Daniel Oliveira* | TSF | opinião
Daniel Oliveira dedica a crónica desta terça-feira aos media e lembra que, à semelhança do que está a acontecer com os incêndios e a guerra na Ucrânia, quando a pandemia começou o país também ficou cego para tudo o resto.
"No início sabia-se pouco e exagerou-se na dose, que é compreensível. Depois fomos aprendendo a ser mais racionais. Um dia, à distância, faremos um balanço dos acertos e falhanços, do preço que pagámos pelo medo e do preço que outros pagaram pela incúria, das marcas que a pandemia deixou na aprendizagem das crianças, na socialização dos jovens e na saúde mental de todos. Mas há um balanço que já podemos fazer: a forma como a comunicação social lidou com a pandemia", recorda.
O jornalista concorda que o número de casos a abrir os jornais todos os dias pode ter contribuído para as cautelas, mas também defende que essa escolha editorial destruiu milhões de pessoas emocionalmente e "polarizou a sociedade" por não haver espaço para a "ponderação de valores".
"Na linha da frente, baixas, inimigo. Nas metáforas e na forma como os jornalistas vestiram a farda, a pandemia foi tratada como uma guerra e teve efeitos na psicologia coletiva próximos de uma guerra. Diz-se, por humor negro, que Putin devia receber o Prémio Nobel da Medicina. É verdade que grande parte da população já estava vacinada, mas só quando ele entrou pelo Donbass dentro é que, de um dia para o outro, a Covid desapareceu dos telejornais. A saúde pública voltou a ser um assunto maçador, os números de infetados voltaram a ser estatística e os médicos e epidemiologistas, que tinham conquistado o estatuto de estrelas mediáticas, foram empurrados por generais e especialistas em relações internacionais para fora do palco", defende Daniel Oliveira.
Apesar de concordar com a relevância da pandemia e da guerra, que merecem "muita atenção mediática", o jornalista considera que tantos meses de "cobertura monotemática" fizeram quase tanto mal como o vírus.
"A nossa exaustão, como uma vacina, foi tirando força a esse vírus mediático", atira.
Daniel Oliveira refere também que o negócio ligado às empresas de media não pode depender apenas das notícias de cada dia.
"Há uma tragédia humana aqui, um escândalo acolá, mas é preciso uma âncora que agarre as pessoas ao medo, à raiva, à emoção, aquelas coisas que garantem a tensão apaixonante. A guerra cumpriu esta função. Durante dois meses só vimos a Ucrânia", lembra.
Tal como as outras doenças desapareceram com a pandemia, as outras guerras desapareceram com a invasão.
"Os jornalistas voltaram a vestir a farda e a guerra foi tratada com a simplicidade de uma pandemia. Antes era contra o vírus, agora é contra a Rússia e o moralismo voltou a tomar o lugar da informação, sem espaço para dúvidas adversativas ou complexidades. A bandeira ucraniana tomou o lugar da máscara, os mísseis e as sanções o lugar das vacinas. Pelo menos as metáforas militares, essas, voltaram a fazer sentido", afirma o jornalista.
Parece que o vírus desapareceu, mesmo que continue a andar por aí. E só os que ficaram na "moda mediática" do ano passado é que querem saber. Contudo, para Daniel Oliveira, os três meses com 24 horas por dia de guerra cansaram ainda mais.
"Descobrir onde fica Sloviansk ou Mariupol é ainda mais difícil do que perceber o que é o índice de transmissibilidade ou as vacinas de RNA mensageiro. A guerra, tão mortífera e certa como antes, foi dando lugar a outros temas. Mesmo a tempo vieram os incêndios", diz.
Agora o destaque mediático vai para os incêndios que ainda não foram tão trágicos como os de 2017, mas "quem não tem cão caça com gato".
"Durante uns dias deixou de haver guerra. Houve incêndios de manhã à noite nas televisões, que dedicaram 24 horas por dia à pandemia, à Ucrânia e até 24 horas por dia à tragédia de uma criança que morreu por maus-tratos. Este jornalismo monotemático não resulta da consciência da importância de cada tema. Pelo contrário, desiste de selecionar o que é importante para lhe dar destaque, sem ignorar tudo o resto", conta Daniel Oliveira.
Se estivermos emocionalmente viciados num tema, vamos consumi-lo sem moderação. Algo que, para o jornalista, nos faz mal.
"Deixamos de ter noção da importância relativa das coisas, que é uma das funções de estarmos informados. Ficamos menos ponderados e equilibrados e impomos doses emocionais impossíveis de gerir", defende.
Por fim, refere que quem se quer salvar de toda esta cobertura monotemática desiste de estar informado.
"Quando cada coisa é, à vez, a única coisa que existe tudo se torna inconsequente. Quem governa conta com isso. Sabiam que a pressão que se fez para mudar tudo na floresta em 2017 não continuaria em 2018 e 2019. Se damos tudo a cada momento, não nos resta atenção e energia para dar alguma coisa no resto do tempo. Este jornalismo faz-nos mal e faz-nos mal porque já não é bem jornalismo, é só um negócio", acrescenta o jornalista.
*Texto redigido por Cátia Carmo
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