sábado, 19 de novembro de 2022

Angola | Morro do Sombreiro - O Camião Dombolo Zangado

Jaime Azulay | Jornal de Angola

(Esta crónica de Jaime Azulay foi publicada no Jornal de Angola. Uma pérola contra os porcos)

Viajávamos em direcção à província do Huambo com uma caravana de mais de 200 camiões, com escolta militar. Naquele tempo, no ano de 2000, por razões de segurança, uma viajem dessas chegava a durar um mês inteiro. Uma verdadeira eternidade. Era tempo suficiente para se procurarem motivos de distracção e de conversa fiada entre o pessoal. Contavam-se episódios ridículos nos quais não faltavam pitadas grosseiras, típicas da conversa dos camionistas quando estão na estrada.

A dado momento, alguém descobriu que existia na coluna um camião que não era igual aos outros. Era uma máquina especial. Numa das inúmeras paragens não aguentámos a curiosidade, lá fomos confirmar a veracidade da notícia que já se tinha espalhado de boca em boca e ouvido em ouvido.

Lá estava ele, o camião especial. Tinha uma placa pendurada no pára-choques da frente que atestava a sua identidade: “Dombolo Zangado”.Todos queriam vê-lo de perto. 

Foi assim que o “Dombolo Zangado” se tornou na mascote da nossa caravana que seguia de Benguela para o Huambo, num dia qualquer do ano 2000. Era um camião, mas parecia uma alface gigante com enormes rodas. O nome, em si, já era curioso, contudo, era o seu vulto estrambólico que despertava a curiosidade. Íamo-nos interrogando dos motivos que levaram o proprietário a tingi-lo com um verde tão berrante, desesperadamente insuportável com o brilho do sol do meio-dia.

Afinal, o “Dombolo Zangado” tinha uma estória interessante para nos contar. Tratava-se de um camião de marca “CRAZZ” do tempo dos soviéticos, um esqueleto monstruoso ressuscitado a martelo e escopro por um reservista do antigo exército, as FAPLA. 

Vê-lo a arrancar era um espectáculo imperdível. Engrenava a caixa de velocidades com o rosnar dos gatos-bravos e o motor arfava ofegante como um destreinado corredor de maratona. Durante a marcha, enquanto os restantes camiões suportavam a dureza das subidas sem queixumes, o “Dombolo”, coitado, rolava aos soluços. Ameaçava desintegrar-se a qualquer momento. 

Quanto ao condutor, era um sujeito curiosíssimo. Parecia ter sido escolhido a dedo para tripular semelhante veículo. A criatura dava ares de sobrevivente de um cataclismo ocorrido noutra galáxia. Tinha dentes desordenadamente escancarados, num semblante estacionado no cruzamento entre a alegria e o sofrimento. 

Não tardou, o “Dombolo Zangado” passou a ser escárnio do pessoal. Os mais maldosos espalhavam boatos do iminente colapso do camião. Era crença generalizada que ele não aguentava a viagem até ao Huambo. Havia apostas feitas por cima das capotas dos carros enquanto se bebericava uma caneca de café. Os mais pessimistas prognosticavam um “KO” técnico logo ao primeiro assalto. 

No declive de oito por cento da pedreira do “Uche” o ajudante de um camião-plataforma de marca "Volvo" que ia no encalço do “Dombolo”, jurou a mãos juntas ter visto uma nuvem agoirenta de vapor branco escapulir-se do inferno do radiador, como se estivesse já a acontecer a anunciada fatalidade. Para espanto de todos, o paquiderme resistiu à subida do “Uche” e às outras mais que se seguiram. Dava até a impressão que festejava cada façanha com um abanão das enormes rodas dianteiras, calcando os pedregulhos espalhados abundantemente pela estrada.

Logo nos demos conta que o “Dombolo Zangado” afinal não era um camião qualquer. Ficou claro que não valia pelo ridículo da sua figura de camaleão trôpego perdido no meio de esbeltas e velozes gazelas. O seu mérito era outro. 

Ao longo dos primeiros 400 quilómetros da nossa viagem para o Huambo pela estrada da Cacula, o velho camião soviético deu provas de insuperável resistência. Era notável o seu apetite para devorar as inúmeras crateras deixadas pelo deflagrar de minas. Isso sem falar da sua extraordinária capacidade de equilibrar-se em pontecos feitos com troncos de eucaliptos, como se fosse um verdadeiro artista de circo. 

Digamos que no fundo, o nosso artista nem precisava de fazer soar a buzina. Em movimento, a sua descomunal massa de ferro ouvia-se tilintar ao longe, como uma velha charanga desafinada.

O “CRAZZ” era na verdade um monumento à estoicidade dos camionistas que ao longo daqueles anos difíceis da vida de Angola arriscavam as suas vidas, circulando pelas estradas martirizadas pelas emboscadas, na luta para que o país jamais ficasse paralisado e a comida chegasse aos locais mais distantes do interior. 

O “Dombolo Zangado” tinha um aspecto atabalhoado, isso não era possível negar. Mas esse pormenor não era suficiente para ofuscar o indelével sopro de dignidade que irradiava de si. Uma firmeza que enchia de orgulho os que integravam a coluna do Huambo. Em sua homenagem, publico esta crónica. Para que conste!

- CRÓNICA DE JAIME AZULAY APRESENTADA POR ARTUR QUEIROZ

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