quinta-feira, 8 de setembro de 2022

UCRÂNIA: A INVASÃO DO CAPITAL

Michael Roberts*

Este importante artigo aborda uma questão central da situação da Ucrânia: a da planificada -e já com décadas - rapina da totalidade das suas riquezas por parte do grande capital ocidental. A aquisição de milhões de hectares de terras férteis da Ucrânia - entre outros bens estatais - provocou em parte o conflito. E enquanto o pais vai sendo devastado, a “Conferência de Recuperação da Ucrânia” reunindo EUA, União Europeia, Grã-Bretanha, Japão e Coreia do Sul confirmou o programa de privatização generalizada e de liquidação de direitos que é a receita das multinacionais, da corrupta oligarquia “nacional”, e do neo-nazi governo fantoche ao seu serviço.

Na semana passada, os credores privados estrangeiros da Ucrânia acederam à solicitação do país de congelar durante dois anos os pagamentos de cerca de 20 mil milhões de dólares de dívida externa. Isto permitiria à Ucrânia evitar a insolvência de empréstimos contraídos no estrangeiro.

Ao contrário de outras “economias emergentes” que lutam na frente da dívida, parece que os detentores de obrigações estrangeiras estão felizes por ajudar a Ucrânia, embora seja só por dois anos. A medida poupará à Ucrânia 6 mil milhões de dólares durante o período, ajudando a reduzir a pressão sobre as reservas do banco central, que caíram uns 28% ano após ano, apesar da maciça ajuda estrangeira.

A economia ucraniana está, como era de esperar, num estado desesperado. Espera-se que o PIB real diminua mais de 30% em 2022, e a taxa de desemprego é de 35% (Constantinescu et al. 2022, Blinov e Djankov 2022, Banco Nacional da Ucrânia 2022).

“Estamos gratos pelo apoio do sector privado à nossa proposta em tempos tão terríveis para o nosso país”, respondeu Yuriy Butsa, Vice-Ministro das Finanças da Ucrânia, “Gostaria de salientar que o apoio que recebemos durante esta transacção é difícil de subestimar…”. Continuaremos plenamente envolvidos com a comunidade investidora no futuro e aguardamos com expectativa a sua participação no financiamento da reconstrução do nosso país após a vitória da guerra”, disse Butsa.

Aqui Butsa revela o preço a ser pago por esta generosidade limitada por parte dos credores estrangeiros: a aceleração da exigência por parte das multinacionais e dos governos estrangeiros de assumir o controlo dos recursos da Ucrânia e de os colocar sob o controlo do capital estrangeiro sem qualquer restrição e limitação.

Numa publicação anterior, descrevi o plano para privatizar e entregar os vastos recursos agrícolas da Ucrânia a multinacionais estrangeiras. Durante vários anos, uma série de relatórios da Economic Watch do Instituto Oakland documentaram as aquisições estrangeiras. Grande parte do que se segue provém destes estudos.

A Ucrânia pós-soviética, com os seus 32 milhões de hectares aráveis de terras negras ricas e férteis (conhecidas como “cernozëm”), possui o equivalente a um terço de todas as terras agrícolas da União Europeia. O “celeiro da Europa”, como é chamado, tem uma produção anual de 64 milhões de toneladas de cereais e sementes, entre os maiores produtores mundiais de cevada, trigo e girassol (para este último, a Ucrânia produz cerca de 30% do total mundial).

Como expliquei, a aquisição planificada dos recursos da Ucrânia desencadeou parcialmente o conflito: a guerra semi-civil, a revolução colorida Maidan e o referendo da Crimeia para se tornar parte da Rússia. Como o Instituto Oakland salientou, para limitar a privatização desenfreada, foi imposta em 2001 uma moratória sobre a venda de terras a estrangeiros. Desde então, a revogação desta regra tem sido um dos principais objectivos das instituições ocidentais.

Já em 2013, por exemplo, o Banco Mundial concedeu um empréstimo de 89 milhões de dólares para o desenvolvimento de um programa de escrituras e títulos de propriedade necessários para a comercialização de terrenos propriedade do Estado e de cooperativas. Nas palavras de um documento do Banco Mundial de 2019, o objectivo era “acelerar o investimento privado na agricultura”. Esse acordo, denunciado na altura pela Rússia como uma porta traseira para facilitar a entrada das multinacionais ocidentais, inclui a promoção da “produção agrícola moderna…incluindo a utilização da biotecnologia”, uma aparente abertura para culturas geneticamente modificadas nos campos ucranianos.

Apesar da moratória sobre a venda de terras a estrangeiros, em 2016 já dez multinacionais agrícolas já tinham chegado a controlar 2,8 milhões de hectares de terra. Actualmente, algumas estimativas falam de 3,4 milhões de hectares nas mãos de empresas estrangeiras e de empresas ucranianas com fundos estrangeiros como accionistas. Outras estimativas chegam aos 6 milhões de hectares. A moratória sobre as vendas, que o Departamento de Estado dos EUA, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial tinham repetidamente exigido que fosse levantada, foi finalmente revogada pelo governo Zelensky em 2020, antes de um referendo final sobre a questão agendado para 2024.

Agora, com a guerra em curso, os governos e empresas ocidentais estão a intensificar os seus planos para incorporar a Ucrânia e os seus recursos nas economias capitalistas do Ocidente. A 4 e 5 de Julho de 2022, altos funcionários dos EUA, União Europeia, Grã-Bretanha, Japão e Coreia do Sul reuniram-se na Suíça para a chamada “Conferência de Recuperação da Ucrânia” (URC).

A agenda da URC centrou-se explicitamente na imposição de mudanças políticas ao país, nomeadamente “reforço da economia de mercado”, “descentralização, privatização, reforma das empresas estatais, reforma agrária, reforma da administração do Estado” e “integração euro-atlântica”.

A ordem de trabalhos foi na realidade um seguimento da Conferência de Reforma da Ucrânia de 2018, que salientou a importância de privatizar a maior parte do restante sector público ucraniano, afirmando que “o objectivo final da reforma é vender empresas estatais a investidores privados”, juntamente com o apelo a mais “privatização, desregulamentação, reforma energética, reforma fiscal e aduaneira”.

Queixando-se que “o governo é o maior detentor dos activos da Ucrânia”, o relatório afirma: “A reforma para as privatizações das empresas estatais há muito que devia ter sido feita, uma vez que este sector da economia ucraniana se tem mantido em grande parte inalterado desde 1991″.

A ironia é que os planos da URC para 2018 foram rejeitados pela maioria dos ucranianos. Uma sondagem de opinião pública concluiu que apenas 12,4% são a favor da privatização das empresas estatais, enquanto 49,9% se lhe opõem (outros 12% são indiferentes, enquanto 25,7% não respondem).

No entanto, a guerra pode fazer a diferença. Em Junho de 2020, o FMI aprovou um programa de empréstimo de 18 meses, no valor de 5 mil milhões de dólares, com a Ucrânia. Em troca, o governo ucraniano levantou a moratória de 19 anos sobre a venda de terras agrícolas estatais, após forte pressão das instituições financeiras internacionais. Olena Borodina da Rede Ucraniana de Desenvolvimento Rural comentou que “os interesses do sector agro-alimentar e dos oligarcas serão os primeiros beneficiários desta reforma…. isto apenas marginalizará ainda mais os pequenos agricultores e arriscar-se-á a separá-los do seu recurso mais valioso”.

E agora a URC de Julho reiterou os seus planos para uma aquisição de capital da economia ucraniana, com a total aprovação do governo Zelensky. No final da reunião, todos os governos e instituições presentes adoptaram uma declaração conjunta denominada Declaração de Lugano. Esta declaração foi complementada por um “Plano Nacional de Recuperação”, ele próprio preparado por um “Conselho Nacional de Recuperação” estabelecido pelo governo ucraniano.

O plano previa uma série de medidas favoráveis ao capital, incluindo a “privatização de empresas não críticas” e a “conclusão da empresarialização de empresas estatais, tais como a venda da empresa estatal ucraniana de energia nuclear EnergoAtom”. A fim de “atrair capital privado para o sistema bancário”, a proposta apelava também à “privatização dos bancos públicos” (bancos estatais). Procurando aumentar ‘o investimento privado e estimular o espírito empresarial a nível nacional’, o Plano Nacional de Recuperação apelou a uma ‘desregulação’ significativa e propôs a criação de ‘projectos catalizadores’ para desbloquear o investimento privado em sectores prioritários.

Num apelo explícito para reduzir as protecções laborais, o documento atacou as leis ucranianas favoráveis aos trabalhadores que restam, algumas das quais são um legado da era soviética. O Plano Nacional de Recuperação queixou-se de “legislação laboral ultrapassada que complica os processos de contratação e despedimento, regulamentação das horas extraordinárias”, e assim por diante. Como exemplo desta alegada “legislação laboral ultrapassada”, o plano apoiado pelo Ocidente queixou-se de que aos trabalhadores ucranianos com um ano de antiguidade é dado um “período de pré-aviso para despedimento” de nove semanas, em comparação com apenas quatro semanas na Polónia e na Coreia do Sul.

Em Março de 2022, o parlamento ucraniano adoptou legislação de emergência que permite aos empregadores suspender as convenções colectivas. Depois, em Maio, aprovou um pacote de reformas permanentes que isentam efectivamente a grande maioria dos trabalhadores ucranianos (os das empresas com menos de 200 empregados) da legislação laboral ucraniana. Documentos divulgados em 2021 mostram que o governo britânico instruiu os funcionários ucranianos sobre como convencer um público recalcitrante a renunciar aos direitos dos trabalhadores e a aceitar políticas anti-sindicais. Os materiais de formação queixaram-se de que a opinião popular sobre as reformas propostas era largamente negativa, mas forneciam estratégias de comunicação para levar os ucranianos a apoiá-las.

Enquanto os direitos dos trabalhadores serão eliminados na “nova Ucrânia”, o Plano Nacional de Recuperação visa ajudar as empresas e os ricos através da redução de impostos. O plano queixou-se que 40% do PIB da Ucrânia provinha de receitas fiscais, qualificando-o de “carga fiscal bastante elevada” em comparação com o exemplo da Coreia do Sul. Por conseguinte, o plano apelava à “transformação do serviço fiscal” e à “revisão do potencial de diminuição da parte das receitas fiscais no PIB”. Em nome da “integração na UE e acesso ao mercado”, propôs também a “eliminação de tarifas e barreira nem pautais nem técnicas para todos os produtos ucranianos”, ao mesmo tempo que apelou a “facilitar a atracção de IDE (investimento estrangeiro directo) para trazer as maiores empresas internacionais à Ucrânia”, com “incentivos especiais ao investimento” para as empresas estrangeiras.

Para além do Plano Nacional de Recuperação e do Briefing Estratégico, a Conferência de Recuperação da Ucrânia em Julho de 2022 apresentou um relatório preparado pela Economist Impact, uma empresa de consultoria de negócios que faz parte do Economist Group. O Ukraine Reform Tracker insistiu no “aumento do investimento directo estrangeiro” por parte das empresas internacionais, e não para investir recursos em programas sociais para o povo ucraniano. O relatório do Tracker salientou a importância de desenvolver o sector financeiro e apelou à “eliminação de regulamentações excessivas” e tarifas.

Apelou a uma “maior liberalização da agricultura” para “atrair o investimento estrangeiro e encorajar o espírito empresarial nacional”, bem como a “simplificações processuais” para “facilitar a expansão das pequenas e médias empresas” através da “compra e investimento em activos estatais”, tornando “mais fácil a entrada de investidores estrangeiros no mercado pós-conflito”.

O Ukraine Reform Tracker apresentou a guerra como uma oportunidade para impor aquisições por parte do capital estrangeiro. “O momento do pós-guerra pode representar uma oportunidade para completar a difícil reforma agrária ao alargar o direito de compra de terras agrícolas a entidades legais, incluindo as estrangeiras”, diz o relatório. “É provável que facilitar o caminho ao capital internacional para a agricultura ucraniana aumente a produtividade do sector, aumentando a sua competitividade no mercado da UE”, acrescentou.

“Uma vez terminada a guerra, o governo terá também de considerar reduzir substancialmente o envolvimento dos bancos estatais através da privatização do Privatbank, o maior credor do país, e do Oshchadbank, que trata das pensões e dos pagamentos sociais”.

Em outros lados, as políticas pró-capital oferecidas pelos economistas ocidentais semi-keynesianos são menos explícitas. Numa colecção recente do Centro de Investigação de Política Económica (CEPR), vários economistas propuseram políticas macroeconómicas para a Ucrânia em tempo de guerra. Neste artigo, os autores “sublinham desde já que a crise ucraniana não é um contexto para um típico programa de ajustamento macroeconómico, ou seja, não são as habituais exigências do FMI de austeridade fiscal e privatização”. Mas após muitas páginas, é evidente que as suas propostas são pouco diferentes das da URC. Como dizem, “o objectivo deve ser o de prosseguir uma desregulação ampla e radical da actividade económica, evitar o controlo de preços, facilitar a associação de mão-de-obra e do capital, e melhorar a gestão dos activos russos apreendidos e outros activos sancionados”.

A aquisição da Ucrânia pelo capital (principalmente estrangeiro) será assim concluída e a Ucrânia poderá começar a pagar as suas dívidas e a proporcionar mais lucros ao imperialismo ocidental.

*O Diário.info

Fonte: https://www.lahaine.org/mundo.php/ucrania-la-invasion-del-capital/ thenextrecession.wordpress.com

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