Paulo Barriga | Sábado | em 01 de Outubro de 2022
Nos últimos dois meses chegaram a Portugal milhares de timorenses iludidos com o eldorado europeu. Encontraram fome, habitações insalubres e precariedade. Muitos ficaram a viver na rua.
É em Timor Leste que as redes de
tráfico humano e de trabalho ilegal, que operam nos campos do Alentejo, tanto
em Alqueva como em Odemira, têm agora os seus interesses focados. O Alto
Comissariado para as Migrações declara que só nos últimos dois meses identificou
650 cidadãos timorenses recém-chegados. Mas as organizações de solidariedade
social que atuam no terreno acreditam que devem ser dois mil. Pobres, na
esmagadora maioria, chantageados e ameaçados, ficam reféns dos “patrões” que se
prontificaram a recebê-los em Portugal, quase sempre em condições deploráveis.
Muitos acabam sem abrigo.
É no primeiro andar de um casinhoto que faz esquina entre o largo da Cruz Nova
e a rua de Mértola, em Serpa, que estão Anjo e Ângela. São namorados. Ele tem
22, ela 23 anos. Ele fez o segundo ano de Economia, enquanto “ganhava umas
coroas” como taxista,
Um erro que começou logo em
território timorense, quando o casal se viu obrigado a “procurar um amigo” que
se dispusesse a financiar a viagem e a respetiva papelada: cerca de 4 mil
dólares [4.147 euros], cada um. “É muito dinheiro”, reconhece Ângela, enquanto
faz contas à vida, “temos de arranjar trabalho para lhe pagar depressa”. É que
o suposto “amigo” é um dos muitos agiotas que operam
Na maioria dos casos relatados à SÁBADO,
que foram mais de 20, o dinheiro nem chega a sair dos bolsos dos “banqueiros do
povo”. Os financiadores são igualmente proprietários ou associados de agências
de viagens. Entidades às quais a lei timorense permite que se constituam também
como “angariadoras de mão de obra”. É o cocktail perfeito para o tráfico
humano. Segundo o Global Organized Crime Index, “Timor Leste é um país de
origem, trânsito e destino do tráfico de seres humanos. A maioria dos casos é
de natureza transnacional, sendo Timor Leste o país de origem.”
De acordo com o Serviço de Registo e Verificação Empresarial existem neste
momento 170 agências de viagens ativas
A raposa na capoeira
Anjo e Ângela partilham um quarto minúsculo com outros três compatriotas. “É uma sorte”, comentam. Nas restantes duas acomodações ocupadas por timorenses, o rácio é bem diferente. Um quarto alberga nove pessoas, o outro 10. Amontoadas em beliches tão chegados uns aos outros que se torna impossível discernir a miséria, na sua verdadeira grandeza. A luz é mínima e apresenta-se coada por uma atmosfera saturada pelos odores corporais, pelo verdete que cobre as paredes, pelo sarro de tabaco velho, pela memória de frituras recentes. Há lixo acumulado em cada canto. O chão pega-se à sola dos sapatos. A única casa de banho fica no piso térreo, junto à entrada, e é tão desoladora quanto o estado de espírito do jovem casal timorense: “Isto está mau.”
Pois está, mas não para todos. Basit, 24 anos, natural de Caxemira, no
Paquistão, é o “patrão” da casa. Economista de formação, partilha o quarto
sobrante com um conterrâneo, e tem objetivos bem delineados: “Gostava de abrir
um restaurante paquistanês em Moura”. A restante família está na Bélgica, onde
gere uma rede de mercearias e supermercados paquistaneses. Basit veio para
Portugal para “fazer dinheiro”. Criou a empresa Tarefa Momentânea e começou a
subcontratar mão de obra para trabalhar nas plantações do Alqueva. Desde 30 de
julho tem contratos abertos com 16 dos 24 timorenses a quem aluga colchão e
teto. A 100 euros por mês. À cabeça.
Entre eles está Anjo e Ângela. Tal como os demais, os membros do casal
assinaram contratos laborais a termo incerto com a empresa de Basit, a Tarefa
Momentânea. Mas nos últimos dois meses apenas trabalharam uma semana nas
vindimas em Albernoa, Beja. Tendo-lhes sido prometido o vencimento de 280
euros. Até à data, nada receberam.
Basit justifica-se com o facto de o “patrão português”, que é de Serpa e leva
apenas o nome de Luís, não ter trabalho. E também se queixa da falta de
produtividade dos timorenses: “Não estão habituados a trabalhar, não sabem
fazer nada. Passam o tempo sentados. Eu também sou um ser humano, sei as
dificuldades deles, mas assim não dá.”
Entretanto,
Rua Ramon de
Vista de fora, a moradia tem tudo para ser uma típica casa alentejana. Bem
cuidada. A parte habitacional do nº 39 está sobrelotada com imigrantes
nepaleses. Dezenas deles, encafuados em beliches, quase até ao teto. E esta é
claramente a parte “digna” do prédio. No anexo da garagem, em apenas três
quartos sem janelas exteriores, 25 timorenses recém-chegados. Três deles dormem
no chão de vidraço, sem colchão nem manta, num habitáculo interior com menos de
Em comum, para além da fome, da falta de privacidade, têm uma agência de
viagens timorense, a New Generation, e um patrão indiano, Goldi, proprietário
da empresa de trabalho temporário Cascata Jovial, com sede na Rua Serpa Pinto,
em Odemira.
Goldi é gerente de uma das 10 empresas com quem a agência New Generation diz
“cooperar”
As remessas dos imigrantes
“É um negócio em que todos ganham, menos estes desgraçados”, sublinha Alberto
Matos, da Associação Solidariedade Imigrante. Ganha quem à margem da lei
arrenda casas insalubres e em regime de sobrelotação (só o anexo do nº 39 rende
30 mil euros ao ano). Ganham as máfias que abrem e fecham, de uma hora para a
outra, empresas de trabalho temporário e que retêm boa parte dos vencimentos
contratados. Ganham a dobrar os banqueiros de rua que concedem empréstimos
Ganham, e não é pouco. Só a New
Generation “enviou” recentemente para Portugal “mais de mil timorenses”. O
proprietário da empresa, Francisco Fernandes, declarou mesmo à agência
noticiosa timorense, TATOLI, que a New Generation “tem sete pessoas em Lisboa para
auxiliar os timorenses” e que “aluga por 17 mil dólares americanos [€17.647]
uma residência permanente em Portugal para os trabalhadores”. O que não
explicou é que cada pernoita em Lisboa chega a custar 30 euros por pessoa. Ou
900 euros por mês. E também ganha o governo. A Lei timorense permite e até
incentiva que os agentes de viagens se constituam como angariadores de mão de
obra. A imigração é um dos pontos fulcrais do programa governativo de Taur
Matan Ruak. Não é para menos. As remessas dos imigrantes timorenses em 2021
ascenderam a 170 milhões de dólares [176 milhões de euros]. O trabalho é a
segunda maior “riqueza” que Timor Leste exporta, logo a seguir aos carbonetos.
Embora não haja dados concretos, estima-se que a diáspora timorense ronde os 39
mil cidadãos. Espalhados essencialmente pelo Reino Unido, Coreia do Sul,
Austrália e Emirados Árabes Unidos.
O elemento estranho à equação é precisamente Portugal. Fenómeno recente, este
que se começou a evidenciar logo após a visita de Marcelo Rebelo de Sousa a
Timor Leste, em finais de maio. Na ocasião, o Presidente da República
Portuguesa terá incitado os jovens timorenses a tentarem a sorte cá deste lado
do mundo, onde há falta de mão de obra. Não é que as pessoas em Timor prestem
especial atenção à atualidade política. Mas as agências de viagens/trabalho não
perderam tempo e fizeram replicar as palavras do Presidente português em filmes
publicitários que circularam nas redes sociais. A grande maioria dos
timorenses contactados pela SÁBADO reconheceu que foi aliciada por
filmes com as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa a incentivar os jovens a
emigrarem. O Presidente diz que as suas palavras foram descontextualizadas e
que se estava a dirigir a desempregados com estudos e conhecedores da língua portuguesa.
Grupos violentos. Foi o rastilho para a recente vaga de imigrantes.
À SÁBADO, Marcelo Rebelo de Sousa desvaloriza: “Estava a pensar nos jovens
já com estudos, desempregados, que fossem enquadráveis em Portugal pela língua
e pelos seus conhecimentos.”
Tiro ao lado. As agências de viagens, como é o caso da New Generation, cujo
principal acionista é conselheiro do recente Partido Os Verdes de
Timor, usaram as palavras presidenciais como isco. Francisco Fernandes chegou
mesmo a dizer que trabalha com a família em Portugal “para ajudar os timorenses
a trabalharem fora da sua pátria. Por isso, a minha agência apoia jovens de
diversos grupos, incluindo membros do
O 77 é um de entre os vários grupos consignados e enquadrados na Lei timorense
como de “artes marciais e rituais”. Mas, na realidade, trata-se de grupos
violentos que se defrontam entre si e que nos últimos anos têm espalhado o terror
e o medo por todo o território de Timor Leste. Daí que a chegada recente a
Portugal de elementos destes grupos, nomeadamente do 77 e do Persaudaraan Setia
Hati Terate (PSHT) esteja a causar alguma apreensão nas comunidades locais.
Marcelo Rebelo de Sousa assegura que “não há casos criminais, nem provas de que
estas pessoas sejam criminosas”. Na verdade, a única ocorrência policial
reporta-se ao fim de julho, em Baleizão, Beja, quando um grupo de sete
trabalhadores timorenses reclamou o salário junto do angariador indiano. Foram
sovados e ficaram a dormir na rua durante quatro dias.
Esta é, aliás, a dura realidade de grande parte dos timorenses da recente vaga
migratória. O Ministério dos Negócios Estrangeiros revelou à SÁBADO que
mantém contactos com a Embaixada de Timor em Lisboa e que foi criado um “grupo
de trabalho interministerial para acompanhamento de casos de vulnerabilidade
que sejam identificados”. A realidade é que no Alentejo são identificados casos
de sem-abrigo timorenses todos os dias.
Em Serpa, num pavilhão de exposições sem balneário onde foram improvisadas
camas de campanha, foram acolhidos 40 trabalhadores entretanto abandonados pelo
patrão indiano na vila de Pias.
Em Beja, a Caritas abriga (numa casa que a própria Segurança Social nunca quis licenciar por falta de condições) outras 40 pessoas que foram recolhidas nas ruas da aldeia de Cabeça Gorda.
A Cruz Vermelha faz transportes
para o Algarve e para a zona da Grande Lisboa, diariamente. Entretanto, Jesus,
que como a maior parte dos imigrantes timorenses mal fala português, faz uma
videochamada para o pai que está
Com Márcia Sobral – Sábado
Artigos relacionados, na Sábado:
Odemira: Um ano depois, nada mudou
MAIS IMAGENS NO ORIGINAL - Sábado
Sem comentários:
Enviar um comentário