Entrevista com Annie Lacroix-Riz*
Esta entrevista com uma notável
historiadora é mais uma ilustração da razão porque os media dominantes - e o
pensamento dominante em geral - operam uma sistemática rasura da história, ou
tentam a sua mais fraudulente reescrita. É que é a história que ajuda a
entender em profundidade não só os interesses em confronto como os antecedentes
e a real natureza dos protagonistas
Nesta entrevista, Annie Lacroix-Riz analisa a situação na Ucrânia à luz da história dos imperialismos do início do século XX e da sua perduração. O que nos é dito, vezes sem conta, nos meios de comunicação social dominantes não permite compreender o conflito e, por conseguinte, impossibilita-nos de procurar uma solução para a paz.
Nos meios de comunicação social, fica-se com a impressão de que a guerra na Ucrânia aconteceu a partir do nada. O que nos pode dizer sobre o contexto histórico desta guerra?
Em primeiro lugar, os elementos históricos estão praticamente ausentes daquilo que nos é frequentemente descrito como uma “análise” da situação. No entanto, há dois aspetos importantes a ter em conta nos acontecimentos atuais. Em primeiro lugar, existe uma situação geral, ou seja, uma agressão da NATO contra a Rússia. Depois, há uma espécie de obsessão contra a Rússia – e até contra a China. Esta obsessão não é nova e, portanto, permite relativizar o atual frenesim anti-Putin. A essência da alegada “análise ocidental” assenta na ideia de que Putin é um lunático paranóico e/ou um novo Hitler. Mas o ódio contra a Rússia, assim como o facto de não se suportar que esta possa ter um papel mundial, são tão velhos quanto o imperialismo americano.
Como é que explica esta obsessão?
É uma obsessão característica de
um imperialismo dominante que foi hegemónico durante, praticamente, todo o
século XX. Este imperialismo não quer perder a sua hegemonia, ainda que, na
realidade, a esteja a perder. Com efeito, hoje já não estamos na mesma situação
em que estávamos na década de 1950, quando os Estados Unidos representavam 50%
da produção mundial. A China está a aproximar-se do primeiro lugar, no mundo, e
isso não agrada aos Estados Unidos. Nos últimos anos, atingimos um momento
particularmente agudo neste confronto, marcado por uma série de ataques
surpreendentes. Neste confronto, a Rússia também é um alvo. Temos a impressão
de que haveria uma espécie de rancor contra os bolcheviques, mas é preciso
saber que esta Russofobia do imperialismo americano remonta à era czarista, e
continuou depois, incluindo após a dissolução da União Soviética. Os
compromissos assumidos pelos Estados Unidos de não avançar militarmente na zona
ex-soviética foram, desde então, todos violados. De
Qual é o lugar da Ucrânia nos conflitos entre potências imperialistas?
A Ucrânia é inseparável da
história da Rússia, desde o início da Idade Média. A Rússia, com toda a sua
riqueza natural, é uma gruta de Ali Baba e a Ucrânia foi a sua mais bela jóia:
é uma fonte extraordinária de carvão, de ferro e de tantos outros recursos
minerais, e um formidável depósito de trigo e de outros cereais - o que, aliás,
atraiu a cobiça de muitos, desde há muito tempo. Para nos mantermos no período
imperialista (desde a década de 1880), podemos dizer que foi a Alemanha que,
num primeiro momento, se interessou pela Ucrânia. Antes da guerra de 1914, o
Reich alemão tinha decidido, a fim de controlar o Império Russo, garantir o
controlo dos seus “mercados” mais desenvolvidos: a Ucrânia e os Estados
bálticos. Durante o conflito, a Alemanha fez destes Estados e da Ucrânia um
verdadeiro reduto militar, a base do seu ataque ao Império Russo. Durante a
Primeira Guerra Mundial, se a Alemanha falhou na Frente Ocidental, logo em
1917, o mesmo não se pode dizer da Frente Oriental, a qual foi dominada pela Alemanha
até à sua derrota. E, apesar de, desde janeiro de
Que papel tinha o Vaticano?
O Uniatismo Católico constituiu o
apoio ideológico da conquista germânica, tendo seduzido parte das populações do
oeste da Ucrânia, graças à sua aparência formal, muito próxima da Ortodoxia.
Este instrumento da conquista austríaca foi tomado em mãos pela Alemanha, na
era imperialista: o Vaticano, compreendendo que já não podia contar com o
moribundo império católico, submeteu-se, definitivamente, ao poderoso Reich
protestante, no início do século XX, incluindo na Ucrânia. No período
entreguerras, a Ucrânia desempenhou, assim, um papel decisivo na aliança entre
a Alemanha e o Vaticano, a quem Berlim confiou a espionagem militar, realizada
através dos clérigos uniates. Podemos observar, deste modo, como foi organizada
a tentativa de conquistar a Ucrânia, consagrada, aliás, na Concordata do Reich
de julho de 1933, assinada entre Berlim e o Vaticano. Um dos seus dois artigos
secretos estipulava que a Alemanha e o Vaticano seriam aliados na tomada de
posse da Ucrânia, que era um dos principais objetivos da guerra da Alemanha,
tanto durante a Primeira Guerra Mundial, como durante a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto a militarização, a ocupação e a exploração económica estariam sob a
alçada da Alemanha, a “recristianização” católica seria entregue ao Vaticano.
Os Estados Unidos também estavam interessados… A Ucrânia é, não apenas um
elemento importante no quadro mundial, como a porta de entrada para o Cáucaso,
rico
Ainda assim, havia, ou não, um nacionalismo ucraniano?
O nacionalismo ucraniano foi, primeiro, alemão e, depois, americano (ou melhor, ambos), porque não tinha capacidade real de independência: o Reich financiou-o antes de 1914, e nunca mais cessou de o fazer. Na verdade, estas pessoas que diziam querer uma Ucrânia “independente” (como Bandera e os seus seguidores) pertenciam ao inatismo que, no período entre-guerras, e durante toda a Segunda Guerra Mundial, se confunde com o nazismo. É difícil não fazer a ligação com estes movimentos que hoje encontramos: o batalhão Azov, Pravy Sektor, etc., são os herdeiros diretos que se reivindicam do movimento autonomista ucraniano do período entre-guerras, que viu a criação, em 1929, do movimento banderista. Denominado “Organização dos Ucranianos Nacionalistas” (OUN), foi inteiramente financiado pelo Reich de Weimar e, depois, por Hitler (depois de o “autonomismo” ter sido subsidiado pelo Reich wilhelminiano).
Como é que este movimento se desenvolveu?
O movimento de Stepan Bandera, o
agora “herói nacional” oficial do Estado ucraniano, e ao qual o batalhão Azov e
outros grupos pró-nazis constantemente prestam homenagem, desenvolveu-se a
partir de 1929, na Ucrânia polaca e na Ucrânia eslovaca. Não estava, contudo,
presente na Ucrânia soviética e ortodoxa. Os “banderistas”, como as outras
correntes do “nacionalismo ucraniano”, eram anti-judeus, anti-russos e, também,
violentamente anti-polacos. Atacavam de forma igualmente radical ucranianos
não-autonomistas e ucranianos que tinham permanecido próximos da Rússia. Estes
bandos de auxiliares da polícia alemã, já em 1939, na Polónia ocupada, e,
depois, a partir de 22 de junho de 1941, na URSS ocupada, formaram um
autodenominado “exército de insurreição”, a UPA. Estes
Quais foram as consequências desta colusão?
Entre os criminosos de guerra
calorosamente acolhidos pelos Estados Unidos, os intelectuais tiveram um
acolhimento particular. Desde 1948, foram recrutados em grande número por
universidades americanas, sobretudo as da Ivy League, incluindo Harvard e
Columbia. Nos “Centros de Investigação sobre a Rússia”, que proliferam desde
1946-1947, aqueles intelectuais participaram, juntamente com os seus
prestigiados colegas americanos, numa frenética guerra ideológica contra a
Rússia. É neste contexto que é difundida a lenda do “Holodomor”, cujas
aventuras pontuaram, desde então, as etapas decisivas da conquista da Ucrânia.
Esta “investigação” e este “ensino”, implantados há mais de 70 anos, e
espalhados massivamente, com a ajuda dos principais meios de comunicação social,
ao longo de décadas na Europa americana, literalmente “apodreceram” os
conhecimentos “ocidentais” sobre a história da Ucrânia (e, mais amplamente,
sobre a da URSS). Os apoios políticos do Euromaidan, avatar destas inúmeras
revoluções coloridas dos últimos vinte anos, formaram a espinha dorsal de 2014,
fazendo uma aliança com oligarcas que, desde 1991, monopolizam toda a riqueza
da Ucrânia. Note-se que este tipo de saque não é exclusivo da Rússia de Putin,
sendo observado em quase todos os países da ex-União Soviética. Na Ucrânia, os
oligarcas confiaram nestes elementos herdeiros do banderismo. O Estado
ucraniano de Poroshenko e os seus sucessores, desde 2014, confiaram abertamente
nestes movimentos nazis que os Estados Unidos alimentaram, incansavelmente,
desde 1944-1945. Os Estados Unidos tinham como programa explícito, codificado
em junho de 1948, no âmbito da CIA, a liquidação, pura e simples, não só da
zona de influência soviética, mas o próprio Estado soviético. Foi sob a
administração democrata que foi posta em prática a política de repulsão ou de
“retrocesso”, com o objetivo de esmagar o comunismo onde quer que fosse que
este se encontrasse instalado (e impedindo-o de se instalar em zonas de
influência americana). Como uma série de trabalhos históricos têm demonstrado,
incluindo o trabalho de investigadores americanos com uma forte ligação ao
aparelho de Estado, e muito antissoviéticos, este programa foi definitivamente
implementado pela CIA, desde o seu nascimento, em julho de 1947. Podemos
compreender a sua extensão graças ao texto de fevereiro de 1952 de Armand
Bérard, um diplomata francês, em Bona, a quem cito em Aux origines du Carcan
européen. Bérard profetizava que a Rússia, tão enfraquecida pela guerra alemã
travada contra ela, entre 1941 e 1945 (
Este passo faz lembrar o que a União Soviética deu no final de 1939. O que quer dizer com isso?
Este é um elemento essencial. No
final de
Isto relembra, então, a situação atual da Ucrânia?
Sim, se nos cingirmos a factos históricos, e não nos limitarmos a dizer que estamos perante um monstro louco. Leio, hoje, em petições ou em jornais de referência, que Putin está a incendiar e a incitar um derramamento de sangue numa Europa, até agora, calma e tranquila. Mas não ouvimos estes intelectuais, recrutados maciçamente pela imprensa mainstream, e revoltados contra o “novo Hitler”, manifestarem-se contra as centenas de milhares de mortes dos bombardeamentos americanos e europeus no Iraque, na Líbia, no Afeganistão, na Síria. As mesmas pessoas que amaldiçoam Putin acharam magníficos os 78 dias de bombardeamentos contra Belgrado e contra o “novo Hitler”, Milosevic. A comparação, refira-se, tem sido aplicada a todos os “inimigos” que o Ocidente forjou, desde a nacionalização de Nasser do Canal do Suez. Também não me lembro de nenhuma importante indignação destes novos anti-nazis por causa das 500.000 crianças que morreram no Iraque, por falta de comida e de cuidados médicos, como consequência imediata do bloqueio anglo-americano; crianças, aliás, cujo sacrifício “valeu a pena”, segundo as declarações recentes da ex-secretária de Estado democrata Madeleine Albright. Porquê esta sistemática aplicação de dois pesos, duas medidas, também usada no que concerne as populações martirizadas de Donbass (e que Putin é acusado de ter instrumentalizado durante oito anos contra a tão simpática Ucrânia)? Esta guerra, por mais lamentável que seja, foi anunciada há muito tempo, e as razoáveis vozes de militares, diplomatas, académicos, a Oeste, que não têm acesso a nenhum órgão importante dito de “informação”, privado ou estatal, são categóricas sobre as responsabilidades exclusivas, e de longa data, dos Estados Unidos, no desencadear de um conflito que eles próprios tornaram inevitável.
Na sua opinião, como é que será o futuro?
Não me pronuncio sobre o futuro,
pois os historiadores não têm de desempenhar o papel de meteorologistas,
especialmente tendo em conta a informação execrável a que, atualmente, têm
acesso. Mas posso afirmar que os Estados Unidos são o poder imperialista cujas
guerras de agressão acumularam, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, milhões
de mortes. Recomendo, aliás, o livro traduzido de William Blum, um antigo
funcionário da CIA (estes são os melhores analistas), que estabeleceu uma
estrita cronologia dos crimes cometidos pelos Estados Unidos contra uma série
de Estados qualificados de “bandidos”. A Rússia nem sempre foi considerada como
tal pelo “Ocidente”, na época da “Grande Aliança” e do “Tio Joe” (José
Estaline). Até às últimas décadas de propaganda unilateral “ocidental” sobre a
libertação da Europa – segundo a qual, a libertação teria ocorrido graças,
unicamente, ao desembarque americano, em junho de 1944 -, havia sido amplamente
reconhecido que só o Exército Vermelho é que tinha conseguido derrotar a
Wehrmacht, e a que custo! De acordo com estimativas recentes, os Estados Unidos
têm a deplorar, durante a Segunda Guerra Mundial, um total inferior a 300.000
mortes (todas, de militares), nas frentes do Pacífico e da Europa. Nesta
entrevista, há pouco, já havia referido o monstruoso número de perdas
soviéticas: 10 milhões de baixas militares e
Notas:
1 - A Galicia foi uma província do Império Austríaco, formada em
2- Uniatismo: conjunto de comunidades cristãs, de rito oriental, que reconhecem
a autoridade papal ou que se encontram ligadas à Igreja Católica.
*Annie Lacroix-Riz, Professora Emérita de História Contemporânea da Universidade Paris VII-Denis Diderot, escreveu vários livros sobre as duas guerras mundiais e as dominações políticas e económicas.
* em O Diário.info
Fontes: pelosocialismo.blogs.sapo.pt/annie-lacroix-riz-ha-um-contexto-199826
https://www.investigaction.net/fr/annie-lacroix-riz-il-y-a-un-contexte-historique-quiexplique-que-la-russie-etait-acculee/
Tradução: AMS
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