José Gusmão* | Setenta e Quatro
A geringonça e a sua política de recuperação de rendimentos foi para o PS um parentesis. Na primeira oportunidade, o PS acabou com qualquer simulacro de convergência e regressou à política do extremo-centro: à austeridade e à estratégia de empobrecimento.
O atual contexto político é marcado pelo agravamento da crise social e, particularmente, pela crise dos rendimentos resultante pelo nível de inflação e a ausência de atualização salarial. Enquanto os lucros e dividendos das grandes empresas aumentam, também graças à perda real dos salários, quem vive do seu trabalho pode vir a perder o equivalente a mais de um mês salário até ao fim do ano.
A somar-se a esta colossal transferência de rendimento do trabalho para o capital, o país assiste ainda à degradação de serviços públicos essenciais, com destaque para o colapso do Serviço Nacional de Saúde, que se reflete também nos rendimentos do trabalho, uma vez que já está a conduzir a um aumento das despesas das famílias com cuidados de saúde. Das que podem, bem entendido.
Aqui chegados, é impossível não fazer um exercício de memória sobre as razões que levaram ao chumbo do Orçamento para 2022. Na altura, a esquerda confrontou o Governo PS com o sistemático adiamento das soluções imprescindíveis para salvar o SNS e com a indisponibilidade do PS para romper com o quadro de relações laborais saído do Governo de Passos Coelho, quadro esse que determina em boa medida a degradação dos salários reais, a par do orçamento que estagnou os salários da função pública.
A indisponibilidade do PS para qualquer compromisso sobre estas duas matérias levou a uma ruptura. Independentemente das explicações dos 3 partidos, BE e PCP foram duramente penalizados. O PS conquistou a maioria absoluta e acabou por aprovar um orçamento que determina o maior corte de salários desde 2012 (possivelmente, ainda maior, dependendo de como evoluir a inflação), com as inexplicáveis abstenções do PAN e Livre, justificadas com medidas abaixo de simbólicas.
A penalização eleitoral da esquerda será, para muito boa gente, para esquecer este processo, mudar de assunto e seguir em frente. É uma postura respeitável, mas penso que perdemos em fazer deste tema um tabu. Recentemente, numa notícia do Expresso é um ex-governante do PS que faz o balanço crítico do conteúdo daquelas negociações. O balanço não podia ser mais lapidar: “O Bloco tinha razão em tudo”. A mesma frase poderia ter sido dita sobre o PCP, digo eu. A revitalização da contratação coletiva, a abertura de vagas em exclusividade para médicos, a valorização das carreiras da saúde teriam permitido combater muitos dos problemas a que hoje assistimos.
Em vez de negociar essas medidas, o PS preferiu apostar na chantagem e na dramatização e hoje confessa a sua impotência para resolver a crise social, recuperando a retórica dos sacrifícios e da “responsabilidade orçamental”. O mesmo discurso que, com Passos Coelho, lançou o país na recessão económica e crise social e – convém não esquecer – num aumento exponencial da dívida pública. A geringonça e a sua política de recuperação de rendimentos foi para o PS um parentesis. Na primeira oportunidade, o PS acabou com qualquer simulacro de convergência e regressou à política do extremo-centro.
O regresso à austeridade e à estratégia de empobrecimento é ainda mais grave no contexto de aumento das taxas de juro do BCE e regresso às regras orçamentais. Mesmo que o BCE mantenha os juros da dívida público controlados (o que não acontecerá sem condições), os orçamentos das famílias serão ainda mais sobrecarregados. E o cumprimento das regras orçamentais apenas irá servir para extremar a política que o Governo escolheu, mesmo quando as mesmas estavam suspensas.
O cumprimento dessas regras, associado à ausência de uma aposta nos serviços públicos, implicará a continuação da estratégia da concessão/privatização do SNS com ainda mais dinheiro a ir para os privados, e ainda menos dinheiro para o público. Um interminável ciclo vicioso de desinvestimento/privatização/desinvestimento. A demissão de Marta Temido nada faz para inverter essa lógica, sobretudo se for verdade que a escolha do seu sucessor será concertada com o Presidente. A gravidade de todo este cenário representa uma reviravolta histórica: a traição do legado de António Arnaut, um socialista de toda a vida. Um cenário catastrófico, mas não inevitável.
Revisitar o Orçamento que está a presidir à atual crise é revisitar as opções desastrosas de um documento que chegou a ser apresentado como “o orçamento mais à esquerda de sempre”, um artigo de marketing que chega a parecer uma piada de mau gosto. Mas é também pensar em alternativas que continuam disponíveis. Investir no SNS, renovando a aposta na provisão pública, que foi um modelo de sucesso durante décadas. Proteger os salários, controlando a inflação onde ela está a ser gerada, nos preços e lucros do setor da energia. Lidar com as causas estruturais do nosso endividamento, aproveitando a exigência climática para romper com uma década de mínimos históricos de investimento.
Meio ano de maioria absoluta chegou e sobrou para mostrar o que o país perdeu quando o PS ficou de mãos livres. É por isso que é pena que, fora ex-governante anónimos, haja tão poucas vozes críticas dentro do PS. Quanto mais tempo passar sem que se reconheça o beco-sem-saída em que o Governo está a colocar o país, mais difícil será construir alternativas com futuro. E as convergências que as suportem. Ontem já era tarde.
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