terça-feira, 26 de julho de 2022

Angola | MEMORIAL DO GOLPISTA DESALMADO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Nito Alves foi aluno do Liceu Salvador Correia sem nunca lá ter entrado. Aderiu à guerrilha na I Região Política e Militar do MPLA quando os guerrilheiros estavam em posições defensivas e de mera subsistência. Com a Operação Nova Luz apenas ficaram os esconderijos nas exuberantes matas dos Dembos. Proferiu um discurso no congresso de Lusaka mas tal congresso não se realizou. O discurso existe. Descubram quem o escreveu e ficam a saber muito sobre o 27 de Maio de 1977. Descubram quem redigiu as suas “teses” e ficam a saber quem mexia os cordelinhos das marionetas nitistas. 

Uma forte delegação angolana participou nos trabalhos do congresso do Partido Comunista da União Soviética, em Moscovo. Era chefiada por Nito Alves e “assessorado” por José Van-Dúnem. Quando discursou aos delegados disse: 

“Camaradas! A nossa vitória sobre o colonialismo português tornou-se possível graças à ajuda da União Soviética”. Faço-lhe a justiça de aceitar que não sabia o que estava a dizer, porque desconhecia em absoluto o que se passava no seio do MPLA. Mas sabemos quem escreveu o discurso: Marechal Epichev, comissário político do Exército Vermelho. Tirem as vossas conclusões. Sim, a União Soviética ajudou. Mas Argélia, Cuba, Jugoslávia e outros países socialistas ajudaram muitíssimo mais!

Naquele tempo os impostores e oportunistas eram mais do que muitos. Alguns foram denunciados com provas evidentes. Outros passaram pelos pingos da chuva e chegaram ao topo. Nito Alves foi denunciado antes do 11 de Novembro de 1975. O jornal Diário de Luanda denunciou as suas manobras para controlar as estruturas do Poder Popular. Não houve reacção. Já com o fato de ministro do Interior, o Diário de Luanda denunciou as perseguições selváticas aos membros das Comissões Populares de Bairro que não se submeteram. Ninguém reagiu. 

Nito Alves proferiu o célebre discurso racista no Comissariado Provincial de Luanda. E o Diário de Luanda saiu em defesa dos militantes do MPLA atacados. Mais do que atacados, perseguidos e ameaçados de morte. O futuro líder visível do golpe de 27 de Maio de 1977 apelou à morte aos esquerdistas. Morte aos militantes da Revolta Activa. Morte aos membros da Organização Comunista de Angola (OCA). Atacou as e os angolanos brancos e mestiços com um discurso de racismo primário. Tínhamos poucos quadros e ainda ficámos com menos. Entre presos, eliminados e os que se retiraram preventivamente, o MPLA perdeu militantes muito valiosos.

Em Dezembro de 1975 já ninguém tinha dúvidas de que impostores e oportunistas de toda a espécie se preparavam para tomar o poder pela força. Com a aprovação da Lei do Poder Popular, no início de 1976, toda a gente percebeu que Nito Alves tinha como objectivo controlar as organizações de base e o Departamento de Organização de Massas (DOM), onde colocou a sua companheira Sita Vales. Com a feroz repressão sobre “esquerdistas” e desalinhados, só não percebeu que o golpe estava em marcha, quem não quis.

Apesar dos alertas e denúncias do Diário der Luanda, ninguém reagiu. Ou melhor, reagiu o ministro da comunicação social, João Filipe Martins. Demitiu os jornalistas que dirigiam o Diário de Luanda. O jornal era a “menina dos olhos” do Presidente Agostinho Neto. E ele só percebeu que o projecto estava ao serviço dos fraccionistas, quando telefonou pelo número da direcção do jornal (exclusivamente usado para falar com o líder) e foi atendido pelo novo director, um ajudante de Sita Vales. De jornais apenas sabia que o papel era bom para embrulhar jinguba torrada e outras mercadorias. Não foi por acaso que colocaram Neto “aqui onde não sinto a chuva nem oiço o vento”, por razões de segurança!

Nito Alves foi preso e respondeu ante um tribunal marcial. Escreveu um longo depoimento do qual extraio esta parte: “Queríamos acabar com os desvios de Neto e com o poder dos dirigentes burgueses. Se o presidente resistisse era morto.”

Pedro Fortunato: “O comandante Monstro Imortal estava incumbido de proceder à prisão dos dirigentes que deveriam ser afastados. E ia encabeçar a delegação encarregada de apresentar as nossas reivindicações ao Presidente Neto. Caso ele rejeitasse, era detido pelo Monstro Imortal para ser depois exilado num país à sua escolha (…). Ficou decidido fazer o golpe de Estado. As unidades militares contactadas sairiam para a rua e a população era convocada para uma manifestação. Tínhamos elementos infiltrados entre as massas para agitar. A finalidade do envolvimento popular era encobrir a nossa verdadeira intenção, que era o golpe de Estado militar. Os membros do governo eram depois divididos entre a direita, os moderados e a ala esquerda. Mas só era considerado de esquerda, o ministro Aires Machado”. 

Rui Coelho, professor, foi preso em Luanda por envolvimento no golpe. Disse no seu depoimento: “Defendemos que o MPLA deve estar ligado ao Partido Comunista da União Soviética. Confesso que estou convencido da existência de anti-sovietismo a nível do aparelho de Estado e do MPLA. Colaborei na elaboração das teses que Nito Alves escreveu para apresentar em sua defesa ao comité central. Ele considera que o partido está dominado por forças direitistas, por social-democratas aliados aos maoistas (…)“Levei para Lisboa as provas do livro de poemas de Nito Alves e entreguei-as a Albertino de Almeida, o editor da obra em Portugal”. 

Betinho, meu estagiário na Rádio e futuro ministro da Educação caso os golpistas triunfassem. Fez um longo depoimento, do qual extraí esta parte: “Nesta reunião tentámos esboçar um plano para o caso de Nito Alves vir a ser expulso do Comité Central. Se viesse a dar-se esta eventualidade, prevíamos desencadear uma insurreição, que é o tal golpe de Estado, que deveria ter início em Malanje. Um levantamento de massas populares em Malanje e que ia culminar aqui em Luanda. Vários militares que nos apoiam, garantiram na reunião, que era possível desencadear o golpe de estado a partir dos seus quartéis”. 

Os arquivos do MPLA e da Presidência da República têm todos os documentos relativos ao 27 de Maio de 1977. Todos os depoimentos dos membros da direcção política e militar do golpe. Gente desqualificada, paga à peça, publicou vários livros sobre o acontecimento, repletos de mentiras e falsidades. Ninguém desmente. É legítimo concluir que essas mentiras servem os interesses de quem as deixa circular sabendo que são mesmo mentiras. Porque servem para denegrir a figura do Presidente Agostinho Neto. A quem servem estes crimes? A quem paga às e aos mentirosos. E a quem não desmente.

Francisco Queiroz afirmou durante a apresentação da maqueta de um “memorial” às vítimas dos conflitos políticos: “Tratando-se de um processo que teve vítimas é natural que hajam reacções contrárias (…) o propósito, desde o início, foi o de reconciliar todas as pessoas e fazer com que não se lembrassem das coisas más do passado, para afastar sentimentos de vingança, de retaliações ou então, impedir o apontar de dedos”.

Se alguém na direcção do MPLA desconhece que nunca militantes ou dirigentes do partido manifestaram sentimentos de vingança, de retaliação ou apontaram os dedos aos implicados no 27 de Maio, então não merece sequer ser membro do partido. Se alguém da direcção do MPLA acredita que entre os seus antecessores existia alguém contra a reconciliação nacional e punha na pauta política as coisas más do passado, então nunca mereceu sequer aproximar-se do partido. Se alguém na direcção do MPLA acha que as Heroínas e os Heróis que enfrentaram os golpistas e os derrotaram são censuráveis, então estamos perante o triunfo dos golpistas, 47 anos depois.

O chefe deste golpe palaciano, destas provocações sem nome, chama-se Francisco Queiroz. Não interessa saber quem está por trás dele, para além de quem já se pronunciou a favor de semelhantes golpadas e deu a cara. O que conta é isto: A um mês das eleições está em marcha uma operação para desacreditar o MPLA, destroçar a unidade no seio do partido, apontar o dedo a dirigentes e militantes do passado que construíram a Angola que hoje temos. Um ministro do Executivo apoiado pelo MPLA meter o 27 de Maio na campanha eleitoral é um crime contra o MPLA. 

Francisco Queiroz tem de ser travado na sua golpada. Ontem já era tarde. A direcção do MPLA tem o dever de exigir que o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos divulgue imediatamente quantas certidões de óbito foram emitidas até hoje. Quantas famílias reclamaram seus membros desaparecidos. Porque as mentiras e falsificações apontam para dezenas de milhares de mortos. Ele que diga às e aos angolanos quantos são, até hoje!

A direcção do MPLA tem que exigir ao senhor Francisco Queiroz que diga ao Povo Angolano se os comandantes, funcionários do Estado e centenas de pessoas anónimas assassinadas pelos golpistas são vítimas ou carrascos. Tem de dizer ao Povo Angolano se os membros da direcção política e militar do golpe de estado de 27 de Maio são vítimas ou assassinos. 

Tem de dizer ao Povo Angolano se as vítimas dos conflitos políticos são apenas os seus amigos e companheiros de golpe. Sim, ele deu uma entrevista onde confessou ter sido detido por estar ligado aos golpistas. Ele que diga se está entre os falsificadores que negam a existência do golpe de estado de 1977. A direcção do MPLA tem de exigir ao titular do Poder Executivo que demita imediatamente o senhor Francisco Queiroz. E no primeiro dia da campanha eleitoral, o cabeça de lista do MPLA tem de declarar à comunicação social que esse senhor já não faz parte do partido. Expulso, por clara e indesmentível traição.

Podem não fazer nada. Podem assobiar para o lado. Em 1976, quando denunciei os golpistas do 27 de Maio de 1977, eu fui demitido da direcção do Diário de Luanda e acusado de “sabotador do processo produtivo”. Agora não podem demitir-me de nada. Não podem chamar-me sabotador. Mas podem fingir que não percebem a golpada. Desde já declaro que desta vez, dou as mãos com que escrevo para estar enganado. Para não ter razão.

*Jornalista

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