sábado, 8 de outubro de 2022

AI TIMOR… AS MÁFIAS QUE OS TENTAM CALAR

Paulo Barriga | Sábado | em 01 de Outubro de 2022

Nos últimos dois meses chegaram a Portugal milhares de timorenses iludidos com o eldorado europeu. Encontraram fome, habitações insalubres e precariedade. Muitos ficaram a viver na rua.

É em Timor Leste que as redes de tráfico humano e de trabalho ilegal, que operam nos campos do Alentejo, tanto em Alqueva como em Odemira, têm agora os seus interesses focados. O Alto Comissariado para as Migrações declara que só nos últimos dois meses identificou 650 cidadãos timorenses recém-chegados. Mas as organizações de solidariedade social que atuam no terreno acreditam que devem ser dois mil. Pobres, na esmagadora maioria, chantageados e ameaçados, ficam reféns dos “patrões” que se prontificaram a recebê-los em Portugal, quase sempre em condições deploráveis. Muitos acabam sem abrigo.

É no primeiro andar de um casinhoto que faz esquina entre o largo da Cruz Nova e a rua de Mértola, em Serpa, que estão Anjo e Ângela. São namorados. Ele tem 22, ela 23 anos. Ele fez o segundo ano de Economia, enquanto “ganhava umas coroas” como taxista, em Díli. Ela abdicou dos estudos no Secundário, em troca de um lugar de caixeira numa loja da capital timorense. “A vida lá é um inferno, há pouco dinheiro, não há condições, não há futuro”, dizem, sobrepondo-se um ao outro. Em julho último decidiram rumar a Portugal. “Foi um erro”, lamentam agora.

Um erro que começou logo em território timorense, quando o casal se viu obrigado a “procurar um amigo” que se dispusesse a financiar a viagem e a respetiva papelada: cerca de 4 mil dólares [4.147 euros], cada um. “É muito dinheiro”, reconhece Ângela, enquanto faz contas à vida, “temos de arranjar trabalho para lhe pagar depressa”. É que o suposto “amigo” é um dos muitos agiotas que operam em Timor Leste, praticando juros de 100% sobre os empréstimos. “Se tu pedes mil, tens de pagar 2 mil... é assim que as coisas funcionam.” Num país onde o ordenado mínimo ronda os 129 euros e onde o emprego fora da esfera do Estado é uma miragem.

Na maioria dos casos relatados à SÁBADO, que foram mais de 20, o dinheiro nem chega a sair dos bolsos dos “banqueiros do povo”. Os financiadores são igualmente proprietários ou associados de agências de viagens. Entidades às quais a lei timorense permite que se constituam também como “angariadoras de mão de obra”. É o cocktail perfeito para o tráfico humano. Segundo o Global Organized Crime Index, “Timor Leste é um país de origem, trânsito e destino do tráfico de seres humanos. A maioria dos casos é de natureza transnacional, sendo Timor Leste o país de origem.”

De acordo com o Serviço de Registo e Verificação Empresarial existem neste momento 170 agências de viagens ativas em Timor Leste. E foi uma delas, a Agência Justin, que tratou do voo que trouxe Anjo e Ângela até Lisboa. A passagem dele custou 2.865 dólares [€2.972]. O bilhete dela, 3.100 dólares [€3.216]. “Não sabemos porquê. Talvez seja da papelada.” Embora os cidadãos timorenses não careçam de visto de entrada em Portugal para estadas inferiores a 90 dias. E foi nessa condição que, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, chegaram a Portugal desde o dia 1 de julho 2.627 timorenses (1.001 permanecem em território português, fazendo crescer uma comunidade que, em 2021, rondava apenas as três centenas de cidadãos).

A raposa na capoeira

Anjo e Ângela partilham um quarto minúsculo com outros três compatriotas. “É uma sorte”, comentam. Nas restantes duas acomodações ocupadas por timorenses, o rácio é bem diferente. Um quarto alberga nove pessoas, o outro 10. Amontoadas em beliches tão chegados uns aos outros que se torna impossível discernir a miséria, na sua verdadeira grandeza. A luz é mínima e apresenta-se coada por uma atmosfera saturada pelos odores corporais, pelo verdete que cobre as paredes, pelo sarro de tabaco velho, pela memória de frituras recentes. Há lixo acumulado em cada canto. O chão pega-se à sola dos sapatos. A única casa de banho fica no piso térreo, junto à entrada, e é tão desoladora quanto o estado de espírito do jovem casal timorense: “Isto está mau.”

Pois está, mas não para todos. Basit, 24 anos, natural de Caxemira, no Paquistão, é o “patrão” da casa. Economista de formação, partilha o quarto sobrante com um conterrâneo, e tem objetivos bem delineados: “Gostava de abrir um restaurante paquistanês em Moura”. A restante família está na Bélgica, onde gere uma rede de mercearias e supermercados paquistaneses. Basit veio para Portugal para “fazer dinheiro”. Criou a empresa Tarefa Momentânea e começou a subcontratar mão de obra para trabalhar nas plantações do Alqueva. Desde 30 de julho tem contratos abertos com 16 dos 24 timorenses a quem aluga colchão e teto. A 100 euros por mês. À cabeça.

Entre eles está Anjo e Ângela. Tal como os demais, os membros do casal assinaram contratos laborais a termo incerto com a empresa de Basit, a Tarefa Momentânea. Mas nos últimos dois meses apenas trabalharam uma semana nas vindimas em Albernoa, Beja. Tendo-lhes sido prometido o vencimento de 280 euros. Até à data, nada receberam.

Basit justifica-se com o facto de o “patrão português”, que é de Serpa e leva apenas o nome de Luís, não ter trabalho. E também se queixa da falta de produtividade dos timorenses: “Não estão habituados a trabalhar, não sabem fazer nada. Passam o tempo sentados. Eu também sou um ser humano, sei as dificuldades deles, mas assim não dá.”

Entretanto, em Timor Leste, as redes mafiosas de empréstimos usurários começam a impacientar-se. A SÁBADO teve acesso a mensagens de timorenses que, por falta de pagamento, estão já a ser alvo de ameaças sobre o único bem que deram como garantia: a família que lá ficou. Já em Portugal, desde o início da vaga de migração timorense, o SEF participou ao Ministério Público nove casos graves: cinco por indícios de auxílio à imigração ilegal e quatro por indícios de tráfico de pessoas.

Rua Ramon de La Féria, 39, Serpa

Vista de fora, a moradia tem tudo para ser uma típica casa alentejana. Bem cuidada. A parte habitacional do nº 39 está sobrelotada com imigrantes nepaleses. Dezenas deles, encafuados em beliches, quase até ao teto. E esta é claramente a parte “digna” do prédio. No anexo da garagem, em apenas três quartos sem janelas exteriores, 25 timorenses recém-chegados. Três deles dormem no chão de vidraço, sem colchão nem manta, num habitáculo interior com menos de 9 m2.

Em comum, para além da fome, da falta de privacidade, têm uma agência de viagens timorense, a New Generation, e um patrão indiano, Goldi, proprietário da empresa de trabalho temporário Cascata Jovial, com sede na Rua Serpa Pinto, em Odemira.

Goldi é gerente de uma das 10 empresas com quem a agência New Generation diz “cooperar” em Portugal. E foi, de facto, Goldi quem recebeu estas pessoas em Lisboa, quem as colocou a trabalhar na apanha da pêra no Oeste e em Santa Vitória, Beja, e quem as largou à sua sorte neste casebre em Serpa. Ao todo, “receberam” 250 euros pelos serviços prestados. Aos quais o patrão subtraiu 110 euros para os papéis de legalização (apesar de a manifestação de interesse para obtenção de autorização de residência ser gratuita) e 100 euros para despesas de alojamento (mensalidade que não pagou ao proprietário). Há dois meses que estas pessoas sobrevivem com 40 euros. E sob a ameaça de despejo por parte da entidade proprietária: José Horta – Compra, Venda e Arrendamento de Imóveis.


As remessas dos imigrantes

“É um negócio em que todos ganham, menos estes desgraçados”, sublinha Alberto Matos, da Associação Solidariedade Imigrante. Ganha quem à margem da lei arrenda casas insalubres e em regime de sobrelotação (só o anexo do nº 39 rende 30 mil euros ao ano). Ganham as máfias que abrem e fecham, de uma hora para a outra, empresas de trabalho temporário e que retêm boa parte dos vencimentos contratados. Ganham a dobrar os banqueiros de rua que concedem empréstimos em Timor. E ganham as pseudoagências de viagens que “facilitam” a vinda destes jovens para Portugal a preços três vezes acima dos tabelados pelas companhias aéreas.

Ganham, e não é pouco. Só a New Generation “enviou” recentemente para Portugal “mais de mil timorenses”. O proprietário da empresa, Francisco Fernandes, declarou mesmo à agência noticiosa timorense, TATOLI, que a New Generation “tem sete pessoas em Lisboa para auxiliar os timorenses” e que “aluga por 17 mil dólares americanos [€17.647] uma residência permanente em Portugal para os trabalhadores”. O que não explicou é que cada pernoita em Lisboa chega a custar 30 euros por pessoa. Ou 900 euros por mês. E também ganha o governo. A Lei timorense permite e até incentiva que os agentes de viagens se constituam como angariadores de mão de obra. A imigração é um dos pontos fulcrais do programa governativo de Taur Matan Ruak. Não é para menos. As remessas dos imigrantes timorenses em 2021 ascenderam a 170 milhões de dólares [176 milhões de euros]. O trabalho é a segunda maior “riqueza” que Timor Leste exporta, logo a seguir aos carbonetos. Embora não haja dados concretos, estima-se que a diáspora timorense ronde os 39 mil cidadãos. Espalhados essencialmente pelo Reino Unido, Coreia do Sul, Austrália e Emirados Árabes Unidos.

O elemento estranho à equação é precisamente Portugal. Fenómeno recente, este que se começou a evidenciar logo após a visita de Marcelo Rebelo de Sousa a Timor Leste, em finais de maio. Na ocasião, o Presidente da República Portuguesa terá incitado os jovens timorenses a tentarem a sorte cá deste lado do mundo, onde há falta de mão de obra. Não é que as pessoas em Timor prestem especial atenção à atualidade política. Mas as agências de viagens/trabalho não perderam tempo e fizeram replicar as palavras do Presidente português em filmes publicitários que circularam nas redes sociais. A grande maioria dos timorenses contactados pela SÁBADO reconheceu que foi aliciada por filmes com as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa a incentivar os jovens a emigrarem. O Presidente diz que as suas palavras foram descontextualizadas e que se estava a dirigir a desempregados com estudos e conhecedores da língua portuguesa.

Grupos violentos. Foi o rastilho para a recente vaga de imigrantes.

À SÁBADO, Marcelo Rebelo de Sousa desvaloriza: “Estava a pensar nos jovens já com estudos, desempregados, que fossem enquadráveis em Portugal pela língua e pelos seus conhecimentos.”

Tiro ao lado. As agências de viagens, como é o caso da New Generation, cujo principal acionista é conselheiro do recente Partido Os Verdes de Timor, usaram as palavras presidenciais como isco. Francisco Fernandes chegou mesmo a dizer que trabalha com a família em Portugal “para ajudar os timorenses a trabalharem fora da sua pátria. Por isso, a minha agência apoia jovens de diversos grupos, incluindo membros do 77”.

O 77 é um de entre os vários grupos consignados e enquadrados na Lei timorense como de “artes marciais e rituais”. Mas, na realidade, trata-se de grupos violentos que se defrontam entre si e que nos últimos anos têm espalhado o terror e o medo por todo o território de Timor Leste. Daí que a chegada recente a Portugal de elementos destes grupos, nomeadamente do 77 e do Persaudaraan Setia Hati Terate (PSHT) esteja a causar alguma apreensão nas comunidades locais. Marcelo Rebelo de Sousa assegura que “não há casos criminais, nem provas de que estas pessoas sejam criminosas”. Na verdade, a única ocorrência policial reporta-se ao fim de julho, em Baleizão, Beja, quando um grupo de sete trabalhadores timorenses reclamou o salário junto do angariador indiano. Foram sovados e ficaram a dormir na rua durante quatro dias.

Esta é, aliás, a dura realidade de grande parte dos timorenses da recente vaga migratória. O Ministério dos Negócios Estrangeiros revelou à SÁBADO que mantém contactos com a Embaixada de Timor em Lisboa e que foi criado um “grupo de trabalho interministerial para acompanhamento de casos de vulnerabilidade que sejam identificados”. A realidade é que no Alentejo são identificados casos de sem-abrigo timorenses todos os dias.

Em Serpa, num pavilhão de exposições sem balneário onde foram improvisadas camas de campanha, foram acolhidos 40 trabalhadores entretanto abandonados pelo patrão indiano na vila de Pias.

Em Beja, a Caritas abriga (numa casa que a própria Segurança Social nunca quis licenciar por falta de condições) outras 40 pessoas que foram recolhidas nas ruas da aldeia de Cabeça Gorda.

A Cruz Vermelha faz transportes para o Algarve e para a zona da Grande Lisboa, diariamente. Entretanto, Jesus, que como a maior parte dos imigrantes timorenses mal fala português, faz uma videochamada para o pai que está em Liquiçá. Conta-lhe a sua história. Está a dormir à porta da gare rodoviária de Beja. Não tem dinheiro, nem comida. Está a ser ameaçado pelas máfias. O pai responde à SÁBADO no mais límpido dos timbres portugueses: “Não o deixe sair daí, por favor. Não o deixe regressar.” Ai, Timor...

Com Márcia Sobral – Sábado

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