sábado, 1 de outubro de 2022

OS JOVENS VÃO ÀS URNAS VOTAR NA ESPERANÇA DE MUDAR O BRASIL

O número de eleitores para as eleições deste domingo no Brasil é histórico. Os jovens entre os 16 e os 17 anos não são obrigados a votar, mas estão a mobilizar-se na esperança de mudar o Brasil. Querem melhores condições de vida, melhor educação, mais oportunidades.

Lisleine Uchôa do Lago | Setenta e Quatro

No ano em que comemora os 200 anos de sua independência, o Brasil regista outro feito histórico: o maior eleitorado de todos os tempos do país. A 2 de outubro mais de 156 milhões de eleitores brasileiros estarão aptos a votar no primeiro turno das eleições, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Deste total, 53% são mulheres e 47% homens que escolherão não só o ocupante do cargo de Presidente da República e os governadores dos 26 estados brasileiros. Também terão a oportunidade de renovar o Congresso Nacional (senadores e deputados federais), as Assembleias Legislativas estaduais (deputados estaduais) e a Câmara Legislativa do Distrito Federal (deputados distritais).

O recorde observado pela Justiça Eleitoral — 15 vezes a população de Portugal e cerca de 73% da população brasileira, hoje estimada em cerca de 215 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — representa um aumento de 6,1% (ou 9.454.011) de novos eleitores em relação às eleições de 2018. Um aumento que ultrapassa o crescimento de 1,47% da população geral no mesmo período, conforme o IBGE.

Num país onde o voto é obrigatório, mais de nove milhões destes novos eleitores é formado por jovens entre 16 e 17 anos (716.781 adolescentes) e maiores de 70 anos (2.893.273 pessoas), duas faixas etárias que não são obrigadas a votar de acordo com a lei eleitoral brasileira.

Embora em número menor, o crescimento de 51,13% da faixa etária desses adolescentes foi proporcionalmente maior que a dos idosos, fazendo com que o contingente também seja recorde nas próximas eleições: 2,1 milhões de jovens em 2022, quando em 2018 se registou uma participação de 1,4 milhões. Em relação ao mesmo período, o aumento dos maiores de 70 anos foi de 23,82%, saindo de cerca de 12 milhões para 14,8 milhões de eleitores em 2022.

Para o TSE, o aumento de eleitores nessas faixas etárias pode ser creditado às campanhas de incentivo à participação promovidas pelo tribunal desde o ano passado. No caso dos adolescentes, essas campanhas ganharam grande repercussão com as adesões de personalidades e artistas, inclusive internacionais, como Anitta, Leonardo di Caprio e Mark Rufallo. Mas, por detrás de tantos números, há mais do que simples estatísticas. Como o Setenta e Quatro pôde constatar, são muitos os eleitores jovens que se preparam para votar naquelas que já são consideradas, por muitos analistas, as eleições mais importantes desde a redemocratização do Brasil, em 1984.

O VOTO COMO ESPERANÇA DE MUDANÇA

Roberta, nome fictício a pedido de seus pais, afirma que não precisou de campanhas para tirar o seu título de eleitor este ano. Com 16 anos completados em março, a estudante carioca faz o 1º ano do Ensino Médio em uma escola estrangeira e diz que votar era um sonho antigo. “Quero tirar o nosso presidente. Desde 2018 eu não queria que ele entrasse”. Apesar de só ter 12 anos e na altura não morar no Brasil, Roberta explica que se informava sobre a situação do país nas viagens de férias à terra natal ou nas conversas com os pais. “Eles me explicam as coisas.”

No ano passado, ao retornar ao Brasil, a estudante voltou a morar na região Sudeste, que concentra a maior parte do eleitorado nacional (42,64%) e onde sua cidade é a segunda maior em número de eleitores do país. Com cinco milhões de eleitores, o Rio de Janeiro só perde para os 9,3 milhões de votantes da cidade de São Paulo. Ao chegar, Roberta viu que a oportunidade de realizar o seu sonho estava mais perto do que imaginava. Desde 2015 que o TSE permite que jovens de 15 anos tirem o título de eleitor, mas só podem votar aqueles que tenham completado 16 anos até o dia do primeiro turno das eleições, que será este domingo, 2 de outubro.

“Eu espero poder fazer a diferença no Brasil. Mas o meu voto é apenas um voto. Se eu conseguir convencer outras pessoas”, reflete a jovem de 16 anos, que ainda não pensou em quem vai votar para os outros cargos eletivos. Enquanto espera a hora de se formar e realizar mais um sonho, o de estudar Cinema em Nova York, a adolescente dirige o seu foco para a eleição do Presidente da República. E conta que, assim como os amigos, está animada com a possibilidade de tirar o atual ocupante do cargo.

A quase três mil quilómetros de distância do Rio de Janeiro, Carla , também nome fictícios por razões de segurança, sente-se um peixe fora d´água entre os amigos de Manaus quando o assunto são as eleições. Aos 16 anos comemorados em fevereiro e na 2ª série do Ensino Médio de uma escola pública, Carla conta que quer votar “para tentar eleger alguém que possa fazer com que o Brasil melhore em alguma coisa”. Já os amigos, segundo ela atraídos pela legalização do porte de armas, apoiam o atual mandatário. Também entre as amigas, Carla não encontra muito com quem conversar sobre as próximas eleições. Ela recorda apenas de uma amiga ter comentado querer tirar o título de eleitor, mas depois “não falaram mais sobre isso”. Carla atribui o apoio dado a pauta presidencial à pouca maturidade política dos amigos. “Eles pensam ‘vou poder ter uma arma’. Não têm tanta consciência, não têm visão totalmente.”

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em junho de 2022 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, talvez expliquem a atração que a política armamentista do presidente brasileiro, exerce sobre os amigos da adolescente. Tem sido apresentada como solução para o problema da segurança no país.

Em 2021, quando o Brasil apresentou uma queda de 6,5% no número de mortes violentas intencionais em relação a 2020, a região Norte foi a única do país a contabilizar um aumento de 7,9% na violência. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas (SSP-AM), entre os anos de 2020 e 2021, o aumento de crimes violentos foi de 54%. De acordo com o Anuário, na cidade de Manaus, o aumento foi de 48,9%.

Segundo o Monitor da Violência, uma iniciativa entre o portal G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as principais causas para o aumento da violência na região Norte estão ligadas à associação do narcotráfico com crimes ambientais (garimpo e pesca ilegais, grilagem, desmatamento), a falta de integração entre as autoridades estaduais e federais no combate aos crimes e ao acirramento das disputas territoriais entre os diferentes grupos criminosos.

Estes grupos seriam formados por mais de duas dezenas de organizações criminosas regionais e duas grandes organizações de atuação nacional e transnacional, a paulista Primeiro Comando da Capital, mais conhecida como PCC, e a fluminense Comando Vermelho, também de acordo com o Anuário. Em 2022, os assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, expuseram ao mundo a dimensão desse problema.

O Anuário destaca também, entre as causas para o recrudescimento da violência na região Norte, o crescimento do número de armas em circulação, provocado pela política de legalização de porte e posse de armas implementada pelo atual governo. O aumento da facilidade e do acesso às armas, e a tendência para a redução dos seus custos, beneficiou não só caçadores, atiradores e colecionadores, como também criminosos que agora podem comprar as armas de forma legal para uso ilegal.

No país, as armas de fogo (76%) são o principal instrumento usado em mortes violentas intencionais, seguidas pelas armas brancas (17,6%), como facas, machados e martelos, e outras (6,4%). O estudo enfatiza ainda que a política de flexibilização dos mecanismos de controle, supervisão e rastreabilidade de armas e munições do governo desautoriza o seu próprio discurso, de que o crescimento do número de armas em circulação provoca a queda da violência. Segundo o Anuário, a literatura internacional e as evidências científicas disponíveis apontam no sentido contrário: um maior número de armas de fogo em circulação está associado ao aumento da violência letal e de outros crimes.

A queda da violência, evidenciada no Anuário noutras regiões do Brasil, estaria mais ligada a causas demográficas (redução populacional, envelhecimento da população, redução no número de adolescentes e jovens, faixas etárias de maior risco de mortalidade) e à promoção de políticas de prevenção focalizadas e integradas às ações policiais.

No último dia 20 de setembro, o Supremo Tribunal Federal brasileiro manteve a decisão liminar do ministro Edson Fachin, que derruba os decretos de flexibilização da compra e porte de armas, emitidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Na sua decisão, o ministro Fachin alegou o risco do aumento da violência política nas eleições de 2022.

No entanto, outros temas afligem mais Carla . Natural de Parintins, segunda cidade mais populosa do estado, a quase 400 quilómetros da capital amazonense, onde há seis anos mora com a irmã de 20 anos, o pai é servidor público e a mãe professora desempregada. Para a jovem, o desemprego, a alta dos preços dos alimentos e o desmatamento são os problemas que mais a desagradam e preocupam no atual governo.

Ela não se preocupa à toa. Apesar de estar em queda, a taxa de desemprego no Brasil é de 9,1%, atingindo 9,9 milhões de pessoas, segundo os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNDA Contínua), divulgados pelo IBGE. Contudo, quando analisados mais de perto, os dados da PNAD podem revelar números bem maiores: os 13,1 milhões de empregados sem carteira assinada ou os 39,3 milhões de trabalhadores informais, número que inclui, além dos empregados sem carteira, empregadores e trabalhadores por conta própria sem legalização. Ou seja, pessoas que possuem trabalho, mas que não têm as garantias e benefícios de um emprego legalizado, como cuidadores de idosos, motoristas e entregadores de aplicativo, profissionais autônomos e outros trabalhadores precários.

Por sua vez, a inflação, calculada pelo IBGE, ainda é alta. Há dois meses que a inflação cai no Brasil, por causa das desonerações de impostos na gasolina e energia elétrica que vão só até dezembro, porém o aumento nos preços dos bens alimentares é o que mais pesa no bolso das camadas mais pobres da população. No mesmo período, a alta no custo dos alimentos foi de 13,43%, embora em agosto o crescimento tenha diminuído um pouco o ímpeto, ficando em 0,24%.

Quanto ao desmatamento da Amazónia, segundo dados divulgados pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), entre janeiro de 2019 e julho de 2022, quando Bolsonaro já ocupava o Palácio do Planalto, foram derrubados 31 mil km2 de bioma, o equivalente ao território total da Bélgica. Só de agosto de 2021 a julho de 2022, a área desmatada foi de 8.590 km2, quase duas vezes a região do Algarve. No mês de agosto de 2022, o desmatamento atingiu o segundo recorde da série histórica medida pelo instituto: 1.661 km2, uma área maior do que a cidade de São Paulo (1.521km2).

O recorde representa um aumento de 81% em relação ao registado no mesmo mês do ano passado (918,24 km2) e só perde para o desmatamento alcançado em 2019 (1.714 km2), o primeiro ano do atual governo. Desde a sua posse, em primeiro de janeiro de 2019, a taxa de desmatamento da Amazónia já aumentou 52% e, segundo o Conselho Indigenista Missionário, as terras dos indígenas, os grandes protetores da floresta, tiveram três vezes mais invasões que em 2018. Falta de controle e fiscalização, aliados aos incentivos do governo à exploração predatória da região, são as causas para o aumento da devastação, dizem ambientalistas.

Não muito distante de Carla, noutro bairro da mesma Manaus, Sheila Carneiro Falabella, profissional de relações públicas e professora com 76 anos, está de partida para um fim de semana em Fortaleza com um grupo de amigas, onde “todas vão votar”. A professora manauara faz uma pausa na arrumação das malas para chamar atenção para outra consequência dos problemas que preocupam Carla. “Infelizmente ainda se vende muito voto. O Brasil está na pobreza”. E com a experiência de quem é viúva de um marido eleito cinco vezes prefeito da pequena Urucará, cidade da região do Baixo Amazonas com pouco mais de 16 mil habitantes, Sheila não hesita em apontar a solução: “Por isso eu sou a favor da urna eletrônica. Na hora, não têm como fraudar”.

Sheila faz alusão à polémica levantada pelo Presidente da República desde a sua eleição, em 2018, e por si intensificada nos últimos meses, à medida que as eleições se aproximam: a confiabilidade das urnas eletrónicas. Continua a fazê-lo mesmo depois da rejeição no Congresso de uma proposta de emenda à Constituição, que tentava restabelecer o voto impresso, e das reiteradas manifestações do TSE e de outras instituições sobre a segurança do sistema eletrónico de votação. Este método foi adotado pela primeira vez há 26 anos e nunca houve um único caso confirmado de fraude.

Enquanto não experimenta o voto eletrônico, a parintinense Carla analisa os candidatos a governador e a deputados. “Têm várias pessoas novas na política. Tem que analisar um pouco mais, para saber se conseguiriam tomar decisões, se saberiam exercer o cargo, se saberiam fazer as coisas direitinho”, ensina a estudante que pretende cursar Direito para se tornar juíza. “Eu gosto de analisar as coisas para saber decidir o certo”.

Em relação às eleições, as expectativas de Carla também não são poucas. “Eu espero que as pessoas votem com consciência. Espero que elas vejam a situação do Brasil e que queiram mudar. Espero que as pessoas que votaram na eleição passada pensando em benefícios ‘ah vou carregar uma arma’ que elas pensem novamente para fazer com que a situação do Brasil melhore”, conclui.

Sheila também acredita na mudança do Brasil pelo voto. “Estou cansada. Já chega de tanta mentira.” Ela conta que sempre gostou de trabalhar nas eleições e que adorava estar numa mesa de voto. “Eu adorava ver o povo chegar pra votar”. Mãe de três filhos, dois deles mulheres, e avó de três netos, dos quais duas meninas, Sheila diz que nunca pensou parar de votar quando completasse 70 anos. “Sempre disse para as minhas filhas que a mulher lutou tanto para conseguir votar que eu nunca abriria mão deste meu direito.” No Brasil, as mulheres só conquistaram o direito ao voto em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, e votaram pela primeira vez em 1933.

Além de um direito, Sheila encara o ato de votar como homenagem. “A todas as mulheres que lutaram para termos um mundo melhor. Hoje ele está melhor do que era antes (para nós mulheres), mas ainda há muito o que fazer.”

CORAGEM E CETICISMO NA FAMÍLIA MARCADA PELA DITADURA

Dona Therezinha Gomes Manetta tem 89 anos e uma família bastante grande. A moradora de Sorocaba, cidade no interior de São Paulo, tem três filhos, 11 netos e três bisnestos e já viu muito da política brasileira. Agora, prepara-se para votar, será um dos 34 milhões de eleitores do estado de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. “Eu sempre votei, né? Nunca deixei de votar, nem um ano. Na verdade, a gente sempre teve a esperança de votar num candidato que a gente achava que era melhor pro país. Mas só tive essa felicidade quando entrou o Lula e a Dilma, porque vencemos a eleição”, conta a costureira aposentada. Uma mulher que começou a trabalhar aos 14 anos, que casou aos 21 e aos 78 anos ficou viúva do marido pedreiro.

Criada pela mãe viúva que “lavava roupa de 14 famílias” para criar a sua, Dona Therezinha não se lembra do pai, um imigrante italiano ferroviário que morreu num acidente de trabalho quando ela tinha apenas três anos. Partilhando a casa com a mãe e os cinco irmãos, ela conta que eram todos muito unidos e que “votavam”. Única sobrevivente do clã, Dona Therezinha diz se orgulhar da família, sobretudo da mãe, “que foi muito corajosa”.

Coragem que a família Manetta herdou e fez dela necessidade nos anos de chumbo da ditadura brasileira (1964-1985), quando Dona Therezinha teve a irmã mais velha, Maria, e a cunhada presas e torturadas pelo Departamento de Ordem Política e Social ( o DOPS), a polícia política do regime militar. As mulheres foram detidas com duas sobrinhas de Dona Therezinha, de 4 e 9 anos, para delatarem o paradeiro do irmão, marido e pai, Chico Gomes, líder sindical ferroviário e companheiro de Marighella no grupo de luta armada Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas elas não sabiam de nada. Apenas ouviam falar dos amigos e companheiros de Chico Gomes que morriam “atropelados”, “de “enfarte”, mas que na verdade estavam sendo presos, torturados e mortos pela ditadura.

empos depois, após ser solta, e mesmo com a casa vigiada, Maria soube onde o irmão estava e foi buscá-lo. Levou-o para Sorocaba, onde ela e Dona Therezinha residiam. Esta o escondeu na casa onde morava e se mudou com a família para outra. “Durante um ano ele ficou preso lá. Eu levava café, almoço, tudo escondido em uma lata de pedreiro”, recorda. Foi ela também que, por meio de uma amiga, descobriu um contato para o irmão abandonar o país.

Depois de sete anos, passados entre o Chile, Panamá e Cuba, Chico Gomes deu mais uma prova de coragem dos Manetta ao ser um dos dois primeiros exilados a regressar ao Brasil a 7 de setembro de 1979. Queria testar a veracidade da recente Lei da Amnistia, promulgada pela ditadura a 28 de agosto do mesmo ano. Apesar de todos os riscos que ela e sua família correram, Dona Therezinha não se arrepende: “Faria tudo de novo para ajudar a família”, declara com brilho nos olhos e sorriso largo no rosto.

A trajetória familiar marca também a nova geração, como demonstram duas netas de Dona Therezinha. Este ano, uma delas, de 27 anos, “que conversava muito com o meu irmão”, como gosta de relembrar a matriarca dos Manetta, será a primeira candidata a deputada estadual da família. A outra, Maria Júlia Manetta Algarra, de 17 anos, vai estrear-se como eleitora.

Filha de um jornalista e de uma terapeuta, Maju, como é mais conhecida, frequenta o 3º ano do Ensino Médio numa escola construtivista e à tarde vai para o cursinho preparatório para a universidade, ambos em escolas particulares. Indecisa entre fazer Ciências Sociais ou Económicas, Maju já sabe onde quer estudar: em universidades públicas fora de Sorocaba. “Gostaria de contribuir de alguma forma politicamente para o mundo. E acho que Ciências Sociais seria essa abertura. A Economia seria para entender o mercado de trabalho, o capital, e pela falta de empregos em Ciências Sociais”, explica.

Não é por acaso que Maju aponta o retrocesso na Ciência como o fato que a deixa mais indignada no Brasil de hoje. “Além do negacionismo e dessa onda de fake news ‘bizarra’, muitas universidades estão perdendo verbas, muitos órgãos federais foram desfeitos”, enumera.

Se depender do governo e Bolsonaro vencer as eleições, a tendência de cortes orçamentais apontada por Maju continuará no próximo ano. No início de agosto, o Presidente da República sancionou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (a LDO) de 2023, aprovada pelo Congresso, com vetos aos dispositivos criados pelos parlamentares que previam mais recursos para as universidades federais, vítimas de cortes frequentes de verbas na atual administração. Além disso, Bolsonaro impôs ainda limites para a utilização dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), uma das principais fontes de financiamento à ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Segundo o governo, as medidas foram tomadas para fechar as contas e não furar o Teto de Gastos, regra fiscal que limita o crescimento das despesas governamentais aos mesmos valores do ano anterior, corrigidos pela inflação. Para os críticos, não passam de manobras para liberar verbas a parlamentares aliados em ano eleitoral.

Enquanto a sua avó está entusiasmada com as próximas eleições, apesar de também temer um eventual golpe, Maju parece não nutrir muitas ilusões sobre os pleitos, mesmo que a esquerda consiga voltar ao poder. Pelo menos não em relação a mudanças estruturais. O seu temor está nas alianças firmadas “por essa esquerda”, como ela diz.

“Eu não espero essa mudança drástica e absoluta que as pessoas parecem estar esperando, sabe? (...) O que eu entendo do Brasil, quem realmente manda no comércio, no mercado de trabalho, nas políticas e nos deputados é essa meia dúzia de grandes famílias que estão aí desde 1500, os grandes latifundiários, esses grandes empresários (...) É difícil eleger pessoas que representem os nossos interesses políticos sabendo que quem vai continuar tendo a maior influência vão ser esses caras”, avalia com ceticismo, apesar de estar animada com a candidatura da prima para ser deputada estadual.

A revolta da matriarca dos Manetta é outra, é a fome. “A fome, muita criança, (muitos) adultos nas ruas. É muito triste para o Brasil, tão grande. É uma vergonha”, dispara. Divulgados no início de junho, dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil revelaram que mais de 33 milhões de pessoas ou cerca de 15,5% da população brasileira passam fome no Brasil. E seis em cada dez brasileiros convivem com algum tipo de insegurança alimentar. Os dados foram recolhidos entre novembro de 2021 e abril de 2022.

É um aumento de 14 milhões de pessoas em relação ao primeiro inquérito de 2020. Ou seja, o país retrocedeu quase vinte anos nos seus avanços nesta área. Em 1993, de acordo com o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (o IPEA), o país possuía 32 milhões de famintos, embora contasse com uma população 27% menor que a de hoje. Em julho, um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) mostrou que o Brasil voltou ao Mapa da Fome da entidade, do qual havia saído em 2014.

Estes dados são postos em causa tanto pelo presidente Bolsonaro quanto pelo seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Alegam que desde o início da pandemia o governo tem ajudado a população mais vulnerável por meio dos programas de transferência de renda Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil. E, segundo o ministro, a recente alta da inflação não seria capaz de levar essas pessoas à insegurança alimentar.

O aumento do Auxílio Brasil foi concedido apenas em agosto deste ano, passando de R$ 400 reais (cerca de 77,33 euros) para R$ 600,00 (por volta de 115,99 euros) por mês, quando também foi expandido a cerca de 20 milhões de famílias. Contudo, o aumento do benefício só está garantido até dezembro deste ano. Apesar de Bolsonaro ter afirmado em campanha eleitoral que o valor será mantido em 2023, a proposta de orçamento enviada pelo Ministério da Economia ao Congresso Nacional prevê a concessão de um auxílio no valor de R$ 405,00 (cerca de 78,29 euros) ano que vem.

Especialistas consideram que a situação da fome no Brasil é fruto de uma receita cujos ingredientes vão além da pandemia e incluem o desmonte sistemático de políticas públicas pelo governo atual, somado ao agravamento da crise económica, engrossados pelas desigualdades abissais da sociedade brasileira. Receita que Dona Therezinha reprova e, ao mesmo tempo, aponta o caminho para a adoção de uma nova: “Tem que mudar isso. A esperança é um novo governo, um novo presidente”.

“O FUTURO SOMOS NÓS”

É domingo de manhã em Tocantinópolis, município com pouco mais de 23 mil habitantes às margens do Rio Tocantins, no estado da região Norte que leva o mesmo nome. No seu quarto, Letícia Gomes Lagares, de 17 anos, filha única de uma servidora pública e de um soldador, ajeita a tela do computador. Recorda a origem da sua insatisfação com a situação do país e que a levou, junto com os amigos, a querer tirar o título de eleitor.

“A gente já estava insatisfeito, só que a partir da pandemia a gente começou a ficar bem mais preocupado”, relembra. As aulas haviam começado há um mês e meio quando tiveram que ser suspensas, ficando assim por um ano e meio, até regressarem em setembro do ano passado. Com a pandemia e o agravamento dos problemas do país, os hospitais lotados, as pessoas sendo transferidas para os municípios próximos ou morrendo, “o desespero foi batendo” e ela e os amigos intensificaram as discussões políticas que culminariam com a decisão de tirar o título para poderem exercer o seu direito ao voto já nas próximas eleições.

Letícia está no 3º ano numa das três escolas públicas de Ensino Médio da cidade e é mais uma aspirante ao curso de Direito. Quer ser juíza, algo que gosta desde criança, “para poder ajudar pessoas que não têm acesso à assessoria jurídica”. Além disso, também é preciso haver mais mulheres sentadas nos bancos de juiz. Ela sabe que no futuro, se quiser seguir essa carreira, terá de percorrer o mesmo caminho de muitos jovens da cidade e migrar para centros urbanos maiores, como Araguaína ou Palmas, capital do estado, ou ainda Imperatriz, no outro lado do rio, no vizinho estado do Maranhão.

Noutro ponto da cidade, Carlos Daniel Alves de Alencar, 17 anos completados há poucos dias, também tem os mesmos objetivos profissionais. Porém, confessa que gostaria de fazer mesmo era o curso de Medicina, mas como em Tocantinópolis não tem esta faculdade e o pai já conseguiu promessa de estágio com um amigo juiz, optou pelo Direito possível.

O mesmo pensamento pragmático guiou Carlos na hora de tirar seu título de eleitor. Pensou na documentação exigida para a matrícula na faculdade, caso passe no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), prova de admissão ao ensino superior em universidades públicas, em novembro. Mas agora que está com o título em mãos também quer votar.

Embora não se conheçam, os dois jovens apontam a Educação como o problema que gostariam de ver melhorar no Brasil a partir das eleições. Letícia critica a existência de poucas escolas no município, enquanto Carlos aponta a falta de recursos de que dispõem. “Há recursos que necessitam, mas não chegam para a gente, como livros”. Às vésperas do ENEM, Carlos não encontra os livros que precisa para estudar, nem na biblioteca da cidade, nem nas cidades mais próximas. Professores e alunos são obrigados então a recorrer aos livros de anos anteriores ou à Internet. “É o que há”, conclui o estudante com um semblante crítico e resignado.

Letícia e Carlos sentem na pele os efeitos do bloqueio no orçamento do Ministério da Educação, determinado pelo governo federal em maio deste ano. Segundo estimativas da ONG Todos pela Educação, o total de recursos bloqueados no ministério chegaria a R$ 3,6 bilhões (695 mil milhões de euros), dos quais R$ 1 bilhão (193 mil milhões euros) para investimentos na Educação Básica, que inclui a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Recursos destinados ao apoio de estados e municípios para a construção, ampliação e reforma de escolas, aquisição de livros e materiais didáticos, equipamentos e mobiliários. Até os recursos para a realização do ENEM 2022 devem ser reduzidos pelo ministério. Pouco depois, diante da repercussão negativa, o governo desbloqueou parte dos recursos do MEC, mas essas estimativas ainda não foram atualizadas pela ONG.

Segundo o governo federal, os bloqueios atingiriam também os Ministérios da Ciência e Tecnologia, Saúde e Defesa e seriam promovidos para evitar o descumprimento do Teto de Gastos. O mesmo Teto que seria furado em julho, com a aprovação da PEC 1/2022 pelo Congresso Nacional, autorizando o governo a gastar mais de R$ 41 bilhões (7 mil milhões  de euros) para turbinar benefícios sociais a três meses das eleições.

Daí que Carlos diga que vai ver bem todos os candidatos “que estão entrando na nossa política”, para ver quais serão as melhores opções. E embora converse muito com o pai, vigilante de fábrica, a mãe, auxiliar de serviços gerais, e o irmão de 26 anos, que “entende bem de política”, Carlos diz que vai votar consciente do que quer e pela própria cabeça. E espera que todos tenham essa consciência a 2 de outubro, “de certeza em quem vão votar, e “não de “achismo”. E saibam o motivo “Por que eu vou eleger essa pessoa? O que ela te ofereceu? O que ela ofereceu ao país?”, exemplifica.

“Meus pais falam que Lula foi o maior presidente da nossa época e que Bolsonaro é isso, Bolsonaro é aquilo. Eu não fico só por isso. Porque senão eu votaria no Lula”. Carlos diz que faz pesquisas, vê o que cada um fez no seu governo “até agora”. Confessa que não é muito de assistir jornal, mas acompanha algumas notícias “na Internet, essas coisas”. E afirma estar com o pensamento formado: “Você tem que que se informar mais porque está colocando a pessoa no poder do país. Não tem que votar em qualquer um”, afirma convicto o estudante que também nutre o sonho de imigrar para Portugal quando atingir a maioridade.

Letícia comenta que o perfil do político para ganhar o seu voto nessas eleições “meio que não existe”. Para ela, ele tem que ser uma pessoa justa, “coisa que na sociedade atual é bem raro de se encontrar”, observa a futura juíza. E tem que ser alguém que se importe com Educação e Saúde, mas que se “importe de verdade, não só da boca pra fora”.

“Espero melhorias, muitas melhorias. Que o nosso país consiga melhorar, nem que seja só um pouco”, responde a adolescente quando perguntada sobre suas expectativas para as eleições. E assim como Dona Therezinha de Sorocaba, Letícia se entristece com a desigualdade do país. “Porque o nosso país é tão rico em cultura, em tudo. Mas, infelizmente, ele consegue ser pobre ao mesmo tempo, porque é muito desigual”, responde com a voz embargada.

A distribuição de renda no Brasil é uma das piores do mundo, é histórica, datando mesmo dos tempos da escravidão. De acordo com o Global Wealth Report 2022, relatório sobre a riqueza global produzido pelo banco Credit Suisse, nos últimos vinte anos a desigualdade aumentou no Brasil. Se em 2000, o 1% mais rico da população brasileira encerrou o ano detendo 44,2% da riqueza nacional, no final de 2021 este mesmo percentual de ricos terminou o ano concentrando 49,3% da renda total gerada no país.

Quando o assunto são os ideais que partilha com os amigos, Letícia volta a falar com entusiasmo. “A gente decidiu tirar o título e votar porque a nossa preocupação é com o futuro do país. Porque o futuro somos nós. E no futuro, vai ter um de nós na presidência, sendo governador, prefeito. Então a gente optou por fazer a nossa parte de cidadão brasileiro de agora. E poder influenciar um pouco em alguma mudança, por mais que seja pequena”, fala a animada jovem, direto de Tocantinópolis, no coração do Brasil.

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