segunda-feira, 3 de outubro de 2022

NAVE DOS LOUCOS

A paz tornou-se gradualmente um conceito vazio, transformado propagandisticamente num instrumento ideológico cultivado apenas por minorias supostamente transviadas, por isso vilipendiadas e silenciadas em clima inquisitorial.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

Esqueçam as alterações climáticas, o aquecimento global, a pegada de carbono, as mil e uma sustentabilidades prometidas, as energias alternativas, os glaciares a derreter e os mares a subir, as agendas verdes e outros assuntos sérios relacionados com a sobrevivência do planeta. Como há muito se sabe, e agora se tornou existencial para todos nós, a guerra é a principal ameaça contra a Terra e todos os seres vivos que a habitam. Não há combate possível e eficaz contra os problemas parcelares se a guerra não for eliminada, isto é, se não forem encontradas e aplicadas fórmulas de paz capazes de neutralizar a opção dominante pelos conflitos armados.

Alguém acredita que possa ser estabelecido um sistema funcional e global de luta contra as alterações climáticas num mundo em guerra tal como aquele em que vivemos hoje? O recurso a armas de extermínio – de que já estivemos muito mais longe – é capaz de provocar em escassos minutos a extinção da vida do planeta que a degradação do clima pode demorar décadas ou séculos a consumar. O pensamento único dominante inverteu as prioridades de acção, optando no sentido da minimização ou mesmo do risco da extinção da vida, e, por incrível que pareça, isso não aconteceu por acaso. É obra de sociopatas, os que governam efectivamente o mundo de leste a oeste, de norte a sul e perderam a noção de que a própria defesa dos interesses das poderosas elites minoritárias para quem trabalham deveria ter limites, quanto mais não seja o da sobrevivência da humanidade.

A procura da paz nunca poderia ter sido separada e isolada das causas dominantes dos nossos tempos. Mas alguém seria capaz de imaginar hoje um jovem discursando nas Nações Unidas apelando à paz mundial, tal como a sueca Greta Thunberg fez sobre a degeneração climática? À luz da mentalidade dominante seria um absurdo, nem o secretário-geral das Nações Unidas pensaria numa coisa dessas até porque incomodaria os poderes que se apropriaram da organização, por sinal os senhores da guerra.

A paz tornou-se gradualmente um conceito vazio, transformado propagandisticamente num instrumento ideológico cultivado apenas por minorias supostamente transviadas, por isso vilipendiadas e silenciadas em clima inquisitorial. A paz é «subversiva» ou, no dizer de eminentes pensadores e opinadores assumidos como proprietários da opinião única, um conceito «abstracto».

E o mundo tornou-se um lugar vazio de paz agora que o planeta rolou para a beira do abismo, atingindo a posição mais periclitante de sempre. Neste cenário resta a guerra, mas como a guerra não tem solução à vista, a não ser a do confronto fatal, e não há quem consiga fazer ouvir a voz da razão sobre a cacofonia da morte, então nada augura de bom para esta nave dos loucos a bordo da qual somos arrastados. Eles não ouvem nem sentem; estão imunes até às vozes sensatas que conseguem furar o cerco da propaganda terrorista.

Ordem mundial em jogo. Como chegámos a este extremo?

Explica-nos a única versão permitida em boa parte do mundo, porque assim o determina o Ocidente sem margem de contestação, que a culpa é da Rússia e do chefe do seu regime nacionalista, Vladimir Putin, quando decidiu invadir militarmente a Ucrânia, no quadro de uma alegada estratégia expansionista de Moscovo.

A Rússia argumenta que foi forçada a tomar a decisão para impedir que as populações de origem russa, maioritárias na região do Donbass, continuassem a ser vítimas do genocídio praticado há oito anos pelo regime de Kiev, influenciado e sustentado por organizações de índole nazi guiadas por conceitos de supremacia racial segundo os quais os russos são sub-humanos.

No mundo nada acontece isoladamente: portanto, o cenário descrito é superficial, insuficiente e traiçoeiro.

O problema da situação da Ucrânia é muito mais profundo, teve como etapa principal mais recente o golpe de Estado que em 2013 instituiu o actual regime de Kiev a partir da destituição de um governo eleito democraticamente. Uma manobra antidemocrática na qual participaram os paladinos da democracia legítima, os regimes dos Estados Unidos da América e da União Europeia – não confundir com o continente Europa e muito menos com os povos da Europa. A partir de então a Ucrânia transformou-se num polo de provocação contra a Rússia agindo como entidade da NATO e da União Europeia, embora não formalmente integrada nas organizações.

Esta etapa representou mais um passo num caminho percorrido desde o início dos anos noventa do século passado pelos Estados Unidos e a NATO/União Europeia para instituírem a unipolaridade global de índole imperial e neocolonial a partir, sobretudo, do desmembramento da União Soviética e da Jugoslávia. Seguiram-se a colonização dos Balcãs e da Rússia, neste caso sob o regime de Boris Ieltsin, teleguiado de Washington.

Quando Vladimir Putin se tornou presidente, por sinal indicado pelo próprio Ieltsin, Moscovo assumiu gradualmente a gestão da Rússia e estancou o saque das riquezas e da economia do país – pondo fim ao maná de Washington e dos interesses que gerem a União Europeia através dos autocratas de Bruxelas e dos governos nacionais que lhes obedecem.

Então, o processo de cerco militar da Rússia pela NATO, institucionalizado a partir da integração dos países do extinto Tratado de Varsóvia na aliança atlantista, acelerou-se através da colossal concentração de tropas e de meios militares em fronteiras do território russo. Tratava-se, explica a NATO, de acções «defensivas» perante uma Rússia com objectivos «expansionistas» capazes de «ameaçar toda a Europa». Um primor de ficção assumido como base das doutrinas militares dos Estados Unidos e da NATO e reproduzido como verdade única e indesmentível pelo aparelho global de propaganda que age sob capa de «informação». Da promessa feita ao presidente russo Gorbatchov no início dos anos noventa pelos principais dirigentes ocidentais, segundo a qual a NATO não se moveria «um centímetro» para Leste em relação às posições do fim da guerra fria, chegámos, 30 anos depois, ao cerco quase total das fronteiras ocidentais da Rússia pela própria Aliança Atlântica.

A Ucrânia era uma peça essencial que faltava e foi inserida no sistema agressivo da Aliança Atlântica através do golpe de 2013. Por isso estamos a assistir a uma guerra, não entre Moscovo e Kiev, mas sim entre a Rússia e a NATO.

Sociopatia sem freios

Chegados a este tipo de confronto que reedita cenários da guerra fria mas tendo de ambos os lados personagens menos previsíveis, sem dúvida mais irresponsáveis em termos de recurso aos conflitos armados, os riscos de uma guerra de grandes proporções, envolvendo armas de extermínio em massa, são bem mais elevados do que na segunda metade do século XX.

As doutrinas neoconservadoras que controlam os centros de poder norte-americano e que assentam na afirmação global do único país «imprescindível», que não admite a existência de qualquer outra potência com a dimensão e a influência dos Estados Unidos, são ainda mais ameaçadoras e incontidas do que, por exemplo, as práticas do regime de Ronald Reagan, em plena guerra fria.

E se a Rússia e a China são potências emergentes que têm de ser contidas antes de serem capazes de desafiar o império, a União Europeia também não escapa às manobras de Washington para limitar a sua dimensão, peso e influência através do mundo. O exemplo revelador está ao alcance da mão: o modo como Washington tem obrigado os 27 a pagar as despesas do combate económico e militar contra a Rússia enquanto consegue ultrapassar a situação de maneira praticamente incólume, pelo menos até agora.

Em Moscovo, a clique que assumiu o poder ao redor de Putin, nacionalista, retrógrada, restauradora de ambientes de inspiração czarista principalmente devido à dissolução no conservadorismo social da poderosa igreja ortodoxa, é perigosamente imprevisível, sobretudo porque dispõe já de uma capacidade militar em paridade com a da NATO, pelo menos no plano convencional.

O embate presente entre as duas principais potências militares, que acontece pela primeira vez a um nível de confronto directo (situações conjunturais na Síria não assumiram uma dimensão semelhante) passou a desenvolver-se exclusivamente em forma de guerra. Nunca é demais recordar a frase do «ministro dos negócios estrangeiros» da União Europeia, Josep Borrell, segundo a qual a questão da Ucrânia apenas se resolve com a derrota da Rússia.

Para Bruxelas, cumprindo as ordens de Washington, a diplomacia não passa de uma prática arcaica. Os Estados Unidos, a NATO e a União Europeia não admitem ao regime de Kiev qualquer possibilidade de negociar um acordo com Moscovo – o entendimento de Istambul foi assassinado à nascença por imposição ocidental, tal como já acontecera com os acordos de Minsk; e Moscovo faz saber cada vez com maior veemência que a hora de negociar já passou, sobretudo agora que quatro regiões do Donbass vão integrar-se na Rússia no seguimento de consultas feitas às respectivas populações.

Sob o signo do terror

O conjunto de circunstâncias que rodeia a crise na Ucrânia e as respectivas repercussões na relação internacional de forças coloca-nos sob a ameaça muito real de extermínio em massa, pelo menos de populações europeias mas que extravasará irremediavelmente para outras áreas do globo. O mundo, tal como hoje o conhecemos, corre um perigo sério porque qualquer das partes envolvidas é incapaz de se comprometer a não usar armas nucleares. Os neoconservadores norte-americanos há muito que estão ansiosos por isso; o seu criado Zelensky pediu o acesso a essas armas de extermínio durante a conferência de «segurança» de Munique, em 19 de Fevereiro último; e as declarações do Kremlin sobre a matéria alinham pelo mesmo signo da ameaça terrorista.

A principal conjuntura que conduziu a este confronto sem cedências é o carácter existencial com que ambas as partes – EUA/NATO e Rússia – o encaram. Quanto à Ucrânia, o regresso a antes de 24 de Fevereiro já é impossível devido à rejeição permanente das hipóteses de acordo com Moscovo.

O conflito em curso, principalmente o embate directo entre os dois maiores aparelhos militares mundiais, é certamente existencial para a Rússia em caso de derrota. A xenofobia russófona que guia os comportamentos e as acções de grande parte da Europa, designadamente dos seus dirigentes, está profundamente enraizada na história. Os exemplos de Napoleão e de Hitler são apenas situações extremas de um culto de cruzada, de um ódio «civilizacional» e segregacionista permanente que passa inclusivamente por cima de questões ideológicas.

O frenesim anti-Rússia de hoje não está muito distante do frenesim anti-soviético da guerra fria. Salta à vista que o comportamento irracional e irresponsável dos dirigentes norte-americanos e europeus em relação a uma Rússia soberana, capaz de se governar a si própria e de desenvolver relações internacionais fora do padrão ocidental, traduz a intenção de eliminar um tal adversário.

A única Rússia aceitável será a gerida por um fantoche do género de Boris Ieltsin. Caso contrário, como não é segredo para ninguém depois de declarações feitas em Washington e Bruxelas, terá de haver uma mudança de regime em Moscovo ou então a balcanização do território russo, a exemplo da Jugoslávia, em numerosas entidades. De acordo com planos elaborados nos Estados Unidos, o desmembramento daria origem a um número de «estados independentes» entre quatro e vinte. O caso da Chechénia, onde o Ocidente, mais uma vez, lutou através de interpostos fundamentalistas islâmicos, é um exemplo dessa estratégia, ainda que o tiro tenha saído pela culatra.

O comportamento ocidental de hoje em relação a Moscovo leva-nos a crer que os dirigentes norte-americanos e da União Europeia pretendem finalmente cumprir a missão onde Hitler falhou: destruir a União Soviética/Rússia. Esse objectivo, afinal, não surpreende tendo em consideração que os principais dirigentes ocidentais apenas se envolveram seriamente na aliança anti-Hitler depois de as tropas nazis terem sido derrotadas pela União Soviética, que pagou o dramático preço de 26 milhões de vidas humanas. No fundo, a vertente ocidental torceu para que as tropas de Hitler desmantelassem a União Soviética. Da mesma maneira que hoje os dirigentes britânicos, norte-americanos e da União Europeia pretendem apagar da história o papel fundamental soviético na derrota nazi. Só, aliás, um olhar contemplativo e compreensivo sobre o nazi-fascismo, que não é só de hoje, permite aos donos da democracia que apostam tudo na vitória da Ucrânia ser cúmplices da ditadura com contornos nazis instalada em Kiev.

A guerra entre a NATO e a Rússia travada, por enquanto, no território da Ucrânia, é existencial também para o próprio império norte-americano e sua vertente colonial/«civilizacional» europeia. Uma derrota militar da NATO poria em causa a própria existência da organização, o domínio norte-americano sobre o mundo exercido com base num imbatível poder do terror militar e liquidaria a «ordem internacional baseada em regras» imposta de Washington à custa da marginalização do direito internacional.

Isto é, a vitória da Rússia sobre a NATO liquidaria a ordem mundial unipolar e abriria as portas a uma ordem multipolar – ou mesmo sem qualquer polaridade, funcionando as relações internacionais entre nações soberanas com direitos equivalentes. Anote-se a quantidade de vezes em que o presidente norte-americano, um mero instrumento dos neoconservadores bipartidários, acusa a Rússia, neste caso com razão, de pretender alterar a ordem mundial. É realmente isso que está a acontecer e que se consumaria com uma derrota da NATO perante Moscovo.

A Rússia não aceita perder a sua soberania e dissolver-se às mãos do império; e o império pretende continuar a mandar no mundo, a caminho de um globalismo de índole totalitária, sem quaisquer potências a perturbar esse novo «fim da história» – o neoliberalismo reinando sobre uma massa universal de seres humanos robotizados. A imposição da propaganda terrorista para disseminar a opinião única sobre a guerra na Ucrânia é, como se percebe, um exercício concreto dessa robotização.

Um frente-a-frente existencial: o que esteve latente durante a guerra fria, e nunca pôs de lado a diplomacia e as negociações, é substituído por um outro em que as armas, incluindo as de extermínio, não deixam espaço para qualquer alternativa. Cada uma das partes aposta a vida dos seus povos numa vitória militar, custe o que custar. Negociar e fazer a paz não lembra a ninguém

Uma situação limite como esta jamais aconteceu no mundo. Somos passageiros de uma nave conduzida por loucos.

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