Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
A Ordem dos Advogados comunicou há duas semanas que, por decisão europeia, todos os advogados portugueses estão proibidos de prestar "serviços de aconselhamento jurídico", de forma direta ou indireta, ao governo e a quaisquer "pessoas coletivas, entidades ou organismos estabelecidos na Rússia".
Para além desta medida draconiana, incluída em mais um pacote de sanções decidido pelo Conselho Europeu, abranger implicitamente organizações russas que sejam opositoras de Putin - o que me parece mais um idiota tiro no pé da União Europeia -, resvala para perto de uma perigosa fronteira de violação de direitos até agora inquestionáveis.
Não é por acaso que a nossa Constituição afirma, no seu artigo 20.º, que "todos têm direito, nos termos da lei, a informação e consulta jurídicas".
Embora, na realidade, a justiça portuguesa funcione mal, como todos sabemos (e para os pobres e trabalhadores funciona ainda pior...) a intenção de princípio do Estado democrático que construímos é a de que o seu acesso deva ser para todos, sem discriminações: e apesar de isso ser só uma intenção que, na prática, muitas vezes não é cumprida, traça um objetivo que condiciona legislação, decisões e jurisprudência pela obrigação de tentar chegar a esse fito, e isso é bom pois aproxima-nos da boa justiça, em vez de nos afastar ainda mais.
Agora há, em forma de decisão europeia, uma discriminação concreta explícita, com força de lei, que abre uma hipotética via para que outras discriminações jurídicas possam vir um dia a ser admitidas.
Apesar de o comunicado da Ordem dos Advogados explicar que a proibição "não se aplica à prestação de serviços estritamente necessários ao exercício do direito de defesa em processos judiciais e ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva" (ou seja, em tribunal os advogados da União Europeia podem defender instituições russas), a verdade é que a falta de "aconselhamento jurídico" agora proibido a entidades russas viola necessariamente o direito à "informação e consultas jurídicas" que o preto no branco do texto constitucional português inequivocamente garante.
Ninguém se vai preocupar muito com isto, pois o alvo principal desta medida não mete pena a ninguém mas, na verdade, colateralmente, há certamente quem nada tenha a ver com a guerra, com Putin ou com a Ucrânia que vai sofrer com a medida, dada a interdependência, formada antes da guerra, de muitos negócios europeus com várias entidades e organizações russas.
Ainda mais importante do que isso: os responsáveis europeus pregam as virtudes da guerra na Ucrânia em nome da defesa da democracia ocidental ou liberal (há aqui uma diferença ideológica, mas que não vem agora ao caso) contra a arbitrariedade, autoritarismo e a ausência de um verdadeiro Estado de Direito na Rússia que ameaçaria toda a Europa... E, no entanto, parte das medidas que aplicam para ajudar a combater a Rússia são antidemocráticas (por exemplo, na proibição e cancelamento de acesso aos órgãos de comunicação social russos), arbitrárias (por exemplo, nos países bálticos, na Polónia e na Finlândia foi proibida a entrada a qualquer turista russo, nos outros países isso não acontece), autoritária (por exemplo, esta medida impede os advogados de escolher livremente os seus clientes) e violadoras de um verdadeiro Estado de Direito (a prática da justiça, com esta decisão, passa a incluir critérios discriminatórios, por nacionalidade, o que é xenofobia pura).
Como é que a União Europeia pode sustentar, depois de aplicar medidas como estas, o procedimento que abriu, com boas razões, ao governo da Hungria?
Como pode acusar o governo húngaro de controlar politicamente o poder judicial se a União faz o mesmo com esta norma? Como pode acusar Viktor Orbán de limitar a liberdade dos meios de comunicação social se a senhora Ursula von der Leyen, logo no primeiro dia da guerra, proibiu o trabalho e a visualização de meios de comunicação social russos?
Este "jardim", como a semana passada o neocolonialista, talvez racista e, infelizmente, responsável pelas Relações Exteriores da União, Joseph Borrell, qualificou a Europa para a comparar com a "selva" com que crismou "a maioria do resto do mundo" está, ao longo desta guerra, a perder a suposta superioridade moral que as supostas democracias europeias ocidentais dizem possuir para justificarem a recusa em procurar um caminho para a paz. Essa degradação vai ter um futuro custo político grave, de que todos seremos vítimas.
*Jornalista
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