Nenhuma destas crianças imagina o esforço que a sua família faz para que possa ter ali um caderno e um lápis, pequeno-almoço, almoço e lanche, roupa ou a higiene possível.
Jorge C.* | AbrilAbril | opinião
Precipitam-se pelas ruas como formiguinhas, pela mão dos pais, numa mistura de ansiedade e entusiasmo. Mochilas às costas, os olhos a libertarem-se lentamente dessa violência que é acordar cedo, o corpo ainda a resistir e a gritar «não quero ir para a escola». São o vendaval da minha manhã. Todos os anos, no regresso, confesso-lhes sempre, com a minha alegria, que já sentia falta do alvoroço junto da escola que também foi minha (que é nossa).
Há dias, antes deste glorioso primeiro dia de aulas, numa dessas lojas de retalho onde tudo se compra a granel, os corredores eram insuficientes para o frenesim. Os pais, exaustos e impacientes, faziam um esforço hercúleo para transparecer calma e confiança. As pequenas criaturas, de olhos deslumbrados, queriam tudo, em todas as cores e em todos os tamanhos, transformando o economato em sonho ou brinquedo (felizes os que podem).
À minha frente, na fila para o pagamento, um rapazito rabino, com ar de Os Quatrocentos Golpes, pendurava-se no carrinho das compras, na vertigem do acidente. A mãe segurava na carteira e procurava diligentemente uns papéis. Entre a traquinice e a meninice, o puto lembrou-me tantas crianças com quem fui criança (o Tareco, o Spot, o Soviético) e que, tal como ele, viviam esse dilema de querer ser criança e ter de enfrentar uma realidade bem mais difícil do que a de outras crianças da escola – aquelas que, como eu, podiam.
Na caixa, a mãe pede ao trabalhador para descontar cupões diferentes, vindos de outras compras de outras grandes superfícies (a lembrar a circulação do dinheiro nas fábricas de outros tempos). O cartão passa e ela respira de alívio (mais ou menos), sempre com o semblante fechado, que o menino vai ignorando, mas não por muito mais tempo. No primeiro dia de escola, vai lembrar-se de tudo o que lhe foi recusado, do «a mãe não tem dinheiro para isso» e da abundância que não chega a todos.
Claro que tudo se dilui no intervalo, na alegria bruta das brincadeiras parvas, no berreiro dos corredores, na correria. Esta imensa alegria é insubstituível e mantém-nos temporariamente alheados da violência que pais, professores, auxiliares e todos nós, na verdade, sofremos para que eles possam ter um mínimo de acesso a uma ferramenta que tenta atenuar a profunda desigualdade em que nascemos – a escola pública – e que nem assim é suficiente.Até bem mais tarde, nenhuma destas crianças se vai aperceber de quem é a tutela da sua escola, quem define os programas, quem paga os salários e que tipo de salários são pagos àqueles que garantem o funcionamento regular da escola. Nenhuma destas crianças imagina o esforço que a sua família faz para que possa ter ali um caderno e um lápis, pequeno-almoço, almoço e lanche, roupa ou a higiene possível. Nenhuma delas imagina a dificuldade em encontrar soluções de transporte e de acompanhamento depois das aulas. Nenhuma criança é confrontada com o problema da colocação dos seus professores que, por vezes, aos 60 anos são obrigados a ir para escolas a centenas de quilómetros das suas famílias.
Mas, mesmo ignorando tudo isto, estas crianças serão vítimas deste modelo social e económico em que a diferença de salários, o investimento nas instalações da sua escola, o material disponível, o número de alunos por turma, os transportes, a habitação, as refeições e os tempos-livres cavam um fosso colossal entre elas. O acesso ao ensino não é igual para todas as crianças.
Sem sentir as dificuldades que as famílias não conseguem esconder, sem sofrer sem saber porquê com a tensão que a falta de dinheiro provoca, com materiais disponíveis e com estrutura familiar para suportar o horário escolar, as idas e as vindas da escola, qualquer criança tem uma oportunidade muito mais eficaz no seu desenvolvimento e um horizonte muito mais nítido do que todas as outras que diariamente se confrontam com o empobrecimento imparável de toda a sua realidade familiar e social. E por mais que a infância de hoje não seja a de Gaitinhas ou Gineto, estes miúdos de olhar deslumbrado por todas as maravilhas que o mundo tem para lhes oferecer não serão por muito mais tempo impermeáveis à dureza dessa diferença, à forma como o mundo os irá condicionar e dividir.
É, também, a escola que nos traz a possibilidade da consciência. Se sempre que passarem por nós nos lembrarmos da responsabilidade que temos com eles (imagino Holden Caulfield, em À Espera No Centeio, a tentar salvar todas as crianças da queda nesse precipício que é a adultícia), uma responsabilidade de lutar por melhores salários, pela gratuitidade dos manuais escolares, pelo fim da precariedade, por uma rede de transportes gratuita e ampla, por refeições dignas, pelas 35 horas, pela contratação coletiva, pelo financiamento necessário para as autarquias enfrentarem a transferência de encargos na área da educação, pelo combate à especulação imobiliária e à escalada de preços, pela recuperação de setores estratégicos como o da energia, então talvez aí a alegria destas crianças perdure, se universalize e seja um reflexo de um horizonte nítido para todos.
Por ora, resta-nos a inocência das brincadeiras coletivas, da descoberta, do encanto por todas as coisas, da amizade. Resta-nos a descrição exaustiva de cada detalhe novo que apanharam ao longo do dia. Resta-nos o cansaço e a ternura do fim do dia, destes dias que vão ficando cada vez mais curtos. Resta-nos, enfim, a confiança inabalável de que os corredores da escola pública são o primeiro dia do resto da nossa vida.
*O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)
Imagem: Mário Cruz / Lusa
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