turno. Pelos mercados, insaciáveis de sangue e suor dos papás e das mamãs da minha filha Jéssica, morta aos três anos, na primeira esquina das ruas da amargura.

A minha Filha Jéssica tinha mais cinco irmãos. A mais velha foi entregue a um asilo para indigentes, pobres, miseráveis, candidatos à morte violenta. Institucionalizada, dizem as bocas alugadas por donos cruéis. Os outros foram entregues a familiares. A Mamã canta fado e pediu a uma bruxa que lhe conservasse o companheiro, fugidio, esquivo, pronto a abandonar a pobreza extrema e partir para outro tugúrio, outra mesa de fome, outro pesadelo.

As televisões continuam a fazer da minha filha Jéssica uma estrela dos ecrãs. Ela, que jaz morta e arrefece. A Mamã também actua, mas fugidiamente. Ninguém consegue capturar a sua alma fadista. E eu aqui, ruminando vinganças. A Joana Amaral Dias, filha do Menino Reboredo, foi ganhar o seu pedaço de dinheiro sujo à custa da minha filha Jéssica. Psicólogas e psicólogos, advogadas e advogadas, jornalistas venais ganham uns trocos à custa da minha filha Jéssica. Como não posso matá-los, choro. Estou mesmo a chorar. Morrem-me todas as filhas. Morrem-me todos os filhos. E eu sem forças para matar os matadores!

À minha filha Jéssica deixo esta trova do poeta Sungwangongo Malaquias:

O ninho do kachinjonjo

 

Da aldeia de nossos avós 

partimos deixando os mortos

e as lavras onde com as mãos

plantámos tanta abundância:

Corremos livres para as luzes 

no voo cego da borboleta.

Na correria pelos mundos

te perdi clamei chorei sofri.

 

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer

Ame syafile

ongongo sya malele.

 

No regresso os meus olhos

apenas avistaram ruínas

e as lágrimas que choraram

nunca chegaram aos corações

dos justos e piedosos

secaram nos sulcos fundos da agonia.

 

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer

Ame syafile

Ongongo sya malele.

 

A casa onde nos demos

tanto sonhamos e amamos 

está tão arruinada como a infância

que jaz nos escombros 

da fugaz felicidade do beijo

que num dia de pássaros de fogo

fez de nós amantes deslumbrados.

 

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer

Ame syafile

Ongongo sya malele

 

Nas ruínas da nossa casa

nasceu grandiosa árvore

na copa  faz ninho o kachinjonjo 

que voa desesperado

à procura da flor que foste

do néctar que nos jardins espargiste.

nem Suku seria tão perfeito

a transformar escombros em ninhos.

 

A morte ainda não chegou

o sofrimento continua a doer

Ame syafile

Ongongo sya malele

 

Percorremos de mãos dadas

os mundos para além do saudoso Cassai

mas regressei só e sem olhos para ver

o mundo que nos nasceu

a casa que nos uniu a Lua que nos despiu:

Kalunga wanjivala! Kalunga wanjivala! 

A morte não me quer! A morte não me quer!

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana