quinta-feira, 20 de outubro de 2022

AS TEIAS DE ARANHA DA(S) REALIDADE(S)

Manuel Augusto Araújo | AbrilAbril | opinião

A construção desta fina teia de aranha visa a despolitização efectiva do mundo contemporâneo, que a alienação seja aceite enquanto normalidade, que as lutas sociais simulem mudar tudo para não mudar nada.

As Realidades (fábula), de Louis Aragon

Era uma vez uma realidade
com suas ovelhas de lã real
a filha do rei passou por ali
E as ovelhas baliam que linda que está
A re a re a realidade.

Na noite era uma vez
uma realidade que sofria de insónia
Então chegava a madrinha fada
E realmente levava-a pela mão
a re a re a realidade.

No trono havia uma vez
um velho rei que se aborrecia
e pela noite perdia o seu manto
e por rainha puseram-lhe ao lado
a re a re a realidade

CAUDA: dade dade a reali
dade dade a realidade
A real a real
idade idade dá a reali
ali
a re a realidade
era uma vez a REALIDADE.

Diariamente somos confrontados com a realidade, com as realidades, como políticos, economistas e empreendedores preferem dizer, que acabam por tecer uma teia de aranha intimidativa onde nos querem apanhar num tempo em que cada vez mais devemos desconfiar da realidade, das realidades, como nos são apresentadas para nelas acreditarmos, para por elas sermos constrangidos, a elas não podermos escapar.

São inúmeras as realidades que nos são impingidas, que não passam de ficções, que, de tão repetidas, deixam de ser escrutinadas e entram nos glossários da comunicação social controlada directa ou indirectamente pelo império, dispensando verificações e certificações dos variados e enviesados polígrafos. Estamos cercados por uma opinião dominante sustentada em realidades ancoradas no senso comum, pelo que escapam a qualquer análise racional, com o objectivo de subjectivamente direccionar as apreciações críticas não conformes com o pensamento preponderante e as narrativas que diariamente, hora a hora, são construídas e vendidas como verdade, subvertendo a consigna de Lénine que só a verdade é revolucionária, porque a verdade foi substituída pela realidade, pelas realidades.

Realidade, realidades que se impõem como uma evidência não passível de qualquer debate, dogmas que se querem impossíveis de ultrapassar. Um muro resistente a todos os idealismos, a todas as ideologias militantes porque, segundo os seus próceres, as realidades da economia mundial, os veredictos dos mercados financeiros e dos seus braços armados, nomeadamente FMI, Banco Mundial, empresas de notação, etc., é que determinam a pulsação da vida concreta, a vida autêntica em que não há lugar para as pessoas, pelo que as relações sociais e políticas estão subordinadas ao determinismo desumanizado da realidade.

O seu alfa e ómega é o TINA (There Is No Alternative) de Margaret Thatcher quando vendia, com os seus dotes de feirante do capitalismo, que não haveria alternativa ao neoliberalismo, às leis do mercado, à globalização, um totalitarismo muito do agrado dos democratas liberais e iliberais acantonados no centro-direita, direita e extrema-direita, que estão a conquistar espaço político mundo fora, principalmente na Europa, o que nos EUA e outros países anglo-saxónicos é de há muito tempo um facto mascarado por regulares combates de wrestling entre dois partidos que prosseguem no essencial os mesmos objectivos e que procura ser modelo universal para o império de ilusões onde mesmo as elites progressistas se afundam. Por cá, encontram-se acantonados na Iniciativa Liberal, Chega , CDS e no PSD, mas também no PS, onde a sua tendência mais adossada à direita contamina o todo.

A economia, que deixou de ser uma ciência que devia promover o bem-estar das pessoas, tem um papel central na definição da realidade, é o centro das discussões sobre a realidade o seu presente e o seu futuro. É o seu guardião, o seu garante. O que não deixa de ser curioso quando é fácil constatar que enquanto firma esse seu saber é incapaz não só de compreender o que acontece como de prever o que irá acontecer, navegando à vista pelas crises do capitalismo que se vão sucedendo em ciclos cada vez mais breves até hoje ser uma crise contínua e permanente.

Apesar de fáceis de enumerar os desastres económicos, as bolhas que rebentam sucessivamente estoirando a realidade para a substituir por outra que já tem no seu bojo um eventual e garantido desastre, essa realidade, essas realidades condenadas às crises que, como Marx demonstra em O Capital, representam os sintomas inevitáveis do aprofundamento das contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e das relações sociais de produção e distribuição capitalistas, determinando os limites para o desenvolvimento da produção capitalista, evidenciando seu carácter enquanto modo de produção histórico e transitório, mantém inalterado e sem qualquer ruptura um discurso económico como se o universo estivesse para sempre condenado a uma patologia incurável com o saber económico prevalecente, cada vez mais sofisticado e, paradoxal mas não inesperadamente, mais impotente.

Essa real realidade, passe o pleonasmo, que qualquer marxista sabe ler e combater, prossegue indiferente o seu percurso de enunciar a economia como o saber da realidade, mau grado as evidências dos factos desmentirem persistentemente esse conhecimento, o que não tem produzido nenhuma disrupção grave ao longo dos séculos, se exceptuarmos a Comuna de Paris e a Revolução de Outubro que interromperam a praxis dessa ideologia desastrosa e o seu curso criminal.

Desde que a economia se consolidou como ciência, elaborou e continua a elaborar a realidade absorvendo crises e mesmo desastres, até o capitalismo actual ter uma imagem consistente e hegemónica que funciona como um imperativo de submissão que tece uma refinada teia de aranha onde quer prender toda a humanidade para não ser concebível qualquer corte ou rotura de uma hipotética relação ontológica entre o capitalismo e a existência humana, o que é uma impossibilidade absoluta que a esquerda consequente, a que não abdica de princípios nem abandona o terreno das lutas anti-capitalistas, sabe ser uma falácia pelo que insiste no carácter contingente da realidade histórica do capitalismo e não dá por eterna a sua dominação mesmo quando plasma a imagem de uma ditadura imperial económica indiscutível que resolve gestionariamente os seus impasses.

O grande final desejado para essa ópera, simultaneamente bufa e trágica, seria deixar de pensar ser possível sequer que uma sociedade outra é possível. Um objectivo desde sempre perseguido pelos mentores, com mais ou menos tiques democráticos, do totalitarismo capitalista, o que se tornou mais visível depois do fim da primeira grande experiência histórica do socialismo. Gente para quem não é suportável a hipótese de que o que foi possível um dia será novamente possível, com outra forma e noutro contexto. Para a esquerda, para as esquerdas o drama é a sua fragmentação, muitas por se terem traído há muito tempo, outras por claudicarem autofagicamente ficando presas fáceis da teia de aranha da realidade, das realidades que o neoliberalismo tece para tentar apoderar-se da totalidade dos bens humanos, particularmente a cultura, a arte, a educação e dos direitos sociais, económicos e políticos conquistados em séculos de duras lutas, para os transformar em mercadorias.

Esta é a realidade que nos é subjectivamente imposta hora a hora, minuto a minuto, utilizando sofismas que de tanto repetidos passam por verdades indiscutíveis, que não são mais que falcatruas incrustadas nos textos noticiosos ou opinativos para lhes dar credibilidade e conferir espessura. Alguns têm uso diário, são parte indissociável da construção do real concreto autêntico que nos querem impor pelas realidades da economia mundial pastoreada actualmente pelo império norte-americano que se ergueu sobre brutais sofrimentos e aventuras sangrentas plantadas por todo o mundo.

Um desses embuste é o da «comunidade internacional». Refere-se «comunidade internacional» como se isto representasse um consenso da esmagadora maioria dos países do mundo. Nada de mais falso. «Comunidade internacional» reporta-se aos EUA, Canadá, países europeus, Japão e Austrália, cerca de 15% da humanidade, que normalmente coincidem em impor as regras com que os EUA pretendem continuar a explorar o mundo tripudiando o direito internacional, que até lhes é favorável, mas que consideram insuficiente para que o seu domínio permaneça. Agora, quando a ordem unipolar que impõem é colocada em causa e o poder do império se está a degradar sem grandes hipóteses de recuperação, tornam-se ainda mais violentos continuando a impor guerras em que se envolvem directa ou indirectamente, tentando golpes de Estado, destabilizando países, impondo sanções, toda uma panóplia de acções em que procuram adiar a sua decadência.

Outra impostura é o G7, apresentado como os sete países mais industrializados do mundo e os economicamente mais ricos. Quem são os países do G7? Os EUA, a Alemanha, a França, o Canadá, a Itália, o Japão e o Reino Unido. A liderança indiscutida é a dos EUA, que comandam esse pequeno grupo de países, impondo estratégias económicas, políticas e militares. A curiosidade é que pelos números do FMI e do BM [Banco Mundial], no ano 2020, com ligeiríssimas alterações nos cinco anos anteriores, o G7 não reúne nem os países mais ricos nem os mais industrializados.

Considerando o PIB nominal os sete países mais ricos são por esta ordem, EUA, China, Japão, Alemanha, Reino Unido, Índia, França, se for o PIB per capita nenhum país do G7 figura, são o Qatar, Luxemburgo, Singapura, Kuweit, Suíça, Emiratos Árabes Unidos, Brunei. Pelo PPC (Paridade do Poder de Compra que relaciona o poder aquisitivo da pessoa com o custo de vida do local) a ordem é China, EUA, Índia, Japão, Alemanha, Rússia, Indonésia. Se olhamos para o quadro dos países mais industrializados temos, China, EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, Rússia, Coreia do Sul.

Quando repetidamente se ouve ou lê G7 não é esta verdade que se percepciona. De facto o G7 é um grupo de países ocidentais, de democracias capitalistas, de maioria branca, pertencentes à NATO, só o Japão é excepção. É um grupo de países liderado pelos Estados Unidos, que impõem o seu ponto de vista, com a garantia de ser aprovado por unanimidade, estabelecendo regras e políticas internacionais que o beneficia em detrimento de outros países, até de países integrantes do G7.

É a nova ordem internacional baseada em regras, que subverte o direito inscrito na Carta das Nações Unidas, tende a converter a ONU numa instituição periférica, menorizando-a desde que não se submeta às exigências dessas regras que foram traçadas e impostas pelos think tanks neocons que de facto comandam a Casa Branca, qualquer que seja o seu ocupante, seguida pelos seu rebanho de países amestrados, com destaque para os autocratas de Bruxelas que nem sequer foram eleitos.

Outra falsidade é a NATO ser uma aliança defensiva! A NATO, que nos últimos anos bombardeou sistematicamente a Jugoslávia, com destaque para Belgrado, que participou na invasão do Afeganistão, que apoiou com ardor as guerras contra o Iraque, a Síria e a Líbia, treinando, financiando e armando os grupos mercenários dos fundamentalistas do Estado Islâmico, sempre de mão dada com os terroristas.

A NATO, que a mando dos EUA, que é de facto quem a comanda, cerca e despeja bombas em qualquer país que se escape ou pretenda escapar às regras do império, obedecendo caninamente ao seu dono pela voz do amanuense de serviço, ameaçando a torto e a direito quem não se submeta aos seus ditames dos EUA, com o descaramento de invocar o direito internacional que a NATO manda sistemática e despudoradamente para as urtigas. Nada disto é denunciado. Até se fantasia noticiosamente que é uma organização em que se debatem ideias e tem autonomia, o que é, se não fosse sinistra, uma das comédias mais hilariantes que nos é vendida.

As contrafacções em que essa realidade se funda e que caldeia são mais que muitas. Os três exemplos referidos fazem parte da grinalda de oxímoros, tais como «economia social de mercado», «desenvolvimento capitalista sustentável», «economia capitalista verde», «direitos humanos», «valores civilizacionais», «regras democráticas», «mundo ocidental civilizado». Muitos outros poderiam ser referidos, que martelam a realidade, são mutações de um vírus difundido urbi et orbi para sustentar e autenticar a grande mentira da realidade da sociedade capitalista que nos é mercadejada, sem um segundo de pausa, por uma poderosíssima máquina de propaganda mascarada de comunicação social independente, intermediada por inúmeras instituições internacionais, das mais secretas às mais visíveis, com variadas e coloridas designações nas suas extensões e as derivas nacionais.

A construção desta fina, por vezes inextricável, teia de aranha, quase invisível por ser tão visível, como a célebre carta do conto de Edgar Allan Poe tão obviamente à vista de toda a gente que ninguém a via, é elaborada com os fios de uma corrupção material e imaterial sistémica, generalizada, que visa a despolitização efectiva do mundo contemporâneo, que a alienação se espalhe tentacularmente e seja aceite enquanto normalidade, que as lutas sociais simulem mudar tudo para não mudar nada, por mais bem intencionadas e radicais que sejam, que a liberdade seja a das liberdades oferecidas pelos mercados, que as palavras de ordem revolucionárias se transformem em slogans para que a linguagem humanista seja absorvida pela linguagem técnica, que o mundo seja aplainado perdendo particularismos e diversidades para se aculturar nos transes insípidos do sentimentalismo telenovelesco deste capitalismo em estado terminal que promove o genocídio político, social e cultural. Um mundo em que, como disse Óscar Wilde, «a coerência é a virtude dos imbecis».

Citando Aldous Huxley do Admirável Mundo Novo, esta realidade, estas realidades pretendem impor «a ditadura perfeita que terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão». Contra elas há que recordar e sublinhar que as lutas sociais, económicas, políticas e culturais têm que sempre fazer parte de um projecto mais profundo e radical de transformação da sociedade, impossível de concretizar sem uma sólida organização que tenha o seu pensamento próprio e autónomo enraizado no conhecimento histórico acumulado. Não perceber isto é suicidar a esquerda, as esquerdas.

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